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sábado, 4 de setembro de 2021

As Duas Loucuras na Arte

John Bauer, um exemplo de arte curativa

A loucura é um assunto clássico do pensamento ocidental. Platão, no Fedro, distingue dois tipos de loucura (mania): uma má, contrária à razão, que levaria aos excessos dos prazeres, por exemplo na atração homossexual (a atração erótica pelo mesmo sexo é contrária à sua função natural, que é procriar); e outra boa, “divina”, que se divide em quatro subtipos: a profética (apolínea), a iniciática (dionisíaca), a poética (inspirada pelas musas) e a erótica (inspirada por Eros). Mais recentemente Michel Foucault, em Folie et Déraison (1961), analisa o conceito de loucura tomando por base o método fenomenológico de “alteridade”; o que seria um trabalho psicológico se torna mais um trabalho sociológico que visa captar a linguagem pela qual os homens são arbitrariamente excluídos da sociedade.

Podemos, ainda, considerar a arte como uma instância da loucura. Platão já incluíra, de alguma maneira, a arte nessa loucura “boa”. Em sua época, todas as artes tendiam a buscar em algum sentido o bom e o belo e, por isso, o harmônico ou racional, e neste sentido se inserem na loucura boa ou divina, porque elevam, curam, tranquilizam, reordenam a alma humana. Mas hoje não podemos mais ser tão coniventes com a arte; as técnicas tomaram a sociedade moderna, hoje tudo é essencialmente técnico, e sendo técnico tudo está dotado de intencionalidade daquele que produz e daquele que utiliza. Vivemos em uma sociedade em permanente construção, controle, manutenção, a própria ordem já não se assenta apenas na natureza, mas depende de um bom uso da técnica. É por isso que hoje devemos discutir a boa e a má loucura dentro da arte moderna.

Todas as artes lidam com o fantástico e são já, nesse sentido e por definição, uma loucura. Não é possível criar algo que não seja em algum sentido artificial, que não se distinga do puramente natural. Toda arte visa montar sobre o natural, transcendê-lo. Mas então surgem dois comportamentos distintos por parte dos artistas e daqueles que empregam as artes: primeiro há aqueles que usam o fantástico para destacar aspectos do mundo natural ou que criam artes que se utilizam do mundo natural, não visando corromper seus princípios básicos, racionais; em segundo lugar há aqueles que usam da arte para distorcer a realidade propositalmente, criar novos princípios contrários à natureza e reificá-los por meio da expressão estética[1]. Vou chamar o primeiro de arte curativa e o segundo de arte degenerativa.

 Arte Curativa

A arte curativa é aquela que, usando de engenharia estética, visa resolver contradições do mundo humano com o mundo natural. Para dar um caso bem paradigmático, falemos da divisão sexual. Há artes que enaltecem tanto os aspectos masculinos no homem e tanto os aspectos femininos na mulher que, com certeza, podem ser consideradas loucuras pela intensidade exagerada de seus aspectos. Muitas das esculturas gregas e romanas seguem esta lógica; na literatura gótica este motivo também está bastante presente, por exemplo no Drácula de Bram Stoker, que exagera por um lado a imagética do poder, da força, do intransponível, qualidades masculinas da personagem vampiresca, e por outro a sensibilidade e fragilidade femininas em suas vítimas. Na literatura religiosa nós costumamos ter o mesmo motivo quando se analisa a relação que Deus tem com sua Criação, uma relação de interferência, autoridade, muitas vezes de ira, controle e castigo; a Criação mantém com o Criador uma relação que se repete entre mulher e homem. O símbolo, nestes casos, ajuda a elucidar, apontar para algo essencial, concreto, com lastro na realidade imanente, e assim educa o leitor, muitas vezes curando-o de medos, traumas e uma incapacidade de compreender “o outro”.

Sobretudo no mundo contemporâneo, a arte curativa é fundamental, de importância máxima. Uma vez que tudo é técnica (tekhnê em grego serve tanto para a engenharia quanto para a “arte” em sentido moderno), são necessárias obras que o tempo todo lembrem o homem daquilo que ele é essencialmente. A técnica do mundo contemporâneo é uma maré de esquecimento, de apagamento da visão das essências, de esquecimento e distanciamento do próprio real; nada tão necessário como as artes que levem ao homem de volta para aquilo que ele é, que o coloquem no seu lugar, na sua função cósmica. O papel do masculino, ainda que por meio da arte, deve permanecer masculino, e o papel feminino, da mesma maneira, deve permanecer feminino. O grande desafio dos artistas contemporâneos é criar técnicas que não corrompam essa relação, mas a atualizem sob novas formas. Isso vai desde a literatura até a legislação e o urbanismo – todas estas esferas são técnicas.

O filósofo alemão G.W.F. Hegel já havia pensado em tudo isso. Para ele as formas e os momentos mudam, mas a consciência permanece em seu processo dinâmico e contínuo. As formas se reatualizam, mas não corrompem o real, o saber absoluto não é um arbítrio do sujeito, mas um saber que diz respeito ao real concreto. Assim, a complexidade com que, por exemplo, homem e mulher se relacionam no mundo moderno será diferente da complexidade com que a mesma relação acontece no mundo grego e depois no mundo romano. Mas o homem e a mulher, em si, não se transformam, não deixam de ser homem e mulher, e dessa maneira não perdem a relação essencial que há entre eles. Se no mundo antigo a mulher era submetida pela força, no mundo moderno será pela lei e pela cultura, que por sua vez são construídas por homens[2]. E nisso está a liberdade no idealismo hegeliano, o fato de que cada consciência tem seu lugar natural garantido por uma lei universal.

É evidente que uma arte curativa exige esforço, antes de tudo um estudo, uma reflexão sobre a realidade e, no caso em questão, sobre o que é o masculino e o que é o feminino. Deve-se buscar na realidade, na observação empírica e na tradição clássica os elementos simbólicos que podemos extrair e utilizar na expressão destes dois polos do homem[3]. Quando há uma personagem masculina, deve-se saber dotá-la de características masculinas[4], e o mesmo serve para as personagens femininas. O artista que cura é um sábio, um alquimista, um terapeuta[5], e não é possível sê-lo sem primeiro conhecer o real com a profundidade necessária para poder representar os objetos que aparecem na arte. Os bons escultores são também conhecedores do corpo e perscrutam cada músculo, cada osso, cada movimento antes de imprimi-los em suas obras – do contrário, o objeto tende a não ser o que visa representar. Notemos que estamos falando de arte em sentido genérico, misturando o realismo e o fantástico: na verdade estamos borrando a barreira entre os dois, porque o vampiro no Drácula, pelo menos enquanto expressão enaltecida de traços reais do homem masculino, não deixa de ser “realista” quanto a este objeto em particular, por mais que suas qualidades ultrapassem as do homem comum do qual ele é imagem[6].

Em geral, a arte curativa costuma se tornar um clássico. Se olharmos para a história veremos que todas as artes que permaneceram, sejam fantásticas ou realistas, foram em algum sentido um dispositivo de rememoração da realidade: os deuses em Homero amplificam relações hipotéticas entre homem e mulher, entre pai e filho, entre comandante e súditos etc., os templos greco-romanos satisfaziam a intuição que o homem grego tinha do belo e do harmônico, as catedrais góticas, ainda que bastante diferentes dos templos gregos, da mesma maneira se punham como obras harmônicas para o espírito europeu, não irritando-o mas inspirando-o e dando vazão às suas potencialidades psíquicas. E sobretudo na literatura religiosa encontramos os símbolos mais bem condensados, mais bem trabalhados, refletidos, aprofundados, ainda que também sejam mais abstratos e que possuam uma linguagem mais “estranha” ao público vulgar. Deus, Criação, Adão e Eva, o Éden, em algum sentido condensam em si os elementos de toda a literatura mítica e fantástica posterior.

Arte Degenerativa

Com base no que já foi dito fica fácil compreender o que é a arte degenerativa. Ela é em algum sentido o oposto: ao invés de fazer o homem rememorar quem ele é, como ele é, qual seu papel no mundo, ela visa ofuscar, afastar essa lembrança. E para tomarmos exemplos desse tipo de arte basta lançarmos os olhos para a enxurrada de livros e de exposições artísticas que se fazem nos museus e nas praças atualmente, ou então basta observarmos a arquitetura lúgubre, fria, mórbida que se espalha como selva de pedra nas grandes cidades. Por via de regra, tudo o que é feio ou que não possui preocupação com o belo já é em si degenerativo, porque a experiência do belo é em si um processo curativo, harmonizador, que leva em conta o ambiente onde se insere e o sujeito que presencia a obra neste mesmo ambiente. Uma obra de arte pode ser abstrata, “estranha”, e ainda ser curativa; para ser degenerativa não é necessário ser abstrato nem “estranho”, pode também ser bem concreto e realista[7].

Sobretudo hoje, um dos melhores exemplos para demonstrar a arte degenerativa é apontar para a maneira como se representam os sexos nas artes. O mais comum é o apagamento da divisão sexual entre masculino e feminino[8], mas também temos a distorção da natureza dos sexos com a sobreposição de características masculinas e femininas nas mesmas personagens e, o que não é menos grave, temos a distorção das relações entre os sexos[9].

Ao invés de elevar, purificar, transcender, tornar sutil, a arte degenerativa rebaixa, faz apodrecer, torna tudo deveras imanente e concreto, duro, denso, impenetrável e do qual é impossível fugir. E assim ela não traz uma experiência de harmonia, de leveza, mas incute a angústia, a ansiedade, a sensação de se estar perdido, isolado, sozinho, dividido e decomposto; ela cinde a psique ao invés de unificar e recompor. Ela provoca o estranhamento, a náusea do existencialismo sartreano. Sartre talvez seja o maior representante intelectual dessa arte degenerativa; sua filosofia é a degeneração cristalizada, o ódio ao homem, ao mundo, o ressentimento de ser o que ele é diante de um mundo que é melhor do que ele. Sartre quis que todos se sentissem imundos e pútridos como ele se sentia ao se olhar no espelho ou se comparar com outras pessoas com belos rostos, por isso quis que todos experimentasse o absurdo que era ser um Sartre. É precisamente daí que vem toda a parafernália intelectual que deu suporte a uma ostensiva produção de arte degenerativa da segunda metade do século XX para cá. O modelo neoliberal viu em Sartre um poderoso instrumento de dissolução de povos, de psiques, de comunidades, de Estados, e não poupou esforços na promoção de tudo o que degenera, enfraquece, apodrece, dissolve com vistas a dominar e imperar pelo dinheiro e pelo poder policial. O absurdismo, que deu suporte intelectual à arte degenerativa, é a ideologia do esquecimento permanente, a luta pela perdição da alma contra tudo o que eleva e cura. Assim, uma maneira de compreender a arte degenerativa é estudando Sartre e sua fenomenologia do absurdo.

Conclusão

Analisamos dois tipos de loucura, isto é, o fantástico na arte. Um nós definimos como arte curativa e o outro como arte degenerativa. Os dois manipulam a realidade, em algum sentido “distorcem” ela; mas enquanto o primeiro tipo o faz sem corromper a realidade, o segundo o faz corrompendo-a. A experiência que o sujeito tem na primeira arte é positiva, a arte o eleva, o unifica, o harmoniza, enquanto que a experiência que ele tem na segunda arte é negativa, a arte o rebaixa, o decompõe, introduz a desordem em sua psique. Se usarmos um conceito grego para defini-las, diríamos que a primeira é racional e a segunda é irracional.

NOTAS

[1] Karl Marx havia analisado esse fenômeno da reificação no processo capitalista: o produto do capital é artificial, ele se torna uma necessidade fabricada, falsa, ilusória, e seduz a sociedade a consumir. É o fetiche (um impulso patológico) que impulsiona o capital.

[2] Para Hegel, bem como para todos os idealistas e românticos, o masculino estava essencialmente ligado à esfera pública e à lei, enquanto ao feminino se reservava a esfera privada e a religião (os Lares). Isso define a sociedade moderna ideal hegeliana, que não transforma essencialmente o mundo grego, mas o reatualiza, resgata sob novas formas civilizacionais.

[3] Aqui deve-se ler “Homem” em sentido genérico, e utilizo o termo por uma questão de gosto e etimologia. “Ser humano” me parece uma aberração moderna, uma gambiarra linguística, e por isso busco evitar ao máximo, ainda que talvez pareça mais claro ao leitor vulgar.

[4] Infelizmente as autoras raramente conseguem esta proeza. Por exemplo em Frankenstein, de Mary Shelley, Robert Walton, não fosse o nome, poderia ser uma mulher pois tem todos os traços psíquicos de uma mulher: sofre com solidão, paranoia, baixa auto-estima, insegurança, busca o consolo, o conforto, e possui uma compaixão bastante exagerada.

[5] Com um propósito mais claro na terapia podemos citar o romance de formação e, como seu maior exemplar, o Wilhelm Meister de J.W. Goethe.

[6] Também temos que levar em conta que os objetos no Drácula possuem múltiplos significados simultaneamente; o vampiro não é feito para ser a mera representação de um homem; esta personagem induz a muitas interpretações simbólicas, sociais e psicológicas que, contudo, não negam a natureza psíquica de seu fundamento, que é em algum sentido um homem (e na própria história o vampiro foi, uma vez, um homem, sua natureza se deu em cima da matéria masculina, a partir dela).

[7] As obras de Marcel Duchamp são realistas e ainda sim horríveis, desarmônicas, toscas, rasas, degenerativas.

[8] Um exemplo são as pichações de “Os Gêmeos”, que deveriam estar presos por depredarem o patrimônio público pelo mau-gosto que espalham nas grandes cidades mundo afora.

[9] Um caso de se citar aqui talvez seja o assim intitulado Cinquenta Tons de Cinza; ele não distorce a natureza dos sexos em si, mas as relações entre eles: ao invés de termos relações de proteção, unidade, cumplicidade, amor e frutificação, temos relações externas de exploração entre os sexos; esse tipo de literatura se torna ainda mais perigoso porque seu ardil é muito mais sutil e apela mais facilmente aos jovens que vivem a explosão dos hormônios. No mais, podemos citar quase tudo o que se produz hoje nas telenovelas, música pop etc.: é sempre uma mulher que comanda e homens que obedecem e meramente acompanham; a relação hierárquica foi totalmente invertida.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A Folha de Cisco: o encontro entre Tolkien e Hegel

 

O conto A Folha de Cisco, de Tolkien (publicado mais recentemente pela Harper Collins Brasil em 2020), é uma obra com profundo caráter autobiográfico. O protagonista, Cisco, personifica as inclinações do autor, e a lição moral da obra como um todo é de algum modo uma defesa de sua própria visão-de-mundo. Mas estes elementos não estão presentes apenas como uma expressão subjetiva do autor, que visa expor “sua visão” sobre o mundo ao modo romântico; eles estão organicamente construídos como obra universal e intemporal, que não simplesmente impõe sua perspectiva sobre o leitor, mas o convida a uma reflexão impessoal sobre o mundo e os acontecimentos, uma viagem ao interior do mistério da vida.

 A narrativa conta a história de Cisco, um pintor desajeitado que constantemente adia a preparação para sua viagem. Às vezes ele empacota alguma coisa aqui e ali, mas logo abandona e se volta para sua pintura. No esforço de pintar uma árvore, com todos os detalhes possíveis em sua imensa complexidade, ele gasta todo seu tempo disponível. Então surgem os problemas: o vizinho, Pároco, constantemente bate a sua porta para interromper seu trabalho, requisitando ajuda para questões cotidianas, desprezando a obra em desenvolvimento; com isso concorre ainda o tempo, cada vez menor, para a viagem, e a dificuldade cada vez mais consciente de conseguir pintar a árvore em todos os seus detalhes conforme imaginada pelo pintor. Por fim, todos os males surgem quase que instantaneamente juntos: Cisco, ao tentar ajudar Pároco com o telhado de sua casa destruído, pega um resfriado e cai doente; assim que sua febre melhora surge o Inspetor para exigir o uso da tela, da madeira e da tinta usada na pintura para o conserto da casa de Pároco, e ao lado dele aparece o Carregador para levar Cisco à estação de trem para sua viagem, para a qual ele não havia se preparado. Chegando no destino ele passa por um período de trabalho manual que serve como uma purgação de sua obsessão artística, e depois é tratado em um hospital; neste hospital ele ouve duas vozes discutindo o julgamento a se fazer a respeito de Cisco, até que a Segunda Voz, que detém da autoridade, o envia para um jardim. Neste jardim o protagonista encontra sua árvore, mas desta com todos os detalhes prontos, tanto aqueles que Cisco poderia ter pintado quanto aqueles que ele jamais conseguiria pintar, afinal esta árvore tem algo que a outra não tinha: vida, era uma árvore e não apenas uma pintura. Cisco, sentindo-se satisfeito, pede então à Segunda Voz que traga Pároco para este jardim, com quem ele poderia compartilhar desta experiência. Chegado no jardim, Pároco diz a Cisco que ele também havia sido julgado e que só por causa do pedido de Cisco que a Segunda Voz concedeu este destino. Cisco descobre que todo o lugar onde ele caminha faria parte de sua pintura, quando ela estivesse pronta, e aos poucos descobre um lugar mais ao longe, para o qual a pintura ainda deveria ser descoberta: a montanha; e para lá ele se dirige. Pároco, porém, decide retornar ao jardim e pedir a concessão de sua esposa, para que ela também possa desfrutar dessa vida. Enquanto isso, Cisco se dirige à montanha, orientado por um Guia.

 Toda esta narrativa, independentemente da interpretação que possamos fazer, apresenta claramente um movimento circular que começa na idealização subjetiva da pintura, “desce” para a realidade cotidiana e contingente, e por fim, depois de um processo de ruptura, retorna para o objeto dessa idealização, mas agora como realidade. Esse movimento imita todo o sistema da obra hegeliana, que começa na Ideia abstrata, “desce” para a natureza e para a contingência, e por fim sobe retornando para esta mesma ideia, agora não mais como abstração, mas como Espírito, como realidade concreta. Em Hegel também é com a arte, a religião, a alta política, a filosofia especulativa (cujo método ele identifica à tradição neoplatônica) que o homem percorre o caminho de retorno ao Uno, ao mesmo tempo origem e destino da Ideia.

 A tônica do conto de Tolkien, contudo, está neste trecho de “ascensão”. Não apenas Cisco passa por este processo, mas toda a realidade, exemplificada pelo Pároco e por sua esposa, o acompanham na jornada. Fica demonstrada a inferioridade da realidade cotidiana, da qual Pároco compartilha muito mais que Cisco, e a superioridade (inclusive ontológica!) da realidade ideal expressa pela pintura. Embora o pintor seja um tanto desconhecido no mundo cotidiano (ele é apenas um sujeitinho desprezado e até pouco conhecido por seus conterrâneos), o que se descobre é que todo mundo, em dado momento, acaba tendo que fazer a desdita viagem, e a culminância do destino, a “terra primeira” (o paradigma) em vista da qual todos os destinos são julgados pelas duas vozes, é aquela que subjazia na mente idealista do pintorzinho e que ele, com muita dificuldade e imperfeição, tentava expressar, com tinta sobre tela. A viagem pode ser tomada como o momento de dissolução, na linguagem alquímica, quando o neófito é iniciado nos altos mistérios e “morre” para um mundo ao mesmo tempo em que “renasce” para outro, este sim, o “verdadeiro mundo” a ser alcançado ao longo de um processo de coagulação.

 Na medida em que Cisco percorre seu caminho, sempre iluminado por seu ideal, ele traz consigo, atrás de si, todo o resto da realidade, arrastando o mundo de volta para o princípio. É por causa de Cisco que Pároco pôde ascender ao jardim, e por causa de Pároco, depois de ter finalmente sido iluminado pela vida da árvore, que a mulher do Pároco, ainda mais maculada pela vida “profana”, também pôde receber uma passagem para o jardim – todos formando uma “corrente de ouro” que se dirige para um destino único.

 Da parte de Tolkien, está clara, como parte da “lição” que o conto transmite, uma crítica ao desprezo que de modo geral a sociedade costuma ter pelos seus artistas, quando são estes que fornecem a “substância” da vida, a razão da realidade e, por conseguinte, o motivo pelo qual viver. O que Hegel diria é que a imagem pensada pelo artista é a própria estrutura do real ainda não efetivada. O artista (compreendido aqui em sentido amplo, incluindo o filósofo especulativo e o político conforme idealizado por Hegel, concretizado na figura de Napoleão), na medida em que ele, como um profeta, se define como aquele que profere a Ideia, é, tanto em Tolkien quanto em Hegel, o guia de um povo. E o destino é a divindade; para Hegel, o Espírito Absoluto que transcende as formas contingentes, e, para Tolkien em seu conto, a montanha, capaz de transcender até mesmo a árvore com sua multiplicidade de folhas e detalhes.

 É claro que devemos levar em consideração também as diferenças. Tolkien era um católico, Hegel era luterano. Mas, embora os símbolos usados no conto de Tolkien tenham de fato alguma proximidade maior com o catolicismo (a árvore, o “guia”, a “redenção”, o “purgatório”), eles estão muito longe de representar uma analogia com os dogmas do catolicismo. Estes símbolos falam por si, e deles se pode encontrar talvez uma proximidade ainda maior com o que Hegel chamou de “filosofia especulativa”: embora não possamos de modo algum definir, por exemplo, o jardim do conto como a “substância primeira” da realidade (afinal isso seria cair também em discurso alegórico), a estrutura com que os elementos ontológicos do conto estão organizados mostra claramente uma hierarquia entre “níveis de realidade”, as quais não se diferenciam meramente por um ser superior ao outro, mas pelo fato de os superiores “conterem” os níveis inferiores em si. É a árvore e seu jardim, seu entorno, que detém a vida da qual as plantas no mundo contingente são feitas. E essa árvore é superada por um manancial que, brotando no seio da floresta, alimenta todo o jardim – inclusive é desta fonte que Cisco bebe no final dos longos dias de trabalho para se manter vigoroso, possuindo esta fonte então um caráter curativo e rejuvenescedor que na alquimia o ouro e a pedra filosofal representam.

 A estrutura de A Folha de Cisco é, assim, mística. Ela não apenas exprime uma obediência, um respeito, uma veneração, ou um culto a uma certa divindade, mas introduz a busca pela fusão espiritual com a “substância divina” que a tudo dá vida. Este talvez seja o elemento culminante ou nevrálgico do parentesco com a filosofia hegeliana: para o filósofo, não basta a veneração do divino de modo distanciado e alienado, é preciso, em um movimento duplo, “internalizar” a Ideia (a estrutura da realidade), e efetivá-la no mundo através das estruturas históricas, de modo que as instituições, como as artes, a família, a sociedade, a religião, o Estado, tomados em conjunto, em um sistema orgânico, se tornem uma gigantesca escada para o alcance final do divino por parte dos espíritos singulares, em um êxtase universal, da substância universal. Por ser luterano, e não católico, Hegel concebia um valor especial para a subjetividade nesse trabalho (também duro e por vezes doloroso, como o foi para Cisco no conto diversas vezes), e neste ponto de novo ele se aproxima de Tolkien, que, embora católico, também defendia a literatura individual, o isolamento e o trabalho intelectual (subjetivo) como partes fundamentais do processo espiritual do homem. Afinal, é o “sujeito” que conhece, e a realidade deve ser conhecida. A Fantasia, para Tolkien, não é um escape para o irracionalismo, mas uma forma superior de racionalidade, tal como para Hegel a filosofia especulativa (atacada como “devaneio” por seus opositores) é o modo par excellence de se alcançar o Espírito Absoluto – por trás da Fantasia e da filosofia especulativa está uma “outra razão”, intemporal, organizada em princípios objetivos, que dá sentido à vida e também à própria razão instrumental (as duas razões não estão em desacordo). Essa “outra razão” é aquela capaz de “ver” a realidade invisível, os princípios transcendentes, que a razão instrumental é por definição incapaz de explicar e compreender.

 A ampla gama de correspondências que se pode encontrar entre Hegel e Tolkien (não só no conto em questão) talvez seja fruto de uma grande erudição de ambos, de onde certamente vão acabar bebendo de fontes próximas e similares na história do pensamento e sendo influenciadas por elas, portanto não exatamente de uma influência direta. Mas são muitas essas correspondências, e a mais interessante de todas, aquela que destaca ambos os autores de seus próprios contextos e os coloca em sintonia, é a tonalidade mística de busca e de união intelectual e substancial com o divino, por sua vez a própria fonte da vida – e, para ambos os autores, tudo o que existe é, no fundo, Vida.

domingo, 17 de maio de 2020

A Metafísica do Fumo

Mher Khachatryan

Em defesa de uma economia fundamentada no artesanato, de uma perspectiva sacra sobre os fenômenos da vida, hoje discutiremos uma atividade que poderia ser considerada a culminância de todos os artesanatos. Trata-se de um ritual, de uma experiência religiosa que une a simbologia teológica com o drama da alma humana no interior ou através do sistema cosmológico implícito no símbolo. Pensaremos o fumo, o ato de fumar.

Não é novidade que o fogo tem para o homem uma importância mística desde que o homem é homem. É o fogo que, misteriosamente, oculta os fenômenos, transforma os elementos do mundo e permite seu transporte, sua permanente recriação e restauração. É um elemento ao mesmo tempo destruidor e mantenedor do kósmos. Também não é novidade que, certamente em conexão com esta ideia, desde que o homem descobriu maneiras de dominar o fogo ele mantém a atividade de fumar.

Desde sempre o fumo teve, então, uma forte conexão com a religiosidade; através dele o homem aspirava os espíritos contidos na planta e, com o êxtase do tabaco, entrava em contato com o divino, colocava-se em um Tempo metafísico e vivia um drama cósmico. Foi assim que no xamanismo o ato de fumar teve sua máxima manifestação, até se tornar uma atividade mais secularizada (porém nunca desprovida plenamente de seu significado “profundo”) em civilizações tardias.

Hoje temos uma indústria do fumo, dos cigarros, que investe no vício das pessoas e o objetivo é exclusivamente o lucro, o benefício econômico. A baixa qualidade do tabaco e a banalização do fumo que a produção em série de cigarros produziu levou a uma transformação na atitude do homem diante do fumo. O mesmo ocorre com todas as demais drogas e se expande para a comoditização de todos os aspectos da vida e do mundo, transformando até o próprio sexo em mercadoria e objeto de vício. Isso não deve ser motivo para o desprestígio do fumo, das drogas nem do sexo – é exclusivamente a indústria e o sistema econômico no qual ela se insere que devem carregar a culpa dos problemas de saúde individual e coletivo decorrentes da banalização da vida.

É por isso que vale a pena refletirmos sobre a significação original e real do fumo, que se insere no âmbito do sagrado e é ali seu lugar próprio. Em cada uma das tradições ao redor do mundo, evidentemente, o fumo adquiriu uma explicação e uma sistematização teológica distinta, própria da etnia local; as formas do sagrado são fluidas, mas não são fruto do acaso: elas seguem o logos da interconexão da psique individual do homem (e do povo local que guarda uma linguagem determinada) com o divino que há no mundo. Não temos a competência nem o tempo para discuti-las todas aqui, mas, emprestando da simbologia cristã, refletiremos sobre um aspecto preciso.

O tabaco, para que possa ser fumado, requer um cuidado todo especial. Primeiramente as sementes são selecionadas, classificadas, e então semeadas. Em seguida a semente dá lugar a uma planta, que cresce, se desenvolve, amadurece, até que surge o momento da colheita. Depois disso o tabaco é de novo selecionado, preparado em inúmeros processos de secagem, manuseio, corte e aromatização. Durante todo este processo o artesão está colocando seu pensamento no tabaco, dando desenhos precisos, sabores, textura, para que no fim ele tenha o produto acabado, que é uma conjunção entre seu pensamento e os elementos do próprio mundo. O fumante então adquire este fumo e, em questão de instantes, transforma toda essa arte em fumaça. Ao fumar, porém, ele se extasia com o sabor, e os mais delicados dentre os fumantes farão isso em momentos precisos, em comemoração ou em contemplação, sozinhos e em silêncio durante uma pausa para levar a mente ao longe. Não raro são nesses momentos que cientistas, políticos, escritores, poetas (e artistas em geral), filósofos e místicos têm suas mais aguçadas intuições.

Podemos observar que este processo, que não é senão “o processo do inútil”, tomando em conta que todo trabalho foi feito para virar fumaça, revela ao mesmo tempo o drama humano e o drama divino. A história já é capaz de mostrar suficientemente como o drama humano também não passa de uma semeadura e de um trabalho permanente que, ao fim e ao cabo, vira fumaça; grandes civilizações e construções arquitetônicas, línguas imperiais, imperadores, tudo isso nasce, brilha e é de novo engolido pelo fogo da história.

Mas, no contexto do drama divino, também o kósmos, para algumas vertentes greco-romanas e cristãs, é devidamente pensado por um Demiurgo, que trabalha primeiramente semeando as almas, proporcionando elementos e riqueza, abundância para o crescimento, até que finalmente o fogo surge também de cima para arrebatar a criação de volta para o criador, em um momento de êxtase. Através do fogo, o criador inspira de volta para si os elementos fundamentais do kósmos, “fumando” sua criação. Do pó ao pó. Todo aquele processo de criação e desenvolvimento do kósmos está a serviço de um propósito maior e misterioso; a vida está submetida à morte, é verdade, mas como sua própria essência. A abundância graciosa da vida revela em formas a abundância do criador; a graciosidade da vida, que morre, que vira pó, apenas se recolhe em sua origem em um ato de sacrifício. Tal como o criador se sacrificou: com esmero, com seu trabalho contínuo, deu vida à sua própria alma ao criar o mundo, e tudo isso para depois arrebata-la.

A vida é inútil, os fenômenos envolvidos nela não nos são úteis, e quando tentamos dar uma utilidade para eles surge o fogo e nos elimina. A vida é feita para se mostrar, para brilhar, é a um gozo espiritual e cósmico que ela “serve”, inalcançável para nossas ambições mesquinhas. O termo “fenômeno” vem do grego e significa “aquilo que se mostra”; assim, os fenômenos que compõem a vida são simplesmente “mostrações”, “revelações”. São imagens de algo. Da mesma maneira, os elementos que compõem o tabaco apenas revelam um sabor divino e invisível, intocável; ao se fumar este tabaco ocorre a concretização da obra, sua realização final, isto é, o fim para o qual ela foi feita aconteceu. Assim o mundo, ao ser consumido pelo fogo, está realizando sua razão de ser. Sua razão de ser não é simplesmente morrer, mas retornar ao criador tendo cumprida sua participação no Grande Espetáculo.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

A Felicidade no Pensamento

Carl Spitzweg

Não sou um estudioso de Aristóteles, mas não é preciso ser especialista para saber que é a ele que devemos o conceito ocidental de contemplação. Para Aristóteles, a grande questão que move o homem é a felicidade; ela é o objetivo, a causa final do ato de viver. Nós nascemos em busca da felicidade, nós vivemos para sermos felizes.

Mas então a grande questão que surge é: “o que é, então, a felicidade?”, o que constitui, concretamente, a felicidade. Estaria ela na posse de bens? No poder político? Na fama, no sucesso ou na glória? Para Aristóteles, em nenhum destes lugares a felicidade está. Mais do que isso, ela não está em lugar algum, não está reduzida a uma quantidade de coisas, mas é, pelo contrário, um modo de ser, de viver. A felicidade não é um fim concreto que se possui em um dado momento ou se circunscreve sobre nossos braços; pelo contrário, ela é o próprio ato contínuo e ininterrupto de busca pela felicidade. A felicidade está no busca-la, não no alcança-la. Essa busca se traduz como conhecimento, pois é no conhecer as coisas que o homem se coloca no interior dessa busca e o permite vislumbrar a natureza das coisas. Contemplação em grego é theôria, de onde surge o conceito moderno de ciência, mas também de contemplação religiosa. Para Aristóteles e os antigos em geral, ciência e religião não eram coisas distintas, mas aspectos de um mesmo fenômeno, ou antes disso: um modo de ser, de viver – diria ainda Heidegger, um modo de existir autenticamente, na visada dos deuses.

Assim, para Aristóteles a felicidade é o conhecer, ou o contemplar. A vida teorética está no nível mais alto da hierarquia humana, sendo também o modo de ser mais feliz, ou, para usar o termo grego eudaimônico, o modo de ser “de [mais] bom espírito”. Foi daí que derivou o misticismo e a vida religiosa tanto no cristianismo quanto no islamismo, mas também foi daí que surgiu a noção científica do mundo ocidental. O cientista é aquele que contempla a realidade e a admira, e existe exclusivamente para essa contemplação. É um sacrifício para a beleza celeste e terrena. A ciência nasceu desse espírito religioso e só mais tarde, muito mais tarde, ela passou a ser utilizada para outros fins, seja para a tecnologia ou até mesmo para o enriquecimento. E mesmo assim, ainda nos nossos tempos de profundo distanciamento desse ideal antigo e sacro, a ciência reserva (e sempre reservará) lugar para o sacrifício teorético. Não poucos são os cientistas, enclausurados nas universidades, que mergulham apaixonadamente nas grandes questões da humanidade, seja na história, na biologia, nas letras, ou ainda e acima de tudo: na própria filosofia. E estes homens, no geral, costumam brindar a todos nós obras impecáveis, magníficas, de uma beleza que jamais deixaria de assombrar as almas delicadas e purificadas, afeitas também à vida teorética.

Para Platão, os cumes da existência humana não estavam reservados exatamente aos homens enclausurados e entregues à vida teorética. Para ele, a política era fundamental, e a noção de uma vida feliz (se é que ela existia para Platão) estava certamente mais ligada à noção de justiça política. O objetivo não era tanto a felicidade individual, mas o serviço feito aos deuses, de acordo com sua vontade; e a justiça representava esse fim na terra, ou melhor: na pólis, a cidade-Estado. Mas, embora ele não tenha enfatizado a vida contemplativa, também é na República que o nível mais alto da hierarquia é aberto aos filósofos, que na sua época não significava – obviamente – pessoas com “diploma”, mas pessoas sábias. Pessoas sábias, porém, como nos mostrava Sócrates nos diálogos de Platão, eram pessoas que, em não sabendo, buscavam saber. E o motivo que tornou Platão a verdadeira inspiração para as especulações da astronomia e das ciências em geral talvez seja ainda o fato de que é “no além”, e não na terra, que segundo ele se alcança o que podemos compreender por felicidade. É no mundo das Formas que encontramos o Bem e o Belo, os paradigmas ontológicos de todas as coisas que são aqui na terra, e que são de modo inferior, nem tão boas nem tão belas quanto “lá em cima”. De modo que também Platão tenha estabelecido como prioridade uma vida contemplativa.

Não por acaso, foram os neoplatônicos, como Plotino e Porfírio, que, utilizando-se também muito das teses aristotélicas, organizaram-nas em um modelo platônico regido pela noção de justiça e pela metafísica das Formas no “outro mundo”. A vida contemplativa se tornou prioridade, e por vezes até hostilizava os horrores da política. Mas a contemplação se inseria em um sistema paidêutico abrangente, que reunia todas as esferas da vida e toda a hierarquia política em um conceito cosmológico de justiça, que os homens – os filósofos – passaram a aprender dos deuses. E aprendiam através da oração, da piedade e da fé em relação aos deuses, de uma vida estritamente religiosa. Mas assim como aprendiam dos deuses a justiça, também aprendiam as leis da aritmética, da gramática, da lógica – que derivaram áreas da ciência como a geometria, a música, a astrologia. E assim a ciência, inspirada sempre por uma relação religiosa com o kósmos, foi se desenvolvendo através da Idade Média, de onde surgiram as noções de “artes liberais”, “artes régias” ou “artes sacras”.

A ciência sempre foi algo que deveria existir por si mesma. De novo segundo Aristóteles, uma coisa tem um valor máximo e pode servir de objetivo apenas se ela tem um valor intrínseco, i.e., se ela não está sujeita a outro fim que não ela mesma. A vida teorética não está sujeita a nada, ela é pura contemplação, ao contemplar o contemplador não visa preencher ou realizar outro fim que não a própria contemplação. Então, se a contemplação estivesse sujeita a outra coisa, ela perderia seu valor. Por isso que a contemplação e a ciência, para Aristóteles, Platão e os medievais, jamais deveriam estar sujeitas a outro objetivo que não a própria contemplação ela mesma. Portanto, a noção de que alguma coisa só tem valor quando ela serve, por exemplo, ao mercado, ou às “riquezas”, para um grego, um homem antigo em qualquer lugar do mundo, ou mesmo um homem medieval, soaria no mínimo cômico, senão irônico. De um modo ou de outro, soaria assim: satânico. Pois é através da contemplação que contatamos os deuses e recebemos sabedoria, o bom e o belo, a justiça etc.; se a contemplação for sujeitada a um fim exclusivamente terreno, titânico ou material, ela estará servindo não aos deuses, mas a outro tipo de “coisa”, a saber entidades “subterrâneas”, obscuras, de algum modo inimigas, que têm o caráter de desviar a mente humana, distraí-la para fins estranhos e perigosos.

Para Jâmblico, por exemplo, um neoplatônico importante, que influenciou largamente o desenvolvimento científico e religioso no Ocidente e no Oriente Próximo, a matemática pitagórica, que compreendia o núcleo duro de toda atividade científica, servia para purificar a alma dos elementos obscuros, “terrenos”, a fim de torna-la leve, límpida, e fazê-la ascender aos deuses. As ciências tinham em geral um aspecto ao mesmo tempo religioso, pois os princípios científicos ensinavam também a teologia e inspiravam ao bom e belo transcendente, e tinha também um aspecto ético/político, pois o aprendizado funcionava como uma paideia capaz de tornar mais sutil os hábitos e os pensamentos do aluno, que, na medida em que ascendia espiritualmente, também ascendia politicamente rumo a níveis superiores na hierarquia humana.

Aqui, de novo, e assim sempre, o objetivo da ciência está voltado à contemplação pura, à teoria, à especulação, à kalokagatia ou o bom e belo como ideal e modo de vida, como felicidade. Nada de “aplicação” e muito menos de “gerar riqueza” para um tal de “mercado”. O mercado é o reino de Mammon, e não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A Sabedoria dos Mitos e Contos de Fadas


Há um vício nas atuais doutrinas e nos atuais estudos sobre os mistérios, sobre o gnosticismo, religiões e seitas esotéricas que imita exatamente aquilo que julgam combater: o racionalismo. Perdemos o contato com a realidade, esquecemos o sentido simbólico da linguagem, e passamos assim, senão a interpretar as doutrinas literalmente, ao menos a concebê-las como sistemas abstratos e dogmáticos. Desse modo, a Idade de Ouro se torna um dogma como qualquer outro, tal como o céu abstrato do cristianismo, uma "realidade" inventada; perdeu-se a noção de que a Idade de Ouro, por exemplo, sendo um símbolo de significados múltiplos, pode querer dizer algo sobre o processo histórico concreto, sobre o desenvolvimento intelectual e moral do homem, sobre a constituição natural e originária de um mundo que não se distingue do nosso, cuja constituição apenas tenha sido esquecida enquanto conteúdo de cognição.

Muito se fala sobre símbolos, mitos, entidades, até fazem-se relações, mas nunca se aponta o sentido concreto, que é realmente o que importa, sem o qual tudo não passa de palavras vazias, típicas inclusive do nosso sistema acadêmico, que fala das coisas sem realizá-las. Em suma, é racionalismo puro, pura abstração vazia e sem conteúdo; sinais sem significado, sem a referência subjacente. Em face disso, queremos fazer uma ode aos contos de fadas, e mostrar que eles são as formas mais puras e imediatas de um "esoterismo" milenar; não lidam com abstrações exageradas, seus símbolos são facilmente compreensíveis, e sua sabedoria é inesgotável para filósofos e contempladores. Aliás, há quem diga que os contos, muitos dos quais foram reunidos pelos irmãos Grimm na Europa Central, são mais antigos que os mitos mediterrâneos dos gregos e que a Bíblia[1]; o que é muito crível, em vista de sua estrutura primitiva e seus símbolos, típicos de civilizações tão antigas quanto a hindu. Esses contos de fadas não são invenções abstratas, mas relatos recolhidos no seio do povo, muitas vezes habitantes de florestas e vales remotos, onde a sabedoria dos antepassados permanece repleta de vida e significa, quase intocada; os contos dos irmãos Grimm, por sua vez, refletem um frescor e uma naturalidade, uma clareza, muito familiares a um homem germânico, cujo espírito, o Geist, pertence a vales orvalhados, picos gelados e mulheres brancas, sorridentes, graciosas e luminosas, que colhem flores no campo como uma flor reunida com suas irmãs.

Prestemos atenção em um conto curto, porém riquíssimo de significado, sobre o qual nosso comentário, pobre, apenas terá o interesse de se demorar sobre a riqueza sábia dos antigos, que nunca deixará de ter algo de grande e profundo a nos ensinar:

A Abelha-rainha (Die Bienenkönigin)

Era uma vez, dois filhos de um rei foram para uma aventura e enfrentaram uma vida selvagem e bruta, de modo que não voltariam mais para casa. O mais novo, o qual chamavam de Bobo, aprontou-se e foi a procura dos seus dois irmãos; mas, assim que ele finalmente os encontrou, eles zombaram dele que ele, com sua simplicidade, queria dominar o mundo, enquanto eles dois não podiam se virar muito bem, mesmo sendo mais sábios. Mas eles então retomaram, os três, a viagem e encontraram um ninho de formiga. Os dois mais velhos queriam fuçar e ver como as pequenas formigas, angustiadas, rastejar-se-iam e carregariam seus ovos, mas o Bobo disse: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os incomodem". Então eles seguiram em frente e viram um lago, onde nadavam muitos, muitos patos. Os dois irmãos queriam pegar um punhado deles e assar, mas o Bobo não deixou e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os matem". Por fim, encontraram um ninho de abelha, onde tinha tanto mel que escorria pelo tronco. Os dois queriam pôr fogo de baixo da árvore e sufocar as abelhas, de modo que assim poderiam levar o mel embora. Mas o Bobo se manteve empacado e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os queimem". No fim, os três irmãos chegaram em um castelo, onde no estábulo estava cheio de cavalos de pedra, e não havia pessoas por perto, e eles foram entrando por todos os salões até que bem lá no final tinha uma porta com três fechaduras; pela fechadura da porta tinha uma criança que se podia ver no quarto. Eles viram ali um homenzinho cinzento que estava sentado na mesa. Eles o chamaram uma vez, duas vezes, mas ele não ouviu, então o chamaram pela terceira vez, e ele se levantou, destrancou a porta e veio para fora. Não falou uma palavra, mas os guiou a uma mesa farta, e conforme eles tinham comido e bebido, ele levava cada um para dormir. Na manhã seguinte veio o homenzinho cinzento para o mais velho, acenou e o guiou a uma mesa de pedra sobre a qual haviam três missões por escrito, através das quais o feitiço sobre o castelo poderia ser quebrado. A primeira era: na floresta, sob o musgo, estão jogadas as pérolas da filha do rei, que são mil em número, que devem ser recolhidas, e se quando o sol tiver caído ainda faltar uma única, aquele que foi procurá-las se transformará em pedra. O mais velho partiu e ficou o dia inteiro procurando, mas o dia chegou ao fim e ele só tinha recolhido uma centena; então aconteceu que, assim como ele estava de pé diante da mesa, se transformou em pedra. No dia seguinte entregou a aventura ao segundo irmão, que não foi muito melhor que seu irmão mais velho e, tendo encontrado duzentas pérolas, foi transformado em pedra. Por fim, chegou a vez do Bobo; ele procurou no musgo, mas estava muito difícil encontrar as pérolas e estava muito devagar. Então ele se sentou sobre uma pedra e chorou. Veio então o rei das formigas, de quem ele tinha salvo a vida, com cinco mil formiguinhas, e não durou muito para que os bichinhos encontrassem as pérolas. A segunda missão era encontrar a chave para o quarto da filha do rei, que estava perdida no lago. Quando o Bobo foi para o lago os patos, que tinham sido resgatados por ele, se aproximaram nadando, mergulharam e trouxeram as chaves lá do fundo. Mas a terceira missão era a mais difícil: das três filhas do rei, que dormiam, ele deveria apontar qual era a mais nova e mais amável. Elas eram perfeitamente parecidas e não se distinguiam em nada, a não ser pelo fato de que, antes de terem ido dormir, elas tinham comido doces diferentes; a mais velha, um pedaço de açúcar, a segunda, um pouquinho de xarope, e a mais nova, uma colher de mel. Veio, então, a rainha das abelhas, que o Bobo tinha protegido do fogo, lambe a boquinha de cada uma das três; no fim se senta sobre a boca daquela que tinha comido mel, de modo que o filho do rei pudesse saber quem era a certa. O feitiço foi quebrado, todos os que dormiam foram acordados, os que tinham se tornado pedras voltaram a suas formas humanas. E o Bobo se casou com a mais nova e mais amável e se tornou o rei depois da morte do pai dela; mas seus dois irmãos receberam as outras duas irmãs. (Tradução nossa da versão de Knaur, 2012)

Sem racionalismo, sem as inférteis análises do "sistema" simbólico, sem desejar explicar este maravilhoso conto e esvaziar, assim, seu significado, limitemo-nos a debater um pouco sobre o que ele nos diz e o que dele podemos apreender. Uma criança certamente perceberá coisas que um adulto pode muito bem passar por alto e não notar; mas há tanto a se absorver deste conto que pessoas diferentes vão provavelmente observar detalhes diferentes, não se contradizendo, mas se complementando em suas observações.

Podemos notar, por exemplo, que dos três irmãos, o único que foi capaz de levar a cabo as missões recebidas, embora tenha sido muito inexperiente na vida, foi o mais novo, chamado de "Bobo" pelos demais. Eis aqui um tema que nos lembra Dom Quixote, o mais tolo dos cavaleiros, mas também o mais valente e o mais sutil dos homens. A fim de suprir desejos superficiais, os irmãos mais velhos se ocupam da técnica e da brutalidade para derrubar os obstáculos à sua frente; o mais novo os impediu de tamanho pecado, o qual eles ouviram e respeitaram, e o qual terão motivos para agradecê-lo mais tarde por isso. Notemos aqui que é a inocência (a "tolice", aos olhos dos utilitários) quem foi capaz de cavar mais fundo nas leis da natureza, não com pá, mas com o coração. O conto nada nos diz sobre as percepções subjetivas de cada um (desnecessárias), trata-se de um conto antigo e de caráter objetivo, mas podemos imaginar que o mais novo teve seus motivos ocultos para salvar os bichos da malícia humana; sabemos o que ele sentiu porque também agimos assim quando amamos algo ou alguém, e também agimos como os outros quando somos estúpidos e, de tanto pensarmos em suprir desejos nossos, passamos por alto sem notar as sutilezas do mundo que não nos pertence enquanto mero objeto. A inocência, aqui, aparece em uma criança, não porque só a criança é inocente, mas porque a vida mecânica do mundo adulto nos ensina a corrupção do coração humano.

Não que não se deva matar; nós matamos para comer. Mas no caso deste conto (e é muitas vezes o nosso caso) não havia necessidade para tanto. Os irmãos queriam apenas fuçar e incomodar as formigas, não tinham necessidade de matar patos nem pôr fogo em uma colmeia; não estavam famintos, e o conto mostra ainda, depois, que foram todos levados a uma mesa farta. Aqui, os "obstáculos" a serem derrubados a fim de obter os objetos do desejo demonstram serem contornáveis, trazendo à luz a lei profunda da natureza, que a tudo contorne e supera sem destruir. Tivessem os dois mais velhos desrespeitado o menor e atacado os bichos, não teriam chegado ao castelo e às farturas. Essa ideia de recompensa é reforçada, no final, quando os irmãos recebem as outras filhas do rei; eles não eram tão sutis quanto o menor, mas foram sutis o bastante para perceber a malícia dos seus desejos e abortar as ideias toda vez que o mais novo aconselhava. A natureza oferece farturas a quem souber respeitá-la, mesmo que não saiba amá-la, como é o caso dos dois irmãos. E a quem souber amá-la terá para si o amável também: a mais amável filha do rei é uma oferenda sagrada que a natureza oferece às almas de ouro, que no amor se fundem com ela, a mãe-terra, como em uma mesma essência. Não há, notamos, subjetividade no mais novo, nem sua contraparte objetividade (há nos mais velhos: o uso da técnica para atacar os bichos concebe um sujeito, o agente, e o objeto, o mundo, de quem deve ser retirado um bem para suprir unicamente os primeiros), há um modo de vida imparcial e, nas nossas palavras modernas, místico, de unidade com a natureza, portanto familiaridade, proximidade, piedade e, por fim, o amor silencioso e profundo. O mais novo via na natureza um "pedaço" de si mesmo, era a ordem do todo que lhe importava, e o todo inclui em um mesmo o mundo e ele próprio, o Bobo.

Só o amor místico, a inocência quixotesca, é capaz de eliminar o feitiço que recaiu sobre o mundo e transformou os homens em pedras. Ainda dizemos quando alguém é demasiadamente frio: "ele é uma pedra", ou "tem um coração de pedra". Sabemos bem o que isso quer dizer, embora o termo atualmente seja usado para muitas situações diferentes, e nem sempre é referido a homens impiedosos. No caso do conto, aqueles que não se uniram à fluidez natural do mundo foram transformados em pedras, jogados para dentro de sua subjetividade, abandonados, expulsos da vida orgânica. O nosso mundo moderno, aqui, é representado pelos dois irmãos, com a exceção de que o mundo moderno, sejam os conselhos que recebe, jamais poupa a natureza, a vida e a inocência -- com a presença do moderno, não teria havido, no conto, o respeito à autoridade do irmão "tolo", os bichos teriam sido maltratados e o feitiço jamais teria sido quebrado. É o que acontece nesse nosso mundo há vários milênios. Em se tratando de "tolice" redentora, citamos mais um mito de Percival, um dos cavaleiros da Távola Redonda, narrado por Eliade:

Lembramos a misteriosa doença que paralisou o velho Rei, detentor do segredo do Graal. Aliás, ele não era o único que sofria; tudo em torno de si desabava, desmoronava: o palácio, as torres, os jardins; os animais não mais se reproduziam, as árvores não davam frutos, as fontes secavam. Inúmeros médicos tinham tentado tratar o Rei Pescador -- sem o menor resultado. Dia e noite chegavam os cavaleiros, e todos começavam por perguntar as novidades sobre a saúde do Rei. Um único cavaleiro -- pobre e desconhecido, até um pouco ridículo -- permitiu-se ignorar o cerimonial e a cortesia. Seu nome era Percival. Sem levar em conta o cerimonial da corte, ele se dirige diretamente ao Rei e, aproximando-se dele, sem nenhum preâmbulo, pergunta-lhe: "onde está o Graal?". No mesmo momento, tudo se transforma: o Rei levanta-se do seu leito de sofrimento, os rios e as fontes começam a jorrar, a vegetação renasce, o castelo se restaura milagrosamente. As poucas palavras de Percival tinham sido suficientes para regenerar toda a Natureza. Mas essas poucas palavras constituíam a questão central, o único problema que podia interessar não só ao Rei Pescador mas também ao Cosmos inteiro: onde se achava o real por excelência, o sagrado, o Centro da vida e a fonte da imortalidade? Onde se encontrava o Santo Graal? Ninguém havia pensado, antes de Percival, em formular esta pergunta central -- e o mundo morria por causa dessa indiferença metafísica e religiosa, por causa dessa falta de imaginação e ausência de desejo do real. (Imagens e Símbolos, Martins Fontes, julho de 2012, pp. 51-2)

Neste relato de Percival vemos elementos e dramas muito parecidos com os do conto que abriu este nosso texto: uma figura simples, "pobre", que não conheceu os caprichos da corte, repleto de virtude e fé na experiência e no mistério da vida, quebra o feitiço, ou melhor, cura a doença incurável do Rei, que é a mesma que se abate sobre a natureza. O misticismo neste mito está implícito na fé de Percival, uma fé primitiva e cheia de um frescor valente, jovem, luminoso. Neste aqui Percival não se torna um Rei, mas traz um Rei de volta, o que se equivale, visto que o Rei não é uma pessoa, mas um elemento místico que pertence à Natureza.

No caso do conto de fadas narrado aqui, o Bobo herda o trono, a coroa, se torna o rei. Quer dizer que o reinado, que pertence à natureza, é uma função da própria natureza, e só aquele que reiná-la, ao invés de corrompê-la, portanto guiá-la e protegê-la, deve se tornar, realmente, um rei, um protetor, um pai. A natureza oferece a cada um o que é devido, e aqui podemos lembrar a doutrina aristotélica dos lugares naturais, em que cada ser tem seu lugar natural; Aristóteles certamente absorveu em sua doutrina uma sabedoria antiga, mas a corrompeu, a racionalizou, e o "lugar" se tornou meramente um "espaço", um ponto em um mapa cartográfico. Voltando ao conto, o lugar devido de uma alma que protege é o reinado -- há atividade por parte da alma que voluntariamente protege a natureza, e passividade, mas também um movimento complementar que retribui imediatamente, não moralisticamente, mas eroticamente (a proteção é por amor, e amor é proximidade e união, portanto diálogo profundo), por parte da natureza. A mesma passividade encontrada na natureza está implícita na mulher, no caso das filhas do rei, que por ser identificada à natureza e oferecida ao Bobo como que algo de si mesma, a natureza lhe oferece um pedaço de si, um cristal da sua essência. E a mulher é um cristal, um mineral do cosmos, um tesouro. O cristal mais puro dos três que o rei tinha alcançou sua contraparte devida.

No mundo moderno estas leis naturais não funcionam, pois estão rompidas em sua continuidade por irmãos maus que corrompem a natureza. Os três irmãos só alcançaram o castelo e o feitiço só foi quebrado porque o mal não chegou a ser lançado; nós modernos, pelo contrário, não temos a chance de pôr a prova a natureza, de esperar dela o que nos é devido, porque ininterruptamente tentamos arrancar dela o que queremos. Antes mesmo de sairmos à floresta já estamos transformados em pedras brutas destruidoras, em velhos doentes. Na modernidade, a autoridade só é respeitada, seja boa ou ruim, ao ser tomada pela força e pela brutalidade, e só a força tem autoridade, o caráter já não conta mais, a sutileza, a profundidade, a sabedoria, nada disso é reconhecido, nem mesmo respeitado. E aqui o conto nos ensina algo mais, nos dando previsões dos tempos, de que só há a possibilidade de reconciliação com a natureza, e da obtenção do nosso lugar no mundo, caso nos atentemos aos princípios metafísicos disponíveis de imediato no mundo e na experiência humana, que nos apresentam os deuses e nos iluminam nosso união originária com a natureza; o desenvolvimento do caráter não é algo que acontece na abstração, no simples "dever" normativo e imposto, mas está intimamente ligado à ordem existencial do mundo apresentada nas relações naturais: na contemplação da beleza e harmonia do mundo, na hierarquia do kósmos, que também são a beleza e harmonia do homem e das relações humanas, a hierarquia que distingue o lugar de cada um na sociedade -- é na natureza que observamos a eterna e contínua colaboração e participação das partes complementares em um todo, um mesmo único, para todos. O mundo moderno só voltará a reconhecer a ordem humana quando se voltar para as sutilezas da natureza, pois nela estão as chaves para quebrar o feitiço, e só será possível encontrar estas chaves quando mudarmos nossa maneira de tratá-la, pararmos um pouco a fim de observá-la e descobrir nela os mistérios e as respostas pelas quais ansiamos no íntimo. É a própria natureza quem nos trará as chaves ao sentir que podemos recebê-las, porque já estamos de ouvidos abertos e podemos ouvi-la cantar -- e é sutil, miúdo, muito frágil o canto dela.

Como podemos perceber, um conto de fadas tem muito a nos ensinar, tanto sobre moralidade, sobre relações humanas básicas, sobre as emoções humanas, quanto sobre metafísica e ciências mais avançadas. Mesmo assim, estamos certos de não ter esgotado este conto, há muito mais a se falar e pensar sobre ele; mas mesmo que investíssemos em discursar a fim de esgotá-lo, não teríamos sucesso; o conto não apresenta uma divisão simbólica artificial, ele não é construído arbitrariamente com partes individuais, avulsas, passíveis de serem distinguidas. Pelo contrário, cada "parte" dele está a serviço do todo, da ideia do todo, e somos nós que fazemos o esforço de recortá-lo a fim de salientar certos valores que nos são transmitidos inseparavelmente com todos os outros por inteiro, intuitivamente. O conto fala uma linguagem intuitiva, de apreensão natural por parte do Geist -- os valores são introduzidos no conto pela sutileza e pelo Geist do povo no seio do qual o conto foi formado tradicionalmente; e é o mesmo indivíduo pertencente ao povo, em cujo seio também queima o Geist popular, capaz de apreender o conteúdo implícito na linguagem discursiva, mas claro, luminoso, quando atinge a imaginação humana. A imaginação trata de interpretar intuitivamente aquilo que está por trás das meras palavras e é engastado pelo Geist do qual ela mesma é feita. Só ela, no homem, tem as chaves necessárias para a compreensão da natureza e da realidade como um todo. Não são as barafundas dos cientistas, mas a imaginação e o Geist que carregam as chaves do conhecimento e dos mistérios da vida.

O conto é um fenômeno vivo e fala por si, por isso dispensa explicações. Se a arte moderna se obrigou a explicar suas "obras" é porque não é mais arte, mas pura técnica -- ela perdeu a linguagem do Geist, que, não obstante, permanece viva nos contos de fadas (não aqueles corrompidos pela Disney, que transformou as histórias, imprimindo novos e decadentes significados em questão de minutos e caneteadas arbitrárias em laboratórios, mas os antigos e originais formados durante milênios de experiência e observação humanas, que falam a linguagem do ser e transmitem o logos). E, por falar a linguagem do Geist, não há contra-indicações, e tanto as crianças quando os adultos, tanto o filósofo quanto o agricultor, são capazes de compreender. Aqui notamos uma citação de Hayao Miyazaki, diretor de animes muito interessado em contos japoneses e até ocidentais, que reproduz um pouco o que estamos a dizer: "uma vez uma mulher que trabalha na produção [dos animes] me contou que as crianças devem assistir coisas que elas não compreendem no momento, mas compreenderão mais tarde -- ora, eu nunca concordei com isto". Miyazaki também pensa que o que se pode saber da vida se pode saber a qualquer momento, independentemente da educação recebida, porque não é a mente racional que conhece, mas o coração humano ou a alma humana, que falam outra língua e compreendem outra língua, uma língua silenciosa e que nos atinge imediatamente na alma. Por isso, seus animes silenciam quando os modernos imprimiriam diálogos insossos, e falam através do exemplo, através da demonstração das sutilezas, sem se limitar a imprimir significações precisas e já orientadas por uma interpretação particular. Ao invés de ordenar a contemplação, mostra o que há para contemplar, e deixa nossa alma contemplar por si, ativamente, participando de sua obra. É como presenciar um ritual dionisíaco e místico, onde enxergamos os deuses e os ouvimos falar diretamente à nossa alma, não como telespectadores, mas como participantes do kósmos no qual eles habitam.

Para terminar, deixamos mais uma citação, desta vez diretamente dos "mistérios", do Corpus Hermeticum, que arrematará muito do que dissemos neste texto:

Se você não se fizer igual a Deus, não poderá apreender Deus, porque o semelhante é apreendido pelo semelhante. Ultrapasse todo corpo e se expanda para a grandeza imensurável; supere todo tempo e se torne eternidade: assim você deve apreender Deus... abrace em ti todas as sensações de todas as coisas criadas, do fogo e da água, do seco e do molhado; esteja simultaneamente em todos os lugares, no mar, na terra e no céu; seja de uma só vez um nascido e esteja ainda no útero, seja jovem e velho, esteja morto e além da morte; e se você conseguir segurar todas essas coisas juntas, os tempos e lugares e substâncias, qualidades e quantidades, então você pode apreender Deus. Mas se você subestimar sua alma e fechá-la no seu corpo, se disser "eu não sei nada, eu não consigo nada, eu tenho medo do mar, eu não consigo escalar o céu; eu não sei o que fui nem o que devo ser", nesse caso o que você tem que ver com Deus? (XI, 20, retirado de Dodds, Pagan and christian in an age of anxiety, p. 82).

[1] http://portal-legionario.blogspot.com.br/2016/07/contos-de-fadas-sao-mais-antigos-que.html
[10/02/2017]

sábado, 24 de dezembro de 2016

O Belo, a Experiência da Unicidade

Dragosh Kalazhich
Deus é invisível porque ele é imensuravelmente manifesto.
– São Dionísio, o Areopagita

Em um texto anterior sobre linguagem, tendo discutido acerca do ser e da natureza, a phýsis, pudemos mergulhar na harmonia fluida intrínseca à natureza que permeia todas as coisas, sendo ela o fundamento de todas elas juntas e fundidas num mesmo ser. Agora temos o interesse de discutir outros conceitos e aspectos da mesma natureza, sobretudo a beleza.

O mundo moderno é uma negação da beleza; ele nos apresenta o espetáculo, o show de luzes, um simulacro invertido do belo. E, captando as atenções do público, transforma para ele o que é belo em feio e o que é feio em belo. Vejamos mais de perto como isto acontece:

O espetáculo é uma arte, uma tekhnê, por isso sua essência consiste na separação, na abstração. A arte é um recorte e um isolamento de uma parte da natureza indivisível. O espetáculo é assim um mosaico de formas abstratas que, não cooperando com a fluidez natural, se opõe a ela, buscando permanecer íntegro e intocável no interior do ser como algo alheio a ele. Com isto, cria-se “o outro”, algo que no seio dos fenômenos se apresenta como diferente, mesmo não sendo (uma vez que o recorte é feito sobre a natureza ela mesma). Então surge uma divisão no interior da natureza, cisão que é abstrata porém partícipe da economia dos fenômenos, e por isso mesmo influente – pois, sendo um simulacro, é uma imagem que falseia o real para aqueles que estão dentro (como os homens, que estão dentro da natureza e enxergam tanto a phýsis quanto a tekhnê).

Fundamentalmente falando, tudo é phýsis. A tekhnê é só um simulacro feito a partir da própria phýsis, um simulacro que busca contorcer e destruir a natureza da qual ele provém; é algo que pretende fazer do produto da natureza algo que não está permitido em seu logos, tal como o diabo busca construir o mal dentro da criação divina, produto do bem supremo. Embora este seja um esforço originariamente fracassado, ele é capaz de captar as atenções de fenômenos partícipes e irmãos na economia do ser, fazendo-se passar como algo subsistente e de realidade própria (por ser “o outro”, por ter construído assim uma individualidade abstrata), e assim enganá-los, estabelecer-se como “o verdadeiro” em oposição à natureza, que, por calar-se, passa ela a ser “a outra” e o falso. Mas de que modo ocorre este movimento?

Primeiro vimos que a arte surge como “o outro” e neste movimento ela se individualiza; na medida em que surge, aparece como um indivíduo, um átomo (a-tomo: indivisível). Imitando a totalidade indivisível da natureza, a arte se faz uma parte indivisível, pelo menos na sua relação com os entes no interior do ser – uma vez que na totalidade ela não tem subsistência própria, mas desaparece no todo como qualquer ente. Mas ao aparecer assim aos ente ela torna a experiência deles, que antes era imediata como acontece em toda totalidade uma, agora mediada por um “outro” que toma o papel de representar algo que é a priori dado. O espetáculo se põe entre os fenômenos como a representação do ser fundamental e originário que acontece unicamente na experiência imediata, na presença do ser por parte dos fenômenos que se relacionam fluidamente. A arte, assim, corta esta relação fluida e imediata, rompe a naturalidade da natureza, criando no seio indissoluto um simulacro que consiste na cisão entre coisa e representação, entre sujeito e objeto, entre sujeito e predicado; e esta cisão é o germe da individualização ou atomização de todo o ser, uma atomização que jamais alcança um fim porque se desenrola na infinitude do ser.

Antes da arte, os fenômenos experimentavam a totalidade do ser em si mesmos e o si mesmo no mundo, sem distinção entre eu e mundo. Agora, o ser é experimentado a partir da sua representação, o que é o mesmo que não ser experimentado. Uma vez que o fenômeno é uma fantasia (uma aparição) do todo, ele não pode experimentar sua existência senão na imediatez com o todo, jamais através de representações. E uma vez surgida a representação e com ela a cisão, abre-se um movimento decadente e interminável de representar e dividir, a fim de apreender o ser já não mais apreendido – todavia, este movimento, baseado num impulso de espelhamento do real (especulação vem daí), ao invés de trazer o ser para mais próximo da experiência, limita e impede cada vez mais este encontro, constrói barreiras cada vez mais intransponíveis. E isto explica o movimento de constante complexificação na história ocidental desempenhado pela linguagem, pela filosofia e pelas ciências em geral, incluindo a teologia, complexificação acompanhada do esvaziamento de sentido do ser ele mesmo. Pois, após a cisão entre sujeito e objeto, como seria possível reuni-los novamente se todo instrumento para tal desempenha o papel da arte e nela está inserido? Como seria possível reunir ser e fenômeno através de um ato representativo do ser se é este mesmo ato que se põe entre os dois polos? Este ato é semelhante ao da mulher intelectual, destituída do erotismo ao longo da vida, “castrada”, que busca resgatar a experiência sexual mais íntima e intensa através de palavras elogiosas e falsamente festivas, teatrais. Ao invés de excitar, ela espanta; mas é tudo o que ela sabe fazer e pode fazer sob o domínio da arte, que tomou sua mente passiva.

A Feiura

Esta cisão, uma desidentificação (um desencontro) entre os fenômenos e a consequente sensação de estranheza, de “não pertencimento” à representação, é a feiura. A feiura é esta falta de harmonia na economia do ser, que todavia é relativa à experiência dos fenômenos, não da totalidade do ser consigo mesma, que é imutável. Quando o homem, por exemplo, sente a feiura do mundo, é porque está enclausurado em si mesmo (por motivos variados, nem sempre é culpa sua), incapaz de se projetar para fora de si e assim encontrar-se com os demais fenômenos. Esta incapacidade se deve a uma desorientação na experiência do homem com o mundo, ora porque o ambiente no qual está o homem é desordenado pela abstração, ora porque o homem foi confundido por conceitualizações, ora ambos. E isto traz angústia, a sensação íntima de que algo está errado e perdido, um vazio; é quando o homem se questiona “por que há ser e não o nada?”, tendo ele perdido a experiência do ser sem, contudo, ter encontrado o nada. E aqui nasce a filosofia, a busca pelo fundamento perdido.

A percepção da beleza é uma experiência mística. Ninguém pode dizer que percebeu a beleza de um objeto externo a si sem ter sentido uma identificação com ele. A beleza não é um traço particular acidental que enxergamos nos objetos; ela não é azul nem verde, nem suave nem dura, e ao mesmo tempo ela pode se manifestar com todas essas características ou simplesmente não se manifestar nelas. A beleza não tem objetividade. Mas tampouco tem subjetividade: a beleza não é algo aleatório cuja percepção varia conforme o sujeito; todos são capazes de percebê-la, assim como são capazes de perceber a feiura. Por exemplo, por mais que o conceito de beleza tenha se alterado consideravelmente com o advento da modernidade, ninguém está autorizado a dizer que o mundo moderno e a arte moderna são belos – seus defensores, eles mesmos, alegam que a modernidade traz conforto, direitos etc., mas ninguém se arrisca seriamente a defender que ela é bela; pelo contrário, os argumentos mais costumeiros tendem a questionar a beleza enquanto princípio civilizacional. Mas onde está então a beleza?

Disso extraímos, primeiramente, que a beleza não pode ser considerada um fenômeno meramente estético. Isto seria defini-la como objetiva e/ou subjetiva ao passo que ela não pode ser nenhum dos dois. A beleza envolve algo do sujeito que não se restringe à experiência empírica. Notar o belo em algo é conhecê-lo, e conhecer é o tipo de contato mais íntimo entre dois polos; como poderia, então, se tratar de uma mera reunião entre sujeito e objeto, quando ambos os polos estão eternamente separados? Como se poderia conhecer algo sem pertencer a um mesmo com ele, e como se poderia pertencer a este mesmo dentro do paradigma do sujeito-objeto, baseado na representatividade do ser e, portanto, na atomização dos entes? Se os entes forem átomos, não pode haver nada que os conecte, pois cada um seria um universo fechado. Como, então, é possível que experimentamos o belo nas coisas, sem que isto seja uma mera observação das qualidades acidentais do objeto?

A própria possibilidade de experimentarmos o belo é uma prova de que não somos átomos, mas estamos intrinsecamente conectados com algo de invisível, imprevisível e misterioso que permeia o mundo como um todo. É misterioso, contudo, a nós, modernos, que perdemos o sentido, a sabedoria antiga, sobre este todo. Para os antigos, não havia o espanto da existência, eles possuíam uma tranquila certeza do nascimento à morte; nós, modernos, é que somos cheios de dúvidas existenciais. Não obstante, o homem moderno que começa a duvidar é o que se encaminha rumo à certeza dos antigos – o resto, embriagado no cotidiano dos outdoors, festas etc., ainda sonha com uma certeza sobre o mundo que jamais possuiu, e esta certeza será posta à prova algum dia, geralmente com alguma grande tragédia que rompe a “ordem” normal da vida cotidiana. A experiência do belo é intrínseca à certeza sábia da fluidez e simultânea permanência da totalidade do ser. É o “estar em casa” daquele que se identifica com o ser, pois a morada dos fenômenos será sempre a totalidade indivisível do ser. Perceber isto, isto é, conhecer, é experimentar a presença do belo, que é a total harmonia de todas as coisas (o reflexo cognitivo das relações mútuas da totalidade).

Mas nas cidades modernas, baseadas na pura arte abstrata senão no próprio interesse de tornar as coisas propositalmente feias, não podemos experimentar esta naturalidade do ser. Tudo é objeto e sujeito. Vejo um livro, um prédio, uma placa, e vejo assim coisas diferentes de mim mesmo, vejo um “outro” fora de mim. Apesar de que estes objetos estão sujeitos às mesmas leis naturais que eu, se deterioram e se transformam e a cada momento “deixam de ser” eles mesmos como as coisas naturais, apesar disso eles se apresentam a mim representando um outro ser, alheio a mim. A placa é a placa, não tenho nada a ver com ela. E isto se intensifica pelo fato de que a placa tem um dono, que não sou eu, e propagandeia uma empresa que pertence a outra pessoa. Assim, tudo é analisável (paradigma analítico), tudo está objetificado, por mais que fundamentalmente a realidade seja distinta e tudo isso não passe de mera abstração e convenção. Fundamentalmente não houve alteração no ser; mas a arte (técnica), representando, engana, e mantém assim presa e escravizada toda uma civilização: escravizada por uma mera convenção, uma ilusão (a enganação pelo jogo de espelhos, orquestrada por uma figura diabólica nas mitologias). Desse modo, enquanto o mundo é objetificado, o homem é subjetificado, distanciado do mundo e abandonado às contingências da sua própria “interioridade”, de seu próprio nada. Nestas condições, fica difícil até mesmo para o homem experimentar a beleza em alguma coisa.

A feiura se caracteriza, então, por esta pobreza, este vazio, mas um vazio positivo que se opõe à natureza e por isso provoca angústia. As dores, os deveres e os prazeres do mundo moderno se dirigem sempre ao sujeito dentro do paradigma sujeito-objeto: o homem vai a uma festa para caçar um prazer que está solto no ambiente, ele tem compromisso profissionais que lhe oprimem enquanto uma individualidade que possui obrigações independentes e isoladas do resto do mundo. Desse modo, até os prazeres causam angústia, pois se não trazem o fenômeno à sua morada não servem de nada.

A Beleza

A beleza, pelo contrário, desvela uma identidade eterna entre o que vê e o visto. Em um nível sensível, ela instiga a imaginação e a criatividade a galgar e se elevar até entrar na coisa vista juntamente com aquele que o vê – neste estado, ela provoca a contemplação das ideias eternas e a meditação profunda. O homem finalmente se vê sentado em sua morada. Uma pintura é bela porque cada uma das partes que compõem o todo estão entrelaçadas e perfeitamente de acordo na economia do quadro, refletindo a sutileza das leis naturais – a percepção desta totalidade faz o contemplador sair de si para experimentar a essência do próprio ser, que é total e orgânico.

A beleza não é mera estética, já afirmamos que é uma experiência mística. A totalidade no visto é a que o sujeito carrega dentro de si e a que permeia o ser. Um quadro, todavia, ainda é uma arte, e representa, mais ou menos conforme a habilidade do pintor, uma ordem que está no mundo – sua representação é rude e bastante grosseira, a fim de explicitar mais claramente uma harmonia que na natureza vive de modo muito mais sutil e de difícil apreensão ao homem das cidades. Não obstante, a harmonia da natureza é muito mais rica; enquanto o quadro pode ainda ser cortado, repartido, suas pinceladas podem ser distinguidas, no mundo natural a harmonia é indivisível em absoluto, e a relação das “partes” dela entre si é imensurável. Por este mesmo motivo, a contemplação da natureza é interminável e inesgotável – a cada instante da contemplação se sabe tudo, se tem a certeza sábia, mas ao mesmo tempo é como se se apreendesse algo de novo, uma nuance nova, uma perspectiva nova.

A apreensão do belo não é, sendo uma experiência mística, oriunda de um impulso voluntário do homem de sair de si, como creem as fantásticas bobagens dos adeptos da Nova Era (New Age), que se sentam uma hora por semana para se conectar com o sol. Pelo contrário, é uma experiência espontânea, não forçada, livre do atento observador, portanto destituído de quaisquer interesses e preconceitos na sua observação. A experiência simplesmente acontece; a participação do homem é somente a de proporcionar as condições, vivendo em um ambiente belo, por um lado, e, por outro, mantendo-se limpo dos interesses. Só uma tal alma, que não espera abarcar a experiência em qualquer noção preconcebida, e dizemos dessa alma que é inocente, é capaz de observar a totalidade que o ser dispõe em seus ínfimos detalhes inesperados – caso a alma não se mantiver limpa dessa maneira, não apreenderá nada de inesperado, e o que é inesperado é justamente o que lhe falta e busca.

Até aqui falamos da apreensão do belo. Mas o que é o belo? É a própria economia do ser em seu estado natural, que é uma relação cognitiva da totalidade consigo mesma (o real é múltiplo de relações, não sendo ele uma coisa ou um conjunto de coisas que se relacionam, pois é as próprias relações). O princípio mais perfeito para a produção das formas acidentais é o ser e a alma do mundo – esta produção chama-se phýsis, natureza, uma vida eterna que está sempre produzindo a si mesma. Nada tem tal domínio sobre a harmonia das formas além dela mesma – portanto, nenhum ente, nenhum artista no mundo, para o qual o ser aparece parcial e não totalmente em seu princípio.

O belo é essa agradabilidade cognitiva que constitui a experiência imediata das partes entre si, para as quais a harmonia do todo é sua própria morada. As cidades modernas obstruem essa harmonia fluida, que é obrigada a contorná-las tal como uma planta contorna um muro, uma calçada e um asfalto. O contorno é sempre feito com sucesso, pois não há nada que possa impedir o ser de ser ele mesmo em sua atividade harmônica em sua totalidade, mas esse contorno, que é uma espécie de atraso, de obstrução da harmonia, gera a dor. A falta da imediatez, que a mediação pela arte consegue criar, é uma constante obstrução no fluxo da natureza, e essa obstrução joga os fenômeno uns contra os outros, como indivíduos isolados pela mediação, que faz lidar com o mundo como um “outro” – isso, por sua vez, desaloja a todos de sua morada que é a experiência da totalidade imediata com o fluxo total da phýsis.

Toda arte é uma mediação, e toda mediação é limitação. E toda limitação é como o impedimento de comer daquele que está faminto. Os fenômenos são todos famintos pela totalidade – na imediatez, eles são transmutados e se identificam ao ser, mas na mediação eles permanecem isolados e carentes de seu fundamento, motivo que os faz decair imparavelmente na busca desenfreada deste fundamento através de uma contínua complexificação da atividade representativa. Eles tentam provar o ser, ou então recriá-lo em imagens, sem contudo alcançar seu objetivo, aprofundando ainda mais sua carência e limitação.

Enquanto a phýsis é um universo de relações que se anulam no todo harmônico, a técnica cria neste universo um corte nas relações, dando nomes a estes entes delimitados pelo corte, dividindo o universo indivisível, assim, artificialmente em átomos, em elementos constituintes de um conjunto maior. O universo, assim, passa a ser considerado este conjunto de elementos, e a sagrada fórmula platônica do “todo ser maior do que a soma das partes” é substituída pela concepção de que o todo é o próprio conjunto das partes e, não só isso, mas o todo é em si definido qualitativamente pela natureza dos seus elementos, que se fundamenta na separação do indivisível. O todo, antes ele mesmo concebido como átomo (indivisível), é subjugado a um significado diametralmente oposto, que é o de ser constituído por átomos fundamentais, agora na qualidade de elementos. Dessa forma, a diferença entre a concepção holística e a técnica não é meramente uma mudança de perspectiva, mas de natureza, trata-se de uma alteração qualitativa na ontologia, e ambas, por este motivo, não podem conviver no mesmo mundo em respeito e tolerância mútua, pois uma nega a outra. De um lado, as relações puras, que negam em sua fluidez qualquer concepção de substância, de outro, as substâncias ou elementos, que resistem contra as relações e se definem pela negação delas, uma vez que a substância é algo completo, inteiro e independente (subsistente, por si).

Quanto à disputa pela verdade destas duas doutrinas a própria história humana é testemunha; e quanto à verdade de uma ou de outra, fica nítido por nossa própria reflexão que a visão-de-mundo da técnica é uma perversão da natureza, uma vez que ela se apropria desta última para existir, como um parasita do ser. Enquanto a phýsis demonstra ser o real inefável, a técnica busca dizê-lo e, ao fazê-lo, introduz um sentido particular e desviado, meramente abstrato e representativo de um real que já é, a priori.

A beleza é um evento só possível pela realidade das relações puras. No interior da fluidez, tudo está como que para o todo e tudo é como deve ser, e tudo deve ser como é; este “ajuste perfeito” do todo é sentido como um prazer absoluto para este todo ao qual nada lhe falta. E sendo deleitável é belo e bom; não há carência, portanto não há uma ausência de sentimento do bem, logo não há o sentimento do feio, que é uma carência e, por isso, causa angústia e sentimento de vazio. Pelo contrário, o que o todo precisa e quer, assim o tem, e isto só acontece porque as relações internas são absolutas, ao ponto de não se distinguir nele átomos, porque se houvessem átomos seriam eles impedimentos, barreiras que resistem contra as relações, como pedras no mar que se opõem ao fluxo perfeito e suave das águas. Mas não há esse atomismo na natureza, e até as pedras do mar a ele estão ligadas por um continuum, e se desgastam e se restituem interminavelmente e nunca são as mesmas pedras – o mar, assim, é o prolongamento das pedras, e estas são como que cristalizações do próprio mar. Não há pedras e não há mar, há um todo “pedrar” ou “maredra”, a despeito da ilusão que cria a nossa linguagem.

A Unicidade

Nosso raciocínio até aqui sugere que, ao falarmos de beleza, acabamos necessariamente por investigar a natureza, a essência, do real. A experiência do belo não é a percepção de algo objetivo e fechado em si mesmo, nem um sentimento subjetivo capaz de ser delimitado pelo pensamento, mas a própria natureza da existência e do real enquanto tais. O modo de ser do real é a beleza, e deste real nós participamos sem abarcá-lo, mas como que banhados e mergulhados na sua essência, uma vez que dele somos feitos e tudo com que nós nos relacionamos também é.

É impossível, portanto, buscar a beleza em si. Ela é o modo de ser de algo, não um algo específico. Ela é o evento, o ato deste algo que é o real – e o real, sendo existência, é um evento, não uma coisa em si delimitada substancialmente, como queria Aristóteles. Assim, torna-se obsoleta a busca pela beleza diretamente, quando dela depende toda a realidade e a vida – busca-se o belo como o indivíduo desconsolado corre atrás de uma pílula anti-depressiva, sem notar que o remédio está no todo, logo em si mesmo também enquanto partícipe do todo.

O belo é manifesto acidentalmente, ele é o fenômeno do real. Para obtê-lo, deve se garantir o real, com sua harmonia indivisível. A busca cristã por um belo em si distanciou o homem do real e, consequentemente, do próprio belo; essa busca mira uma beleza abstrata, “o paraíso”, longe da terra, quando não há paraíso que não seja, para os seres vivos, este mundo aqui, onde nossa essência se encontra. Não estamos negando agora um estágio transcendente do ser; estamos apontando para o fato de que de um estágio transcendente só pertencemos enquanto a totalidade deste mundo “aqui e agora”, sendo impossível que hajam essências individuais como os peripatéticos imaginam das almas humanas e das coisas (substâncias).

Pois não há indivíduos, há tão somente um todo que se desenrola e se manifesta indefinível. A serenidade do belo não é como a do doente depois de beber uma pílula – mas acontece porque a totalidade em harmonia não se abate descontroladamente, mas está em uma total conveniência e satisfação: a energia não é perdida nem deslocada da sua rota, mas se direciona para onde deve ser recebida e cabe com perfeição; não faltando nem sobrando, assim, nada em lugar algum. É a unicidade que explica essa harmonia, a interrelação máxima do todo consigo mesmo, um todo que parece complexo e múltiplo sendo, não obstante, uma só realidade, um só evento.

Para “obter” o belo, não basta que criemos o espetáculo. Esta sede do espetáculo levou o Ocidente à modernidade, que hoje, já perdida e desiludida, não mais crê na existência do belo, simplesmente porque não o encontra onde o busca. Ao invés de buscá-lo no real, busca no abstrato, como se o belo fosse uma coisa criada e não a experiência do ser ele mesmo, a sutileza da realidade e da vida misteriosa, a luz do sol que penetra as nuvens ao longe e se dissolve muito gradualmente no vapor do aro pouco acima do chão, o desenho multicolor e terrivelmente detalhado de asas de borboleta, o olhar iluminado, suavemente adocicado e muito sutil e cuidadosamente desenhado da mulher da nossa vida. O belo está na ordem perfeita dos fenômenos, impossível de ser ultrapassada e vencida pelo gênio humano – eis o mistério! Que tipo de genialidade é essa que a tudo produz com tal maestria e permanece oculto, apenas se mostrando através da própria beleza daquilo que produz? O meio de se ir o mais longe em qualquer tipo de busca é a observação dessa ordem misteriosa, que não nos torna o gênio produtor das coisas que são, mas nos faz compreender tudo o que a nós está para ser compreendido. Aí nos tornamos também deuses plenificados e eternos, superiores a toda contingência e a toda imagem como o são a vida e a morte.

A Religião

Falar do belo e não falar de religião, ou em alguma tonalidade religiosa, é simplesmente não falar o que deve ser dito. A experiência do real, tanto o do real por si quanto a nossa do real (a diferença das duas é ilusória: o real sem nós não pode ser, e nossa experiência do real só é através da união, de uma espécie de misticismo, em que não existe mais o eu, mas o todo), é uma que exige um comprometimento existencial – não é um passa-tempo, não é entretenimento, não pode ser experimentado agora por alguns minutos para espantar o tédio. Pelo contrário, trata-se de uma missão pessoal, de uma entrega de si mesmo, de uma suspensão de tudo que pode ser considerado “preocupação cotidiana”, porque o real antecede as abstrações que inventamos e com as quais lidamos, por exemplo, o contrato de emprego e a televisão no mundo moderno, que se propõem atividades laicas, desligadas de todo compromisso.

No mundo antigo, sobretudo oriental, todas as atividades pertenciam aos rituais, e todas elas, portanto, voltadas para as necessidades vitais da natureza das coisas, como a alimentação e o sono. São atividades dadas pelo ser, não são construções sociais – portanto, há que lembrar sua relação com o todo, sua participação no universo, sua importância. Ao comer e ao dormir, a oração aos deuses, ao arar a terra, plantar e colher também, que são atividades relacionadas umas com as outras tanto quanto à nossa de comer e de dormir; e se não é pelo favor dos deuses nada disso seria possível, e o universo como um todo ordenado jamais existiria. O conjunto de todos esses fenômenos, assim ordenados, em meio a um mundo de belezas sublimes, é um mistério; estamos dentro e somos partes indissociáveis desse espetáculo natural que a todo instante é concebido pelos deuses; e os deuses estão por todos os lados, e se não é uma deusa a araucária que se ergue imponente no inverno o que é então?

Para o mundo moderno, a alimentação é pura contingência, resultado aleatório de uma evolução biológica, e é por isso que somos obrigados a comer hoje correndo, enfiar goela abaixo uma porcaria qualquer vendida na rua para não perdermos a energia diária necessária para o trabalho escravo em uma empresa inútil que só fabrica coisas inúteis para as grandes e pútridas massas humanas consumirem como animais egoístas e ambiciosos. Permanece a questão de Heidegger: para quê? Para onde? O mundo moderno não está interessado na realidade, está tão interessado nas ambições que esquece que a única satisfação possível está na experiência do real, que é holística, o oposto da ambição individualista, parcial, especializada, que move o eternamente inquieto e insatisfeito mundo moderno. O mundo moderno instrumentaliza o real em benefício do sujeito, que os modernos, em sua leviandade, sequer suspeitam que não passa de ilusão abstrata e que nada em comum com a realidade possui. O sujeito é mera representação, delimitação parcial de uma experiência que não cabe em representações – e assim mesmo, nestas condições a visão-de-mundo atomista, que está na base do conceito de sujeito (e de objeto), serve de fundamento para a metafísica moderna.

Falamos da alimentação, mas ela é só um exemplo para se notar a distância entre o real e a concepção moderna, para se notar como a vida como um todo é um fenômeno constante e contínuo do misterioso real e como o mundo moderno trata de apagar e destruir essa harmonia, usá-la para fins abstratos e, desse modo, desequilibrá-la e desorientá-la e, tirando-a de sua natureza, desfazê-la em seu fundamento. Mesmo assim, o real permanece, enquanto o mundo moderno se exclui ele próprio do real, ao menos tenta assim fazer, dominando o real; mas o real é indomável, e é o mundo moderno que se joga para o abismo, tal como o primeiro, pairando no céu estável, apenas observa o segundo se debater na terra, insensato, permanentemente instável e insatisfeito, tanto quanto ignorante sobre o que é a verdade ela mesma.

Quando falamos de religião, não queremos dizer “o cristianismo”, “o budismo”, “o judaísmo” etc., estamos falando de uma experiência própria do real, da admiração das sutilezas, do desafio da morte, portanto da vivência demorada e introspectiva de cada atividade vital das nossas vidas, que participam do real e que são o modo como dele participamos. A religião é o conhecimento por contato que os filósofos buscam desde Platão, sem jamais atingir, pelo simples fato de que se trata de um acontecimento imediato, por fora de todo esforço para alcançar alguma razão ou resultado em uma mera calculação lógica e linguística. Esse conhecimento é a própria experiência profunda e imediata que o homem tem com o mundo, o próprio ato de viver os limites da existência, de encontrar o infinito inabarcável pela linguagem. É como o andar do filósofo, já citado em outro lugar, que refuta, andando silenciosamente, o paradoxo de Zenão.

A decadência humana e a consequente inquietude do “progresso” histórico das civilizações, que vive buscando na “tese, antítese e síntese” essa experiência inefável, cada vez mais desesperadamente, pois cada vez mais afastada dessa experiência, levou o imaginário a supor uma Elêusis, o paraíso onde se encontram aqueles que lograram alcançar esse conhecimento, já reservado a poucos em meio ao caos. Em Elêusis se encontram os heróis, os sábios e justos, ou seja, aqueles que compreenderam a amplitude e a necessidade da moral, que não se restringe ao moralismo das leis, mas ao compromisso daquele que assume sobre si a própria existência como uma missão em aberto – a moral independe das leis, e até mesmo se opõe a elas; a moral, como diriam Platão e os neoplatônicos, é o meio pelo qual o homem limpa de si e do seu caminho todo o supérfluo, a fim de contemplar a luz da verdade, isto é, conhecer o ser, unir-se a ele.

A moral surge, então, como um meio de resgatar a experiência perdida, ou seja, de re-ligar-se à harmonia, por isso não se pode falar de religião sem moralidade. Mas uma coisa é a moralidade das antigas religiões, tradicionais, cujos mitos trazem à luz sua amplitude, seus motivos, hoje preservados nos contos de fadas e em boa parte da literatura clássica, e bem outra é o moralismo das leis que outorga o que se deve ou não fazer, cuja preocupação não é mais o conhecimento, mas a mera organização ou imposição de um modelo social, sem raízes na existência humana. É por isso que, revoltado contra este moralismo, surge o romantismo, com Cervantes, Goethe, Schiller, que reabrem aos homens a possibilidade do rebentar-se nos limites da experiência, não sem uma intensa preocupação moral, que seus personagens, personificando tendências humanas, manifestam com muita profundidade psicológica.

E, tanto nas religiões quanto no romantismo, a preocupação com a moralidade acompanha a experimentação da beleza, porque é ela mesma a manifestação deste conhecimento por contato do ser, alcançado por um rebento e uma força místicos. Porque o reino dos céus é dos violentos, já dizia o Cristo. Conhecer, assim, é estar unido ao todo uno, a experiência da unicidade e harmonia perfeita e bem ordenada de tudo que é; mas o que nossos antepassados possuíam por natureza nós, hoje, mergulhados no logocentrismo[1], temos que conquistar de volta, rompendo o ciclo vicioso da lógica sem, no entanto, cair no irracionalismo.

Independentemente do que a beleza é “em si”, nós só a percebemos enquanto um acontecimento iluminado, absoluto, que toma todo o nosso ser e o mundo em um turbilhão de agradabilidade pura. A beleza só é experimentada como um mergulho na essência do ser, para muito longe da alternância entre vida e morte concebidas como reinos separados. O belo é o limite, e o belo é a vida suprema e por isso mesma a experiência da morte, o limite máximo da existência. E o que é o Logos senão essa harmonia do ser manifesta no continuum, onde todos os contrários permanecem unidos na experiência da totalidade, como que fundidos e suspensos na inefabilidade; e o que é essa experiência senão o ser ele mesmo, que experiencia a si mesmo?

O belo é uma experiência, e esta é a phýsis, que não é outra coisa que a própria produção harmônica e eterna de tudo o que é, ou seja, a Natureza em sua totalidade, atividade e presença. A linguagem, quando destituída de sua essência mística, é pura técnica, arte abstrata e representação – e deste modo ela distancia e separa regiões do ser pre-determinadas pela abstração, pondo-se entre o sujeito e o objeto, criando um medium que em verdade é a obstrução da imediatez essencial do conhecimento por contato. E é daí que vem novamente à mente a teoria da verdade por correspondência aristotélica, fundamentada na separação, cujo paradigma é o da representação abstrata. Verdade por correspondência, princípio de não-contradição e o conceito de substância estão intrinsecamente interligados, um implicando os outros – todos fundamentados na ideia de separação abstrata, em total dissonância com a realidade: o continuum e a unicidade.

[1] Logocentrismo: termo visto em textos duguinianos, cujo significado se aproxima muito do nosso paradigma aristotélico, sobre o qual discutimos em Do Paradigma Moderno e do Tradicional,e da Linguagem. O logocentrismo significa o modelo de pensamento ocidental imposto por Aristóteles e que reina imparável pós-modernidade adentro, cujo fundamento é a lógica. Vimos Dugin discutir em termos muito próximos dos nossos sobre a separação, caráter da lógica e do logocentrismo, em textos ainda não traduzidos ao português e, quiçá também, nem ao inglês. Surpreendentemente ou não, suas afirmações partem de um estudo atencioso sobre o neoplatonismo, como é o nosso caso.