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Dragosh Kalazhich |
Deus é invisível
porque ele é imensuravelmente manifesto.
– São Dionísio, o
Areopagita
Em um texto anterior sobre linguagem, tendo discutido acerca do ser e da natureza, a
phýsis, pudemos mergulhar na harmonia fluida intrínseca à natureza
que permeia todas as coisas, sendo ela o fundamento de todas elas
juntas e fundidas num mesmo ser. Agora temos o interesse de discutir
outros conceitos e aspectos da mesma natureza, sobretudo a beleza.
O mundo moderno é uma
negação da beleza; ele nos apresenta o espetáculo, o show de
luzes, um simulacro invertido do belo. E, captando as atenções do
público, transforma para ele o que é belo em feio e o que é feio
em belo. Vejamos mais de perto como isto acontece:
O espetáculo é uma
arte, uma tekhnê, por isso sua essência consiste na separação, na
abstração. A arte é um recorte e um isolamento de uma parte da
natureza indivisível. O espetáculo é assim um mosaico de formas
abstratas que, não cooperando com a fluidez natural, se opõe a ela,
buscando permanecer íntegro e intocável no interior do ser como
algo alheio a ele. Com isto, cria-se “o outro”, algo que no seio
dos fenômenos se apresenta como diferente, mesmo não sendo (uma vez
que o recorte é feito sobre a natureza ela mesma). Então surge uma
divisão no interior da natureza, cisão que é abstrata porém
partícipe da economia dos fenômenos, e por isso mesmo influente –
pois, sendo um simulacro, é uma imagem que falseia o real para
aqueles que estão dentro (como os homens, que estão dentro da
natureza e enxergam tanto a phýsis
quanto a tekhnê).
Fundamentalmente
falando, tudo é phýsis.
A tekhnê é só um
simulacro feito a partir da própria phýsis,
um simulacro que busca contorcer e destruir a natureza da qual ele
provém; é algo que pretende fazer do produto da natureza algo que
não está permitido em seu logos,
tal como o diabo busca construir o mal dentro da criação divina,
produto do bem supremo. Embora este seja um esforço originariamente
fracassado, ele é capaz de captar as atenções de fenômenos
partícipes e irmãos na economia do ser, fazendo-se passar como algo
subsistente e de realidade própria (por ser “o outro”, por ter
construído assim uma individualidade abstrata), e assim enganá-los,
estabelecer-se como “o verdadeiro” em oposição à natureza,
que, por calar-se, passa ela a ser “a outra” e o falso. Mas de
que modo ocorre este movimento?
Primeiro
vimos que a arte surge como “o outro” e neste movimento ela se
individualiza; na medida em que surge, aparece como um indivíduo, um
átomo (a-tomo:
indivisível). Imitando a totalidade indivisível da natureza, a arte
se faz uma parte indivisível, pelo menos na sua relação
com os entes no interior do ser – uma vez que na totalidade ela não
tem subsistência própria, mas desaparece no todo como qualquer
ente. Mas ao aparecer assim aos ente ela torna a experiência deles,
que antes era imediata como acontece em toda totalidade uma, agora
mediada por um “outro” que toma o papel de representar
algo que é a priori
dado. O espetáculo se põe entre os fenômenos como a representação
do ser fundamental e originário que acontece unicamente na
experiência imediata, na presença do ser por parte dos fenômenos
que se relacionam fluidamente. A arte, assim, corta esta relação
fluida e imediata, rompe a naturalidade
da natureza, criando no seio indissoluto um simulacro que consiste na
cisão entre coisa e representação, entre sujeito e objeto, entre
sujeito e predicado; e esta cisão é o germe da individualização
ou atomização de todo o ser, uma atomização que jamais alcança
um fim porque se desenrola na infinitude do ser.
Antes
da arte, os fenômenos experimentavam a totalidade do ser em si
mesmos e o si mesmo no mundo, sem distinção entre eu e mundo.
Agora, o ser é experimentado a partir da sua representação, o que
é o mesmo que não ser experimentado. Uma vez que o fenômeno é uma
fantasia (uma
aparição) do todo, ele não pode experimentar sua existência senão
na imediatez com o todo, jamais através de representações. E uma
vez surgida a representação e com ela a cisão, abre-se um
movimento decadente e interminável de representar e dividir, a fim
de apreender o ser já não mais apreendido – todavia, este
movimento, baseado num impulso de espelhamento do real (especulação
vem daí), ao invés de trazer o ser para mais próximo da
experiência, limita e impede cada vez mais este encontro, constrói
barreiras cada vez mais intransponíveis. E isto explica o movimento
de constante complexificação na história ocidental desempenhado
pela linguagem, pela filosofia e pelas ciências em geral, incluindo
a teologia, complexificação acompanhada do esvaziamento de sentido
do ser ele mesmo. Pois, após a cisão entre sujeito e objeto, como
seria possível reuni-los novamente se todo instrumento para tal
desempenha o papel da arte e nela está inserido? Como seria possível
reunir ser e fenômeno através de um ato representativo do ser se é
este mesmo ato que se põe entre os dois polos? Este ato é
semelhante ao da mulher intelectual, destituída do erotismo ao longo
da vida, “castrada”, que busca resgatar a experiência sexual
mais íntima e intensa através de palavras elogiosas e falsamente
festivas, teatrais. Ao invés de excitar, ela espanta; mas é tudo o
que ela sabe fazer e pode fazer sob o domínio da arte, que tomou sua
mente passiva.
A
Feiura
Esta
cisão, uma desidentificação (um desencontro) entre os fenômenos e
a consequente sensação de estranheza, de “não pertencimento” à
representação, é a feiura. A feiura é esta falta de harmonia na
economia do ser, que todavia é relativa à experiência dos
fenômenos, não da totalidade do ser consigo mesma, que é imutável.
Quando o homem, por exemplo, sente a feiura do mundo, é porque está
enclausurado em si mesmo (por motivos variados, nem sempre é culpa
sua), incapaz de se projetar para fora de si e assim encontrar-se com
os demais fenômenos. Esta incapacidade se deve a uma desorientação
na experiência do homem com o mundo, ora porque o ambiente no qual
está o homem é desordenado pela abstração, ora porque o homem foi
confundido por conceitualizações, ora ambos. E isto traz angústia,
a sensação íntima de que algo está errado e perdido,
um vazio; é quando o homem se questiona “por que há ser e não o
nada?”, tendo ele perdido a experiência do ser sem, contudo, ter
encontrado o nada. E
aqui nasce a filosofia, a busca pelo fundamento perdido.
A
percepção da beleza é uma experiência mística. Ninguém pode
dizer que percebeu a beleza de um objeto externo a si sem ter sentido
uma identificação com ele. A beleza não é um traço particular
acidental que enxergamos nos objetos; ela não é azul nem verde, nem
suave nem dura, e ao mesmo tempo ela pode se manifestar com todas
essas características ou simplesmente não se manifestar nelas. A
beleza não tem objetividade. Mas tampouco tem subjetividade: a
beleza não é algo aleatório cuja percepção varia conforme o
sujeito; todos são capazes de percebê-la, assim como são capazes
de perceber a feiura. Por exemplo, por mais que o conceito de beleza
tenha se alterado consideravelmente com o advento da modernidade,
ninguém está autorizado a dizer que o mundo moderno e a arte
moderna são belos – seus defensores, eles mesmos, alegam que a
modernidade traz conforto, direitos etc., mas ninguém se arrisca
seriamente a defender que ela é bela; pelo contrário, os argumentos
mais costumeiros tendem a questionar a beleza enquanto princípio
civilizacional. Mas onde está então a beleza?
Disso
extraímos, primeiramente, que a beleza não pode ser considerada um
fenômeno meramente estético. Isto seria defini-la como objetiva
e/ou subjetiva ao passo que ela não pode ser nenhum dos dois. A
beleza envolve algo do sujeito que não se restringe à experiência
empírica. Notar o belo em algo é conhecê-lo, e conhecer é o tipo
de contato mais íntimo entre dois polos; como poderia, então, se
tratar de uma mera reunião entre sujeito e objeto, quando ambos os
polos estão eternamente separados? Como se poderia conhecer algo sem
pertencer a um mesmo
com ele, e como se poderia pertencer a este mesmo dentro do paradigma
do sujeito-objeto, baseado na representatividade do ser e, portanto,
na atomização dos entes? Se os entes forem átomos, não pode haver
nada que os conecte, pois cada um seria um universo fechado. Como,
então, é possível que experimentamos o belo nas coisas, sem que
isto seja uma mera observação das qualidades acidentais do objeto?
A
própria possibilidade de experimentarmos o belo é uma prova de que
não somos átomos, mas estamos intrinsecamente conectados com algo
de invisível, imprevisível e misterioso que permeia o mundo como um
todo. É misterioso, contudo, a nós, modernos, que perdemos o
sentido, a sabedoria antiga, sobre este todo. Para os antigos, não
havia o espanto da existência, eles possuíam uma tranquila certeza
do nascimento à morte; nós, modernos, é que somos cheios de
dúvidas existenciais. Não obstante, o homem moderno que começa a
duvidar é o que se encaminha rumo à certeza dos antigos – o
resto, embriagado no cotidiano dos outdoors,
festas etc., ainda sonha com uma certeza sobre o mundo que jamais
possuiu, e esta certeza será posta à prova algum dia, geralmente
com alguma grande tragédia que rompe a “ordem” normal da vida
cotidiana. A experiência do belo é intrínseca à certeza sábia da
fluidez e simultânea permanência da totalidade do ser. É o “estar
em casa” daquele que se identifica com o ser, pois a morada dos
fenômenos será sempre a totalidade indivisível do ser. Perceber
isto, isto é, conhecer,
é experimentar a presença do belo, que é a total harmonia de todas
as coisas (o reflexo cognitivo das relações mútuas da totalidade).
Mas
nas cidades modernas, baseadas na pura arte abstrata senão no
próprio interesse de tornar as coisas propositalmente feias, não
podemos experimentar esta naturalidade do ser. Tudo é objeto e
sujeito. Vejo um livro, um prédio, uma placa, e vejo assim coisas
diferentes de mim mesmo, vejo um “outro” fora de mim. Apesar de
que estes objetos estão sujeitos às mesmas leis naturais que eu, se
deterioram e se transformam e a cada momento “deixam de ser” eles
mesmos como as coisas naturais, apesar disso eles se apresentam a mim
representando um outro ser, alheio a mim. A placa é a placa, não
tenho nada a ver com ela. E isto se intensifica pelo fato de que a
placa tem um dono, que não sou eu, e propagandeia uma empresa que
pertence a outra pessoa. Assim, tudo é analisável (paradigma
analítico), tudo está objetificado, por mais que fundamentalmente a
realidade seja distinta e tudo isso não passe de mera abstração e
convenção. Fundamentalmente não houve alteração no ser; mas a
arte (técnica), representando, engana, e mantém assim presa e
escravizada toda uma civilização: escravizada por uma mera
convenção, uma ilusão (a enganação pelo jogo de espelhos,
orquestrada por uma figura diabólica nas mitologias). Desse modo,
enquanto o mundo é objetificado, o homem é subjetificado,
distanciado do mundo e abandonado às contingências da sua própria
“interioridade”, de seu próprio nada. Nestas condições, fica
difícil até mesmo para o homem experimentar a beleza em alguma
coisa.
A
feiura se caracteriza, então, por esta pobreza, este vazio, mas um
vazio positivo que se opõe à natureza e por isso provoca angústia.
As dores, os deveres e os prazeres do mundo moderno se dirigem sempre
ao sujeito dentro do paradigma sujeito-objeto: o homem vai a uma
festa para caçar um prazer que está solto no ambiente, ele tem
compromisso profissionais que lhe oprimem enquanto uma
individualidade que possui obrigações independentes e isoladas do
resto do mundo. Desse modo, até os prazeres causam angústia, pois
se não trazem o fenômeno à sua morada não servem de nada.
A
Beleza
A
beleza, pelo contrário, desvela uma identidade eterna entre o que vê
e o visto. Em um nível sensível, ela instiga a imaginação e a
criatividade a galgar e se elevar até entrar na coisa vista
juntamente com aquele que o vê – neste estado, ela provoca a
contemplação das ideias eternas e a meditação profunda. O homem
finalmente se vê sentado em sua morada. Uma pintura é bela porque
cada uma das partes que compõem o todo estão entrelaçadas e
perfeitamente de acordo na economia do quadro, refletindo a sutileza
das leis naturais – a percepção desta totalidade faz o
contemplador sair de si para experimentar a essência do próprio
ser, que é total e orgânico.
A
beleza não é mera estética, já afirmamos que é uma experiência
mística. A totalidade no visto é a que o sujeito carrega dentro de
si e a que permeia o ser. Um quadro, todavia, ainda é uma arte, e
representa, mais ou menos conforme a habilidade do pintor, uma ordem
que está no mundo – sua representação é rude e bastante
grosseira, a fim de explicitar mais claramente uma harmonia que na
natureza vive de modo muito mais sutil e de difícil apreensão ao
homem das cidades. Não obstante, a harmonia da natureza é muito
mais rica; enquanto o quadro pode ainda ser cortado, repartido, suas
pinceladas podem ser distinguidas, no mundo natural a harmonia é
indivisível em absoluto, e a relação das “partes” dela entre
si é imensurável. Por este mesmo motivo, a contemplação da
natureza é interminável e inesgotável – a cada instante da
contemplação se sabe tudo, se tem a certeza sábia, mas ao mesmo
tempo é como se se apreendesse algo de novo, uma nuance nova, uma
perspectiva nova.
A
apreensão do belo não é, sendo uma experiência mística, oriunda
de um impulso voluntário do homem de sair de si, como creem as
fantásticas bobagens dos adeptos da Nova Era (New Age),
que se sentam uma hora por semana para se conectar com o sol. Pelo
contrário, é uma experiência espontânea, não forçada, livre do
atento observador, portanto destituído de quaisquer interesses e
preconceitos na sua observação. A experiência simplesmente
acontece; a participação do homem é somente a de proporcionar as
condições, vivendo em um ambiente belo, por um lado, e, por outro,
mantendo-se limpo dos interesses. Só uma tal alma, que não espera
abarcar a experiência em qualquer noção preconcebida, e dizemos
dessa alma que é inocente, é capaz de observar a totalidade que o
ser dispõe em seus ínfimos detalhes inesperados – caso a alma
não se mantiver limpa dessa maneira, não apreenderá nada de
inesperado, e o que é inesperado é justamente o que lhe falta e
busca.
Até
aqui falamos da apreensão do belo. Mas o que é o belo? É a própria
economia do ser em seu estado natural, que é uma relação cognitiva
da totalidade consigo mesma (o real é múltiplo de relações, não
sendo ele uma coisa ou um conjunto de coisas que se relacionam, pois
é as próprias relações). O princípio mais perfeito para a
produção das formas acidentais é o ser e a alma do mundo – esta
produção chama-se phýsis,
natureza, uma vida
eterna que está sempre produzindo a si mesma. Nada tem tal domínio
sobre a harmonia das formas além dela mesma – portanto, nenhum
ente, nenhum artista no mundo, para o qual o ser aparece parcial e
não totalmente em seu princípio.
O
belo é essa agradabilidade cognitiva que constitui a experiência
imediata das partes entre si, para as quais a harmonia do todo é sua
própria morada. As cidades modernas obstruem essa harmonia fluida,
que é obrigada a contorná-las tal como uma planta contorna um muro,
uma calçada e um asfalto. O contorno é sempre feito com sucesso,
pois não há nada que possa impedir o ser de ser ele mesmo em sua
atividade harmônica em sua totalidade, mas esse contorno, que é uma
espécie de atraso, de obstrução da harmonia, gera a dor. A falta
da imediatez, que a mediação pela arte consegue criar, é uma
constante obstrução no fluxo da natureza, e essa obstrução joga
os fenômeno uns contra os outros, como indivíduos isolados pela
mediação, que faz lidar com o mundo como um “outro” – isso,
por sua vez, desaloja a todos de sua morada que é a experiência da
totalidade imediata com o fluxo total da phýsis.
Toda
arte é uma mediação, e toda mediação é limitação. E toda
limitação é como o impedimento de comer daquele que está faminto.
Os fenômenos são todos famintos pela totalidade – na imediatez,
eles são transmutados e se identificam ao ser, mas na mediação
eles permanecem isolados e carentes de seu fundamento, motivo que os
faz decair imparavelmente na busca desenfreada deste fundamento
através de uma contínua complexificação da atividade
representativa. Eles tentam provar o ser, ou então recriá-lo em
imagens, sem contudo alcançar seu objetivo, aprofundando ainda mais
sua carência e limitação.
Enquanto
a phýsis é um
universo de relações que se anulam no todo harmônico, a técnica
cria neste universo um corte nas relações, dando nomes a estes
entes delimitados pelo corte, dividindo o universo indivisível,
assim, artificialmente em átomos, em elementos constituintes de um
conjunto maior. O universo, assim, passa a ser considerado este
conjunto de elementos, e a sagrada fórmula platônica do “todo ser
maior do que a soma das partes” é substituída pela concepção de
que o todo é o próprio conjunto das partes e, não só isso, mas o
todo é em si definido qualitativamente pela natureza dos seus
elementos, que se fundamenta na separação do indivisível.
O todo, antes ele mesmo concebido como átomo
(indivisível), é subjugado a um significado diametralmente oposto,
que é o de ser constituído por átomos fundamentais, agora na
qualidade de elementos. Dessa forma, a diferença entre a concepção
holística e a técnica não é meramente uma mudança de
perspectiva, mas de natureza, trata-se de uma alteração qualitativa
na ontologia, e ambas, por este motivo, não podem conviver no mesmo
mundo em respeito e tolerância mútua, pois uma nega a outra. De um
lado, as relações puras, que negam em sua fluidez qualquer
concepção de substância, de outro, as substâncias ou elementos,
que resistem contra as relações e se definem pela negação delas,
uma vez que a substância é algo completo, inteiro e independente
(subsistente, por si).
Quanto
à disputa pela verdade destas duas doutrinas a própria história
humana é testemunha; e quanto à verdade de uma ou de outra, fica
nítido por nossa própria reflexão que a visão-de-mundo da técnica
é uma perversão da natureza, uma vez que ela se apropria desta
última para existir, como um parasita do ser. Enquanto a phýsis
demonstra ser o real inefável, a técnica busca dizê-lo e, ao
fazê-lo, introduz um sentido particular e desviado, meramente
abstrato e representativo de um real que já é,
a priori.
A
beleza é um evento só possível pela realidade das relações
puras. No interior da fluidez, tudo está como que para o todo e tudo
é como deve ser, e tudo deve ser como é; este “ajuste perfeito”
do todo é sentido como um prazer absoluto para este todo ao qual
nada lhe falta. E sendo deleitável é belo e bom; não há carência,
portanto não há uma ausência de sentimento do bem, logo não há o
sentimento do feio, que é uma carência e, por isso, causa angústia
e sentimento de vazio. Pelo contrário, o que o todo precisa e quer,
assim o tem, e isto só acontece porque as relações internas são
absolutas, ao ponto de não se distinguir nele átomos, porque se
houvessem átomos seriam eles impedimentos, barreiras que resistem
contra as relações, como pedras no mar que se opõem ao fluxo
perfeito e suave das águas. Mas não há esse atomismo na natureza,
e até as pedras do mar a ele estão ligadas por um continuum,
e se desgastam e se restituem interminavelmente e nunca são as
mesmas pedras – o mar, assim, é o prolongamento das pedras, e
estas são como que cristalizações do próprio mar. Não há pedras
e não há mar, há um todo “pedrar” ou “maredra”, a despeito
da ilusão que cria a nossa linguagem.
A
Unicidade
Nosso
raciocínio até aqui sugere que, ao falarmos de beleza, acabamos
necessariamente por investigar a natureza, a essência, do real. A
experiência do belo não é a percepção de algo objetivo e fechado
em si mesmo, nem um sentimento subjetivo capaz de ser delimitado pelo
pensamento, mas a própria natureza da existência e do real enquanto
tais. O modo de ser do real é a beleza, e deste real nós
participamos sem abarcá-lo, mas como que banhados e mergulhados na
sua essência, uma vez que dele somos feitos e tudo com que nós nos
relacionamos também é.
É
impossível, portanto, buscar a beleza em si. Ela é o modo de ser de
algo, não um algo específico. Ela é o evento, o ato deste algo que
é o real – e o real, sendo existência, é um evento, não uma
coisa em si delimitada substancialmente, como queria Aristóteles.
Assim, torna-se obsoleta a busca pela beleza diretamente, quando dela
depende toda a realidade e a vida – busca-se o belo como o
indivíduo desconsolado corre atrás de uma pílula anti-depressiva,
sem notar que o remédio está no todo, logo em si mesmo também
enquanto partícipe do todo.
O
belo é manifesto acidentalmente, ele é o fenômeno do real. Para
obtê-lo, deve se garantir o real, com sua harmonia indivisível. A
busca cristã por um belo em si distanciou o homem do real e,
consequentemente, do próprio belo; essa busca mira uma beleza
abstrata, “o paraíso”, longe da terra, quando não há paraíso
que não seja, para os seres vivos, este mundo aqui, onde nossa
essência se encontra. Não estamos negando agora um estágio
transcendente do ser; estamos apontando para o fato de que de um
estágio transcendente só pertencemos enquanto a totalidade deste
mundo “aqui e agora”, sendo impossível que hajam essências
individuais como os peripatéticos imaginam das almas humanas e das
coisas (substâncias).
Pois
não há indivíduos, há tão somente um todo que se desenrola e se
manifesta indefinível. A serenidade do belo não é como a do doente
depois de beber uma pílula – mas acontece porque a totalidade em
harmonia não se abate descontroladamente, mas está em uma total
conveniência e satisfação: a energia não é perdida nem deslocada
da sua rota, mas se direciona para onde deve ser recebida e cabe com
perfeição; não faltando nem sobrando, assim, nada em lugar algum.
É a unicidade que explica essa harmonia, a interrelação máxima do
todo consigo mesmo, um todo que parece complexo e múltiplo sendo,
não obstante, uma só realidade, um só evento.
Para
“obter” o belo, não basta que criemos o espetáculo. Esta sede
do espetáculo levou o Ocidente à modernidade, que hoje, já perdida
e desiludida, não mais crê na existência do belo, simplesmente
porque não o encontra onde o busca. Ao invés de buscá-lo no real,
busca no abstrato, como se o belo fosse uma coisa criada e não a
experiência do ser ele mesmo, a sutileza da realidade e da vida
misteriosa, a luz do sol que penetra as nuvens ao longe e se dissolve
muito gradualmente no vapor do aro pouco acima do chão, o desenho
multicolor e terrivelmente detalhado de asas de borboleta, o olhar
iluminado, suavemente adocicado e muito sutil e cuidadosamente
desenhado da mulher da nossa vida. O belo está na ordem perfeita dos
fenômenos, impossível de ser ultrapassada e vencida pelo gênio
humano – eis o mistério! Que tipo de genialidade é essa que a
tudo produz com tal maestria e permanece oculto, apenas se mostrando
através da própria beleza daquilo que produz? O meio de se ir o
mais longe em qualquer tipo de busca é a observação dessa ordem
misteriosa, que não nos torna o gênio produtor das coisas que são,
mas nos faz compreender tudo o que a nós está para ser
compreendido. Aí nos tornamos também deuses plenificados e eternos,
superiores a toda contingência e a toda imagem como o são a vida e
a morte.
A
Religião
Falar
do belo e não falar de religião, ou em alguma tonalidade religiosa,
é simplesmente não falar o que deve ser dito. A experiência do
real, tanto o do real por si quanto a nossa do real (a diferença das
duas é ilusória: o real sem nós não pode ser, e nossa experiência
do real só é através da união, de uma espécie de misticismo, em
que não existe mais o eu, mas o todo), é uma que exige um
comprometimento existencial – não é um passa-tempo, não é
entretenimento, não pode ser experimentado agora por alguns minutos
para espantar o tédio. Pelo contrário, trata-se de uma missão
pessoal, de uma entrega de si mesmo, de uma suspensão de tudo que
pode ser considerado “preocupação cotidiana”, porque o real
antecede as abstrações que inventamos e com as quais lidamos, por
exemplo, o contrato de emprego e a televisão no mundo moderno, que
se propõem atividades laicas, desligadas de todo compromisso.
No
mundo antigo, sobretudo oriental, todas as atividades pertenciam aos
rituais, e todas elas, portanto, voltadas para as necessidades vitais
da natureza das coisas, como a alimentação e o sono. São
atividades dadas pelo ser, não são construções sociais –
portanto, há que lembrar sua relação com o todo, sua participação
no universo, sua importância. Ao comer e ao dormir, a oração aos
deuses, ao arar a terra, plantar e colher também, que são
atividades relacionadas umas com as outras tanto quanto à nossa de
comer e de dormir; e se não é pelo favor dos deuses nada disso
seria possível, e o universo como um todo ordenado jamais existiria.
O conjunto de todos esses fenômenos, assim ordenados, em meio a um
mundo de belezas sublimes, é um mistério; estamos dentro e somos
partes indissociáveis desse espetáculo natural que a todo instante
é concebido pelos deuses; e os deuses estão por todos os lados, e
se não é uma deusa a araucária que se ergue imponente no inverno o
que é então?
Para
o mundo moderno, a alimentação é pura contingência, resultado
aleatório de uma evolução biológica, e é por isso que somos
obrigados a comer hoje correndo, enfiar goela abaixo uma porcaria
qualquer vendida na rua para não perdermos a energia diária
necessária para o trabalho escravo em uma empresa inútil que só
fabrica coisas inúteis para as grandes e pútridas massas humanas
consumirem como animais egoístas e ambiciosos. Permanece a questão
de Heidegger: para quê? Para onde? O mundo moderno não está
interessado na realidade, está tão interessado nas ambições que
esquece que a única satisfação possível está na experiência do
real, que é holística, o oposto da ambição individualista,
parcial, especializada, que move o eternamente inquieto e
insatisfeito mundo moderno. O mundo moderno instrumentaliza o real em
benefício do sujeito, que os modernos, em sua leviandade, sequer
suspeitam que não passa de ilusão abstrata e que nada em comum com
a realidade possui. O sujeito é mera representação, delimitação
parcial de uma experiência que não cabe em representações – e
assim mesmo, nestas condições a visão-de-mundo atomista, que está
na base do conceito de sujeito (e de objeto), serve de fundamento
para a metafísica moderna.
Falamos
da alimentação, mas ela é só um exemplo para se notar a distância
entre o real e a concepção moderna, para se notar como a vida como
um todo é um fenômeno constante e contínuo do misterioso real e
como o mundo moderno trata de apagar e destruir essa harmonia, usá-la
para fins abstratos e, desse modo, desequilibrá-la e desorientá-la
e, tirando-a de sua natureza, desfazê-la em seu fundamento. Mesmo
assim, o real permanece, enquanto o mundo moderno se exclui ele
próprio do real, ao menos tenta assim fazer, dominando o real; mas o
real é indomável, e é o mundo moderno que se joga para o abismo,
tal como o primeiro, pairando no céu estável, apenas observa o
segundo se debater na terra, insensato, permanentemente instável e
insatisfeito, tanto quanto ignorante sobre o que é a verdade ela
mesma.
Quando
falamos de religião, não queremos dizer “o cristianismo”, “o
budismo”, “o judaísmo” etc., estamos falando de uma
experiência própria do real, da admiração das sutilezas, do
desafio da morte, portanto da vivência demorada e introspectiva de
cada atividade vital das nossas vidas, que participam do real e que
são o modo como dele participamos. A religião é o conhecimento
por contato que os filósofos buscam desde Platão, sem jamais
atingir, pelo simples fato de que se trata de um acontecimento
imediato, por fora de todo esforço para alcançar alguma razão ou
resultado em uma mera calculação lógica e linguística. Esse
conhecimento é a própria experiência profunda e imediata
que o homem tem com o mundo, o próprio ato de viver os limites da
existência, de encontrar o infinito inabarcável pela linguagem. É
como o andar do filósofo, já citado em outro lugar, que refuta,
andando silenciosamente, o paradoxo de Zenão.
A
decadência humana e a consequente inquietude do “progresso”
histórico das civilizações, que vive buscando na “tese, antítese
e síntese” essa experiência inefável, cada vez mais
desesperadamente, pois cada vez mais afastada dessa experiência,
levou o imaginário a supor uma Elêusis, o paraíso onde se
encontram aqueles que lograram alcançar esse conhecimento, já
reservado a poucos em meio ao caos. Em Elêusis se encontram
os heróis, os sábios e justos, ou seja, aqueles que compreenderam a
amplitude e a necessidade da moral, que não se restringe ao
moralismo das leis, mas ao compromisso daquele que assume sobre si a
própria existência como uma missão em aberto – a moral independe
das leis, e até mesmo se opõe a elas; a moral, como diriam Platão
e os neoplatônicos, é o meio pelo qual o homem limpa de si e do seu
caminho todo o supérfluo, a fim de contemplar a luz da verdade, isto
é, conhecer o ser, unir-se a ele.
A
moral surge, então, como um meio de resgatar a experiência perdida,
ou seja, de re-ligar-se à harmonia, por isso não se pode
falar de religião sem moralidade. Mas uma coisa é a moralidade das
antigas religiões, tradicionais, cujos mitos trazem à luz sua
amplitude, seus motivos, hoje preservados nos contos de fadas e em
boa parte da literatura clássica, e bem outra é o moralismo das
leis que outorga o que se deve ou não fazer, cuja preocupação não
é mais o conhecimento, mas a mera organização ou imposição de um
modelo social, sem raízes na existência humana. É por isso que,
revoltado contra este moralismo, surge o romantismo, com Cervantes,
Goethe, Schiller, que reabrem aos homens a possibilidade do
rebentar-se nos limites da experiência, não sem uma intensa
preocupação moral, que seus personagens, personificando tendências
humanas, manifestam com muita profundidade psicológica.
E,
tanto nas religiões quanto no romantismo, a preocupação com a
moralidade acompanha a experimentação da beleza, porque é ela
mesma a manifestação deste conhecimento por contato do ser,
alcançado por um rebento e uma força místicos. Porque o reino dos
céus é dos violentos, já dizia o Cristo. Conhecer, assim, é estar
unido ao todo uno, a experiência da unicidade e harmonia perfeita e
bem ordenada de tudo que é; mas o que nossos antepassados possuíam
por natureza nós, hoje, mergulhados no logocentrismo[1], temos que
conquistar de volta, rompendo o ciclo vicioso da lógica sem, no
entanto, cair no irracionalismo.
Independentemente
do que a beleza é “em si”, nós só a percebemos enquanto um
acontecimento iluminado, absoluto, que toma todo o nosso ser e o
mundo em um turbilhão de agradabilidade pura. A beleza só é
experimentada como um mergulho na essência do ser, para muito longe
da alternância entre vida e morte concebidas como reinos separados.
O belo é o limite, e o belo é a vida suprema e por isso mesma a
experiência da morte, o limite máximo da existência. E o que é o
Logos senão essa harmonia do ser manifesta no continuum,
onde todos os contrários permanecem unidos na experiência da
totalidade, como que fundidos e suspensos na inefabilidade; e o que é
essa experiência senão o ser ele mesmo, que experiencia a si mesmo?
O
belo é uma experiência, e esta é a phýsis, que não é
outra coisa que a própria produção harmônica e eterna de tudo o
que é, ou seja, a Natureza em sua totalidade, atividade e presença.
A linguagem, quando destituída de sua essência mística, é pura
técnica, arte abstrata e representação – e deste modo ela
distancia e separa regiões do ser pre-determinadas pela abstração,
pondo-se entre o sujeito e o objeto, criando um medium que em
verdade é a obstrução da imediatez essencial do conhecimento
por contato. E é daí que vem novamente à mente a teoria da
verdade por correspondência aristotélica, fundamentada na
separação, cujo paradigma é o da representação abstrata.
Verdade por correspondência, princípio de não-contradição e o
conceito de substância estão intrinsecamente interligados, um
implicando os outros – todos fundamentados na ideia de separação
abstrata, em total dissonância com a realidade: o continuum e
a unicidade.
[1]
Logocentrismo: termo visto em textos duguinianos, cujo
significado se aproxima muito do nosso paradigma aristotélico,
sobre o qual discutimos em Do Paradigma Moderno e do Tradicional,e da Linguagem. O logocentrismo significa o modelo de pensamento
ocidental imposto por Aristóteles e que reina imparável
pós-modernidade adentro, cujo fundamento é a lógica. Vimos Dugin
discutir em termos muito próximos dos nossos sobre a separação,
caráter da lógica e do logocentrismo, em textos ainda não
traduzidos ao português e, quiçá também, nem ao inglês.
Surpreendentemente ou não, suas afirmações partem de um estudo
atencioso sobre o neoplatonismo, como é o nosso caso.
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