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Mher Khachatryan |
Em defesa de uma economia fundamentada no artesanato, de
uma perspectiva sacra sobre os fenômenos da vida, hoje discutiremos uma
atividade que poderia ser considerada a culminância de todos os artesanatos.
Trata-se de um ritual, de uma experiência religiosa que une a simbologia
teológica com o drama da alma humana no interior ou através do sistema
cosmológico implícito no símbolo. Pensaremos o fumo, o ato de fumar.
Não é novidade que o fogo tem para o homem uma
importância mística desde que o homem é homem. É o fogo que, misteriosamente,
oculta os fenômenos, transforma os elementos do mundo e permite seu transporte,
sua permanente recriação e restauração. É um elemento ao mesmo tempo destruidor
e mantenedor do kósmos. Também não é novidade que, certamente em conexão
com esta ideia, desde que o homem descobriu maneiras de dominar o fogo ele mantém
a atividade de fumar.
Desde sempre o fumo teve, então, uma forte conexão com a
religiosidade; através dele o homem aspirava os espíritos contidos na planta e,
com o êxtase do tabaco, entrava em contato com o divino, colocava-se em um Tempo
metafísico e vivia um drama cósmico. Foi assim que no xamanismo o ato de fumar
teve sua máxima manifestação, até se tornar uma atividade mais secularizada
(porém nunca desprovida plenamente de seu significado “profundo”) em
civilizações tardias.
Hoje temos uma indústria do fumo, dos cigarros, que
investe no vício das pessoas e o objetivo é exclusivamente o lucro, o benefício
econômico. A baixa qualidade do tabaco e a banalização do fumo que a produção
em série de cigarros produziu levou a uma transformação na atitude do homem
diante do fumo. O mesmo ocorre com todas as demais drogas e se expande para a
comoditização de todos os aspectos da vida e do mundo, transformando até o
próprio sexo em mercadoria e objeto de vício. Isso não deve ser motivo para o
desprestígio do fumo, das drogas nem do sexo – é exclusivamente a indústria e o
sistema econômico no qual ela se insere que devem carregar a culpa dos
problemas de saúde individual e coletivo decorrentes da banalização da vida.
É por isso que vale a pena refletirmos sobre a
significação original e real do fumo, que se insere no âmbito do sagrado e é
ali seu lugar próprio. Em cada uma das tradições ao redor do mundo,
evidentemente, o fumo adquiriu uma explicação e uma sistematização teológica
distinta, própria da etnia local; as formas do sagrado são fluidas, mas não são
fruto do acaso: elas seguem o logos da interconexão da psique individual
do homem (e do povo local que guarda uma linguagem determinada) com o divino
que há no mundo. Não temos a competência nem o tempo para discuti-las todas
aqui, mas, emprestando da simbologia cristã, refletiremos sobre um aspecto
preciso.
O tabaco, para que possa ser fumado, requer um cuidado
todo especial. Primeiramente as sementes são selecionadas, classificadas, e
então semeadas. Em seguida a semente dá lugar a uma planta, que cresce, se
desenvolve, amadurece, até que surge o momento da colheita. Depois disso o
tabaco é de novo selecionado, preparado em inúmeros processos de secagem,
manuseio, corte e aromatização. Durante todo este processo o artesão está
colocando seu pensamento no tabaco, dando desenhos precisos, sabores, textura,
para que no fim ele tenha o produto acabado, que é uma conjunção entre seu
pensamento e os elementos do próprio mundo. O fumante então adquire este fumo
e, em questão de instantes, transforma toda essa arte em fumaça. Ao fumar,
porém, ele se extasia com o sabor, e os mais delicados dentre os fumantes farão
isso em momentos precisos, em comemoração ou em contemplação, sozinhos e em
silêncio durante uma pausa para levar a mente ao longe. Não raro são nesses
momentos que cientistas, políticos, escritores, poetas (e artistas em geral),
filósofos e místicos têm suas mais aguçadas intuições.
Podemos observar que este processo, que não é senão “o
processo do inútil”, tomando em conta que todo trabalho foi feito para virar
fumaça, revela ao mesmo tempo o drama humano e o drama divino. A história já é
capaz de mostrar suficientemente como o drama humano também não passa de uma
semeadura e de um trabalho permanente que, ao fim e ao cabo, vira fumaça;
grandes civilizações e construções arquitetônicas, línguas imperiais, imperadores,
tudo isso nasce, brilha e é de novo engolido pelo fogo da história.
Mas, no contexto do drama divino, também o kósmos,
para algumas vertentes greco-romanas e cristãs, é devidamente pensado por um
Demiurgo, que trabalha primeiramente semeando as almas, proporcionando elementos
e riqueza, abundância para o crescimento, até que finalmente o fogo surge
também de cima para arrebatar a criação de volta para o criador, em um momento
de êxtase. Através do fogo, o criador inspira de volta para si os elementos
fundamentais do kósmos, “fumando” sua criação. Do pó ao pó. Todo aquele
processo de criação e desenvolvimento do kósmos está a serviço de um
propósito maior e misterioso; a vida está submetida à morte, é verdade, mas
como sua própria essência. A abundância graciosa da vida revela em formas a
abundância do criador; a graciosidade da vida, que morre, que vira pó, apenas
se recolhe em sua origem em um ato de sacrifício. Tal como o criador se
sacrificou: com esmero, com seu trabalho contínuo, deu vida à sua própria alma ao
criar o mundo, e tudo isso para depois arrebata-la.
A vida é inútil, os fenômenos envolvidos nela não nos são
úteis, e quando tentamos dar uma utilidade para eles surge o fogo e nos elimina.
A vida é feita para se mostrar, para brilhar, é a um gozo espiritual e cósmico
que ela “serve”, inalcançável para nossas ambições mesquinhas. O termo “fenômeno”
vem do grego e significa “aquilo que se mostra”; assim, os fenômenos que
compõem a vida são simplesmente “mostrações”, “revelações”. São imagens de
algo. Da mesma maneira, os elementos que compõem o tabaco apenas revelam um
sabor divino e invisível, intocável; ao se fumar este tabaco ocorre a
concretização da obra, sua realização final, isto é, o fim para o qual ela foi
feita aconteceu. Assim o mundo, ao ser consumido pelo fogo, está realizando sua
razão de ser. Sua razão de ser não é simplesmente morrer, mas retornar ao
criador tendo cumprida sua participação no Grande Espetáculo.
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