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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O sacrifício do clássico e a facilidade da subcultura televisiva

Rob Gonsalves

Um dos grandes males do pós-guerra foi a cultura da televisão. Ela retirou do indivíduo, das famílias, das comunidades regionais e do Estado a liberdade do pensamento, monopolizando os conceitos, os debates, afirmando o que existe e suprimindo o que, segundo as empresas que produzem o conteúdo transmitido, não deve mais existir.

Mas a televisão é apenas um dos elementos e veículos, talvez o maior elemento e o maior veículo, dentro de um grande movimento cultural de dissolução mental, psicológica, social, política, educacional. Se em meados do século XX alguém seria ridicularizado por nutrir esse tipo de opinião, hoje essa ideia se torna cada vez mais uma especulação geratriz de preocupação séria entre pensadores e cientistas sociais. Tornou-se óbvio para todas as classes letradas que o papel da televisão é cada vez mais o de ofuscar o conhecimento com oceanos de bobagens, imbecilizar o jovem, inocular no interior das famílias ideias estapafúrdias que passam a influenciar nas relações internas.

A televisão é sem dúvida um dos maiores motores da confusão e do caos que estamos vivendo hoje. A partir de 2010 a cultura começou a sair da televisão para entrar na internet, é verdade, mas os métodos continuaram os mesmos para a esmagadora maioria dos consumidores de internet e redes sociais: as empresas que antes transmitiam conteúdos pela televisão de tubo migraram para as redes; surgiram páginas na internet divulgando o material, mas também surgiram novos meios de informação com conteúdo pago e acessado pela internet. Quem transmite continua ditando o que existe e o que não existe no universo das ideias de toda uma população, e aquilo que existe sem dúvida é traduzido da forma que convém aos donos das mídias, que também hoje controlam a economia global e ameaçam as bases dos Estados nacionais.

Um livro, por outro lado, é livre de monopólio. O autor sempre incute no livro suas ideias, suas ideologias, disso ninguém escapa. Mas o autor não detém do monopólio sobre o mercado livreiro e, caso não for digno de ser lido, facilmente se pode colocá-lo de lado. Hoje existe, sim, uma tentativa de monopolizar o mercado livreiro, mas esse é só mais um processo dentre os tantos monopólios culturais que existem e que se concentram sempre nos mesmos conglomerados que controlam as grandes mídias de televisão e de rede. O livro, por sua vez, permanece revolucionário, e sua interpretação depende muito do próprio leitor, que participa da história da recepção e da reprodução das ideias que ele leu. É por isso que também os monopólios tentam fazer do mercado livreiro um mercado de bobagens, a fim de ofuscar as grandes obras, os clássicos, e assim distanciar cada vez mais o jovem das grandes ideias. Participam desse show os tais “influenciadores de rede” que não mais querem que os jovens aprendam com Machado de Assis e permaneçam para sempre pessoas imaturas, passíveis dos monopólios culturais que facilmente abocanham os povos quanto mais ignorantes, mesquinhos e irresponsáveis eles se tornam.

Os livros considerados clássicos, por sua vez, não o foram por mero oportunismo dos monopólios ao longo da história, até porque nenhum monopólio dura milhares de anos, se é que dura muitas décadas sem causar destruição em massa e autodestruição. Eles são clássicos porque têm algo de importante a dizer, a mostrar, a revelar para a psique humana aquilo que sozinha lhe custaria, em muitos casos, milhares de anos para se dar conta. Um livro clássico está carregado de conhecimento sobre a natureza humana, e assim sugere reflexões sobre nossos atos, nossos gostos, nossos anseios mais íntimos. Ao fazer estas reflexões e perseguir o mistério existencial o leitor imediatamente se emancipa das amarras culturais que muitas vezes o prende para seu próprio mal. E digo isso não para condenar os costumes populares e tradicionais, pelos quais muitas vezes o jovem se sente ameaçado, mas para condenar a televisão e a cultura que ela promove em detrimento desses mesmos costumes populares. Afinal, qual é a verdadeira prisão em Orwell e Huxley senão a prisão das Big Techs, da televisão e das grandes mídias? Por que uma comunidade luterana do interior de Santa Catarina, onde crianças aprendem a socializar e amar através da dança e do Kerp, ou uma mãe de santo no Rio de Janeiro, que benze os jovens para seu sucesso, seriam exemplos de opressão? Não nos parece então estapafúrdia a ideia de que a expressão do povo, isto é, a tradição e sabedoria popular, seja agente de sua própria opressão? Pois quem fez dos jovens uma revolução contra a cultura popular foram os oligopólios da informação, que passaram a monopolizar a mente deles contra eles mesmos.

O conteúdo de um livro clássico não é diferente daquele expresso pela sabedoria popular. Os elementos utilizados sempre derivam dos ricos símbolos da linguagem usual. As grandes obras não são diferentes dos grandes ensinamentos da sabedoria popular, sendo elas uma reflexão profunda que também passa de geração em geração, de século em século, milênio em milênio. Elas apenas são mais complexas, mais bem arquitetadas pelo gênio, muitas vezes mais profundas e inspiradoras. Mas elas não visam renegar ou rivalizar com a sabedoria popular; pelo contrário, a história mostra que sempre houve um diálogo e uma interdependência muito forte entre elas, mas que acontece livremente do lado de ambas pela atração estética e pelo valor que possuem uma para a outra.

Tomemos o exemplo de Dante Alighieri. A Divina Comédia jamais teria vindo a existir sem a própria experiência de vida do autor, do conhecimento que ele tinha dos mitos cristãos, tanto popular quanto erudito. E a sabedoria popular cristã talvez jamais viesse a ter a noção que ela passou a ter do inferno e do purgatório se não fosse a obra de Dante. E mais uma vez, essa mútua influência nunca foi imposta através de uma máquina monopolista de informação, e sim por intermédio da inspiração que o gênio do autor transmitia, pelo conhecimento profundo da alma humana que sua obra carrega, pelo significado que ele teve para seus leitores.

E estes leitores de Dante, por sua vez, jamais teriam vindo a ocupar seu tempo em uma obra gigantesca e rigidamente talhada em versos sem um certo esforço. Uma obra da magnitude de sua Comédia é muito difícil de absorver. Acadêmicos passam vidas inteiras se debruçando sobre os detalhes mais ínfimos e deles extraindo informações valiosas para uma compreensão ainda mais profunda. É natural que uma obra grande exija dedicação. Tudo que é grande exige. Lembremos que as catedrais góticas da Idade Média duravam séculos até ficarem prontas; gerações inteiras passavam trabalhando em sua arquitetura até que a construção adquirisse seu formato “perfeito”. Nada de grande se faz com mordomia, nada de grande se faz para ser usufruído na mesma hora. Tudo o que é grande requer elaboração, estudo, reflexão, experiências, e isso significa muitas vezes sacrifício, solidão, dor e sofrimento.

A cultura da televisão quer nos privar das profundezas, quer nos vender o fácil e barato que no fim acaba saindo bem caro. Essa cultura, ou antes subcultura, quer nos privar da nossa natureza humana, de nossa alma, do gozo do verdadeiro e eterno amor, que é sagrado e dura muito mais que uma vida. Precisamos combate-la, e um meio de fazer isso é revitalizarmos a leitura dos clássicos da literatura, da filosofia e da história. Tudo o que é grande requer sacrifício, e está na hora de optarmos pela grandeza e destruirmos a mediocridade; está na hora da águia pisar e bicar a serpente maligna.


*Álvaro Körbes Hauschild, nascido em 1992, é doutorando em Filosofia Antiga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também fez graduação (2016) e mestrado (2019); traduziu Geopolítica do Mundo Multipolar (2012) e Contra o Ocidente (2013), obras do filósofo e geopolitólogo russo Aleksandr Dugin. Atualmente se dedica a uma tradução comentada dos Oráculos Caldeus diretamente do grego antigo e lançará pela Kotter o livro “Anamnesine” (2021).

Publicado originalmente no blog da Kotter (01/02/2021) [https://kotter.com.br/o-sacrificio-do-classico-e-a-facilidade-da-subcultura-televisiva-alvaro-hauschild/]

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Lustre, Platão e Pitágoras

Rob Gonsalves

Em República 530c-d, Platão se apoia em Pitágoras e sustenta que há duas formas de movimento cósmico e que há, portanto, duas ciências diferentes para compreendê-lo: a astronomia, ciência que adquirimos através dos olhos, e a harmônica (ou seja, a música no contexto moderno), adquirida através dos ouvidos. Ambas estas ciências partem de um mesmo propósito, que é o estudo do movimento, e assim são ciências irmãs.

Esta doutrina que une Platão e Pitágoras e sistematiza a ciência dentro de um amplo conceito de ordem (harmonia) se tornou fundamental para os sistemas filosóficos da antiguidade tardia e particularmente para os neoplatônicos. Plotino, por exemplo, no tratado 2.9 das Enéadas, defende os astros como as únicas entidades intermediárias entre o mundo corpóreo e o mundo inteligível; os astros são nossa porta para o mundo superior, é através deles que podemos compreender a lógica dos ciclos cósmicos. Mas Plotino não defende especificamente a matematização do mundo astronômico; neste tratado, que se intitula “Contra os Gnósticos”, ele visa apontar para a contemplação estética da ordem astronômica, a possibilidade de se enxergar a beleza do mundo superior através da simples observação do céu. Nós não podemos, através da matemática moderna, compreender a lógica desse mundo inteligível; é através da intuição intelectual durante a longa observação, que se “conhece” a natureza divina.

Jâmblico, que foi discípulo de Porfírio, que foi discípulo de Plotino, nos legou quatro livros pitagóricos onde ele constroi um amplo plano pedagógico capaz de fazer elevar as almas presas na matéria até o mundo inteligível; a astronomia e a teologia compõem os níveis mais altos do conhecimento humano; antes delas existem a aritmética e a harmônica, que funcionam como a base teórica para o conhecimento mais alto. Todos os níveis partem de um princípio de harmonia universal que rege o todo, desde a lógica mais básica dos objetos do cotidiano até os grandes ciclos dos astros fixos. Ao longo do trajeto científico, então, o homem ascende de sua condição material até a condição do mundo da eternidade. E por trás das fórmulas matemáticas que certamente se estuda existe o objetivo principal que é o da simples contemplação do universo, a descoberta do divino.

Em torno de 1700 anos depois de Jâmblico, em um momento não menos conturbado da história humana, surge um movimento também não menos preocupado com as sutilezas cósmicas e não menos “ocultista” do que o platonismo era na antiguidade tardia: o Black Metal, que gira em torno da música, mas que se expande também nas artes plásticas e começa a influenciar a filosofia e a política contemporâneas (os tradicionalismos do século XXI). Mas precisamente agora vale a pena citar Lustre, um projeto sueco, como talvez o maior exemplo dessa contemplação dos astros através da música.

Com rara maestria, Nachtzeit (o compositor) consegue aliar o som dos instrumentos com o típico silêncio da contemplação neoplatônica. Usando de sons cristalinos e lentas e repetitivas melodias de base ele transforma em som a imagem celeste dos lentos ciclos dos astros pintalgados de estrelas e planetas compondo massas luminosas e percorrendo órbitas precisas. Um som fresco e noturno que se tornaria inimaginável em um contexto muito social e conturbado pelas disputas políticas, onde a vida se encontra abafada e disforme, desgovernada; pelo contrário, o som de Lustre é para o alto de uma montanha solitária durante à noite sob um céu limpo, gélido e ampla e profundamente estrelado. O nome do projeto, “Lustre”, exprime com genialidade estética o sabor de sua sonoridade, um sabor leitoso, cheiroso, macio, sutil, contínuo, mas luminoso e pintalgado de cristais, exatamente como o céu se apresenta durante a noite limpa. Os elementos se apresentam todos em harmonia, em ordem, como expressão viva e saborosa de natureza inteligível. Poderíamos tentar compreender sua lógica através de cálculos matemáticos, mas jamais alcançaríamos o esboço primordial; por isso nos resta contemplar.

Nachtzeit certamente usou de conhecimentos em teoria musical para construir suas melodias (sem isso nada seria possível), mas o que ele fez foi, através deste conhecimento, buscar exprimir os inexprimível, trazer em matemática musical uma lógica que a ultrapassa e que só pode ser apreendida através da percepção de sua beleza, do êxtase. O conhecimento teórico levou o compositor mais próximo do divino, mas jamais o permitiu alcança-lo por si mesmo; foi com um salto de coragem, uma intuição e a simples contemplação, em sentido neoplatônico, que permitiu-o apreendê-lo e transmiti-lo com sua obra. Neste sentido, Lustre é uma revelação divina, ou então uma salvaguarda ou um receptáculo do divino, similar às Silmarils, feitas por Fëanor ao buscar preservar a essência das Duas Árvores de Valinor antes que elas fossem destruídas por Melkor.

Abaixo, Lustre -- Echoes of Transcendence

domingo, 17 de maio de 2020

A Metafísica do Fumo

Mher Khachatryan

Em defesa de uma economia fundamentada no artesanato, de uma perspectiva sacra sobre os fenômenos da vida, hoje discutiremos uma atividade que poderia ser considerada a culminância de todos os artesanatos. Trata-se de um ritual, de uma experiência religiosa que une a simbologia teológica com o drama da alma humana no interior ou através do sistema cosmológico implícito no símbolo. Pensaremos o fumo, o ato de fumar.

Não é novidade que o fogo tem para o homem uma importância mística desde que o homem é homem. É o fogo que, misteriosamente, oculta os fenômenos, transforma os elementos do mundo e permite seu transporte, sua permanente recriação e restauração. É um elemento ao mesmo tempo destruidor e mantenedor do kósmos. Também não é novidade que, certamente em conexão com esta ideia, desde que o homem descobriu maneiras de dominar o fogo ele mantém a atividade de fumar.

Desde sempre o fumo teve, então, uma forte conexão com a religiosidade; através dele o homem aspirava os espíritos contidos na planta e, com o êxtase do tabaco, entrava em contato com o divino, colocava-se em um Tempo metafísico e vivia um drama cósmico. Foi assim que no xamanismo o ato de fumar teve sua máxima manifestação, até se tornar uma atividade mais secularizada (porém nunca desprovida plenamente de seu significado “profundo”) em civilizações tardias.

Hoje temos uma indústria do fumo, dos cigarros, que investe no vício das pessoas e o objetivo é exclusivamente o lucro, o benefício econômico. A baixa qualidade do tabaco e a banalização do fumo que a produção em série de cigarros produziu levou a uma transformação na atitude do homem diante do fumo. O mesmo ocorre com todas as demais drogas e se expande para a comoditização de todos os aspectos da vida e do mundo, transformando até o próprio sexo em mercadoria e objeto de vício. Isso não deve ser motivo para o desprestígio do fumo, das drogas nem do sexo – é exclusivamente a indústria e o sistema econômico no qual ela se insere que devem carregar a culpa dos problemas de saúde individual e coletivo decorrentes da banalização da vida.

É por isso que vale a pena refletirmos sobre a significação original e real do fumo, que se insere no âmbito do sagrado e é ali seu lugar próprio. Em cada uma das tradições ao redor do mundo, evidentemente, o fumo adquiriu uma explicação e uma sistematização teológica distinta, própria da etnia local; as formas do sagrado são fluidas, mas não são fruto do acaso: elas seguem o logos da interconexão da psique individual do homem (e do povo local que guarda uma linguagem determinada) com o divino que há no mundo. Não temos a competência nem o tempo para discuti-las todas aqui, mas, emprestando da simbologia cristã, refletiremos sobre um aspecto preciso.

O tabaco, para que possa ser fumado, requer um cuidado todo especial. Primeiramente as sementes são selecionadas, classificadas, e então semeadas. Em seguida a semente dá lugar a uma planta, que cresce, se desenvolve, amadurece, até que surge o momento da colheita. Depois disso o tabaco é de novo selecionado, preparado em inúmeros processos de secagem, manuseio, corte e aromatização. Durante todo este processo o artesão está colocando seu pensamento no tabaco, dando desenhos precisos, sabores, textura, para que no fim ele tenha o produto acabado, que é uma conjunção entre seu pensamento e os elementos do próprio mundo. O fumante então adquire este fumo e, em questão de instantes, transforma toda essa arte em fumaça. Ao fumar, porém, ele se extasia com o sabor, e os mais delicados dentre os fumantes farão isso em momentos precisos, em comemoração ou em contemplação, sozinhos e em silêncio durante uma pausa para levar a mente ao longe. Não raro são nesses momentos que cientistas, políticos, escritores, poetas (e artistas em geral), filósofos e místicos têm suas mais aguçadas intuições.

Podemos observar que este processo, que não é senão “o processo do inútil”, tomando em conta que todo trabalho foi feito para virar fumaça, revela ao mesmo tempo o drama humano e o drama divino. A história já é capaz de mostrar suficientemente como o drama humano também não passa de uma semeadura e de um trabalho permanente que, ao fim e ao cabo, vira fumaça; grandes civilizações e construções arquitetônicas, línguas imperiais, imperadores, tudo isso nasce, brilha e é de novo engolido pelo fogo da história.

Mas, no contexto do drama divino, também o kósmos, para algumas vertentes greco-romanas e cristãs, é devidamente pensado por um Demiurgo, que trabalha primeiramente semeando as almas, proporcionando elementos e riqueza, abundância para o crescimento, até que finalmente o fogo surge também de cima para arrebatar a criação de volta para o criador, em um momento de êxtase. Através do fogo, o criador inspira de volta para si os elementos fundamentais do kósmos, “fumando” sua criação. Do pó ao pó. Todo aquele processo de criação e desenvolvimento do kósmos está a serviço de um propósito maior e misterioso; a vida está submetida à morte, é verdade, mas como sua própria essência. A abundância graciosa da vida revela em formas a abundância do criador; a graciosidade da vida, que morre, que vira pó, apenas se recolhe em sua origem em um ato de sacrifício. Tal como o criador se sacrificou: com esmero, com seu trabalho contínuo, deu vida à sua própria alma ao criar o mundo, e tudo isso para depois arrebata-la.

A vida é inútil, os fenômenos envolvidos nela não nos são úteis, e quando tentamos dar uma utilidade para eles surge o fogo e nos elimina. A vida é feita para se mostrar, para brilhar, é a um gozo espiritual e cósmico que ela “serve”, inalcançável para nossas ambições mesquinhas. O termo “fenômeno” vem do grego e significa “aquilo que se mostra”; assim, os fenômenos que compõem a vida são simplesmente “mostrações”, “revelações”. São imagens de algo. Da mesma maneira, os elementos que compõem o tabaco apenas revelam um sabor divino e invisível, intocável; ao se fumar este tabaco ocorre a concretização da obra, sua realização final, isto é, o fim para o qual ela foi feita aconteceu. Assim o mundo, ao ser consumido pelo fogo, está realizando sua razão de ser. Sua razão de ser não é simplesmente morrer, mas retornar ao criador tendo cumprida sua participação no Grande Espetáculo.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A Sabedoria dos Mitos e Contos de Fadas


Há um vício nas atuais doutrinas e nos atuais estudos sobre os mistérios, sobre o gnosticismo, religiões e seitas esotéricas que imita exatamente aquilo que julgam combater: o racionalismo. Perdemos o contato com a realidade, esquecemos o sentido simbólico da linguagem, e passamos assim, senão a interpretar as doutrinas literalmente, ao menos a concebê-las como sistemas abstratos e dogmáticos. Desse modo, a Idade de Ouro se torna um dogma como qualquer outro, tal como o céu abstrato do cristianismo, uma "realidade" inventada; perdeu-se a noção de que a Idade de Ouro, por exemplo, sendo um símbolo de significados múltiplos, pode querer dizer algo sobre o processo histórico concreto, sobre o desenvolvimento intelectual e moral do homem, sobre a constituição natural e originária de um mundo que não se distingue do nosso, cuja constituição apenas tenha sido esquecida enquanto conteúdo de cognição.

Muito se fala sobre símbolos, mitos, entidades, até fazem-se relações, mas nunca se aponta o sentido concreto, que é realmente o que importa, sem o qual tudo não passa de palavras vazias, típicas inclusive do nosso sistema acadêmico, que fala das coisas sem realizá-las. Em suma, é racionalismo puro, pura abstração vazia e sem conteúdo; sinais sem significado, sem a referência subjacente. Em face disso, queremos fazer uma ode aos contos de fadas, e mostrar que eles são as formas mais puras e imediatas de um "esoterismo" milenar; não lidam com abstrações exageradas, seus símbolos são facilmente compreensíveis, e sua sabedoria é inesgotável para filósofos e contempladores. Aliás, há quem diga que os contos, muitos dos quais foram reunidos pelos irmãos Grimm na Europa Central, são mais antigos que os mitos mediterrâneos dos gregos e que a Bíblia[1]; o que é muito crível, em vista de sua estrutura primitiva e seus símbolos, típicos de civilizações tão antigas quanto a hindu. Esses contos de fadas não são invenções abstratas, mas relatos recolhidos no seio do povo, muitas vezes habitantes de florestas e vales remotos, onde a sabedoria dos antepassados permanece repleta de vida e significa, quase intocada; os contos dos irmãos Grimm, por sua vez, refletem um frescor e uma naturalidade, uma clareza, muito familiares a um homem germânico, cujo espírito, o Geist, pertence a vales orvalhados, picos gelados e mulheres brancas, sorridentes, graciosas e luminosas, que colhem flores no campo como uma flor reunida com suas irmãs.

Prestemos atenção em um conto curto, porém riquíssimo de significado, sobre o qual nosso comentário, pobre, apenas terá o interesse de se demorar sobre a riqueza sábia dos antigos, que nunca deixará de ter algo de grande e profundo a nos ensinar:

A Abelha-rainha (Die Bienenkönigin)

Era uma vez, dois filhos de um rei foram para uma aventura e enfrentaram uma vida selvagem e bruta, de modo que não voltariam mais para casa. O mais novo, o qual chamavam de Bobo, aprontou-se e foi a procura dos seus dois irmãos; mas, assim que ele finalmente os encontrou, eles zombaram dele que ele, com sua simplicidade, queria dominar o mundo, enquanto eles dois não podiam se virar muito bem, mesmo sendo mais sábios. Mas eles então retomaram, os três, a viagem e encontraram um ninho de formiga. Os dois mais velhos queriam fuçar e ver como as pequenas formigas, angustiadas, rastejar-se-iam e carregariam seus ovos, mas o Bobo disse: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os incomodem". Então eles seguiram em frente e viram um lago, onde nadavam muitos, muitos patos. Os dois irmãos queriam pegar um punhado deles e assar, mas o Bobo não deixou e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os matem". Por fim, encontraram um ninho de abelha, onde tinha tanto mel que escorria pelo tronco. Os dois queriam pôr fogo de baixo da árvore e sufocar as abelhas, de modo que assim poderiam levar o mel embora. Mas o Bobo se manteve empacado e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os queimem". No fim, os três irmãos chegaram em um castelo, onde no estábulo estava cheio de cavalos de pedra, e não havia pessoas por perto, e eles foram entrando por todos os salões até que bem lá no final tinha uma porta com três fechaduras; pela fechadura da porta tinha uma criança que se podia ver no quarto. Eles viram ali um homenzinho cinzento que estava sentado na mesa. Eles o chamaram uma vez, duas vezes, mas ele não ouviu, então o chamaram pela terceira vez, e ele se levantou, destrancou a porta e veio para fora. Não falou uma palavra, mas os guiou a uma mesa farta, e conforme eles tinham comido e bebido, ele levava cada um para dormir. Na manhã seguinte veio o homenzinho cinzento para o mais velho, acenou e o guiou a uma mesa de pedra sobre a qual haviam três missões por escrito, através das quais o feitiço sobre o castelo poderia ser quebrado. A primeira era: na floresta, sob o musgo, estão jogadas as pérolas da filha do rei, que são mil em número, que devem ser recolhidas, e se quando o sol tiver caído ainda faltar uma única, aquele que foi procurá-las se transformará em pedra. O mais velho partiu e ficou o dia inteiro procurando, mas o dia chegou ao fim e ele só tinha recolhido uma centena; então aconteceu que, assim como ele estava de pé diante da mesa, se transformou em pedra. No dia seguinte entregou a aventura ao segundo irmão, que não foi muito melhor que seu irmão mais velho e, tendo encontrado duzentas pérolas, foi transformado em pedra. Por fim, chegou a vez do Bobo; ele procurou no musgo, mas estava muito difícil encontrar as pérolas e estava muito devagar. Então ele se sentou sobre uma pedra e chorou. Veio então o rei das formigas, de quem ele tinha salvo a vida, com cinco mil formiguinhas, e não durou muito para que os bichinhos encontrassem as pérolas. A segunda missão era encontrar a chave para o quarto da filha do rei, que estava perdida no lago. Quando o Bobo foi para o lago os patos, que tinham sido resgatados por ele, se aproximaram nadando, mergulharam e trouxeram as chaves lá do fundo. Mas a terceira missão era a mais difícil: das três filhas do rei, que dormiam, ele deveria apontar qual era a mais nova e mais amável. Elas eram perfeitamente parecidas e não se distinguiam em nada, a não ser pelo fato de que, antes de terem ido dormir, elas tinham comido doces diferentes; a mais velha, um pedaço de açúcar, a segunda, um pouquinho de xarope, e a mais nova, uma colher de mel. Veio, então, a rainha das abelhas, que o Bobo tinha protegido do fogo, lambe a boquinha de cada uma das três; no fim se senta sobre a boca daquela que tinha comido mel, de modo que o filho do rei pudesse saber quem era a certa. O feitiço foi quebrado, todos os que dormiam foram acordados, os que tinham se tornado pedras voltaram a suas formas humanas. E o Bobo se casou com a mais nova e mais amável e se tornou o rei depois da morte do pai dela; mas seus dois irmãos receberam as outras duas irmãs. (Tradução nossa da versão de Knaur, 2012)

Sem racionalismo, sem as inférteis análises do "sistema" simbólico, sem desejar explicar este maravilhoso conto e esvaziar, assim, seu significado, limitemo-nos a debater um pouco sobre o que ele nos diz e o que dele podemos apreender. Uma criança certamente perceberá coisas que um adulto pode muito bem passar por alto e não notar; mas há tanto a se absorver deste conto que pessoas diferentes vão provavelmente observar detalhes diferentes, não se contradizendo, mas se complementando em suas observações.

Podemos notar, por exemplo, que dos três irmãos, o único que foi capaz de levar a cabo as missões recebidas, embora tenha sido muito inexperiente na vida, foi o mais novo, chamado de "Bobo" pelos demais. Eis aqui um tema que nos lembra Dom Quixote, o mais tolo dos cavaleiros, mas também o mais valente e o mais sutil dos homens. A fim de suprir desejos superficiais, os irmãos mais velhos se ocupam da técnica e da brutalidade para derrubar os obstáculos à sua frente; o mais novo os impediu de tamanho pecado, o qual eles ouviram e respeitaram, e o qual terão motivos para agradecê-lo mais tarde por isso. Notemos aqui que é a inocência (a "tolice", aos olhos dos utilitários) quem foi capaz de cavar mais fundo nas leis da natureza, não com pá, mas com o coração. O conto nada nos diz sobre as percepções subjetivas de cada um (desnecessárias), trata-se de um conto antigo e de caráter objetivo, mas podemos imaginar que o mais novo teve seus motivos ocultos para salvar os bichos da malícia humana; sabemos o que ele sentiu porque também agimos assim quando amamos algo ou alguém, e também agimos como os outros quando somos estúpidos e, de tanto pensarmos em suprir desejos nossos, passamos por alto sem notar as sutilezas do mundo que não nos pertence enquanto mero objeto. A inocência, aqui, aparece em uma criança, não porque só a criança é inocente, mas porque a vida mecânica do mundo adulto nos ensina a corrupção do coração humano.

Não que não se deva matar; nós matamos para comer. Mas no caso deste conto (e é muitas vezes o nosso caso) não havia necessidade para tanto. Os irmãos queriam apenas fuçar e incomodar as formigas, não tinham necessidade de matar patos nem pôr fogo em uma colmeia; não estavam famintos, e o conto mostra ainda, depois, que foram todos levados a uma mesa farta. Aqui, os "obstáculos" a serem derrubados a fim de obter os objetos do desejo demonstram serem contornáveis, trazendo à luz a lei profunda da natureza, que a tudo contorne e supera sem destruir. Tivessem os dois mais velhos desrespeitado o menor e atacado os bichos, não teriam chegado ao castelo e às farturas. Essa ideia de recompensa é reforçada, no final, quando os irmãos recebem as outras filhas do rei; eles não eram tão sutis quanto o menor, mas foram sutis o bastante para perceber a malícia dos seus desejos e abortar as ideias toda vez que o mais novo aconselhava. A natureza oferece farturas a quem souber respeitá-la, mesmo que não saiba amá-la, como é o caso dos dois irmãos. E a quem souber amá-la terá para si o amável também: a mais amável filha do rei é uma oferenda sagrada que a natureza oferece às almas de ouro, que no amor se fundem com ela, a mãe-terra, como em uma mesma essência. Não há, notamos, subjetividade no mais novo, nem sua contraparte objetividade (há nos mais velhos: o uso da técnica para atacar os bichos concebe um sujeito, o agente, e o objeto, o mundo, de quem deve ser retirado um bem para suprir unicamente os primeiros), há um modo de vida imparcial e, nas nossas palavras modernas, místico, de unidade com a natureza, portanto familiaridade, proximidade, piedade e, por fim, o amor silencioso e profundo. O mais novo via na natureza um "pedaço" de si mesmo, era a ordem do todo que lhe importava, e o todo inclui em um mesmo o mundo e ele próprio, o Bobo.

Só o amor místico, a inocência quixotesca, é capaz de eliminar o feitiço que recaiu sobre o mundo e transformou os homens em pedras. Ainda dizemos quando alguém é demasiadamente frio: "ele é uma pedra", ou "tem um coração de pedra". Sabemos bem o que isso quer dizer, embora o termo atualmente seja usado para muitas situações diferentes, e nem sempre é referido a homens impiedosos. No caso do conto, aqueles que não se uniram à fluidez natural do mundo foram transformados em pedras, jogados para dentro de sua subjetividade, abandonados, expulsos da vida orgânica. O nosso mundo moderno, aqui, é representado pelos dois irmãos, com a exceção de que o mundo moderno, sejam os conselhos que recebe, jamais poupa a natureza, a vida e a inocência -- com a presença do moderno, não teria havido, no conto, o respeito à autoridade do irmão "tolo", os bichos teriam sido maltratados e o feitiço jamais teria sido quebrado. É o que acontece nesse nosso mundo há vários milênios. Em se tratando de "tolice" redentora, citamos mais um mito de Percival, um dos cavaleiros da Távola Redonda, narrado por Eliade:

Lembramos a misteriosa doença que paralisou o velho Rei, detentor do segredo do Graal. Aliás, ele não era o único que sofria; tudo em torno de si desabava, desmoronava: o palácio, as torres, os jardins; os animais não mais se reproduziam, as árvores não davam frutos, as fontes secavam. Inúmeros médicos tinham tentado tratar o Rei Pescador -- sem o menor resultado. Dia e noite chegavam os cavaleiros, e todos começavam por perguntar as novidades sobre a saúde do Rei. Um único cavaleiro -- pobre e desconhecido, até um pouco ridículo -- permitiu-se ignorar o cerimonial e a cortesia. Seu nome era Percival. Sem levar em conta o cerimonial da corte, ele se dirige diretamente ao Rei e, aproximando-se dele, sem nenhum preâmbulo, pergunta-lhe: "onde está o Graal?". No mesmo momento, tudo se transforma: o Rei levanta-se do seu leito de sofrimento, os rios e as fontes começam a jorrar, a vegetação renasce, o castelo se restaura milagrosamente. As poucas palavras de Percival tinham sido suficientes para regenerar toda a Natureza. Mas essas poucas palavras constituíam a questão central, o único problema que podia interessar não só ao Rei Pescador mas também ao Cosmos inteiro: onde se achava o real por excelência, o sagrado, o Centro da vida e a fonte da imortalidade? Onde se encontrava o Santo Graal? Ninguém havia pensado, antes de Percival, em formular esta pergunta central -- e o mundo morria por causa dessa indiferença metafísica e religiosa, por causa dessa falta de imaginação e ausência de desejo do real. (Imagens e Símbolos, Martins Fontes, julho de 2012, pp. 51-2)

Neste relato de Percival vemos elementos e dramas muito parecidos com os do conto que abriu este nosso texto: uma figura simples, "pobre", que não conheceu os caprichos da corte, repleto de virtude e fé na experiência e no mistério da vida, quebra o feitiço, ou melhor, cura a doença incurável do Rei, que é a mesma que se abate sobre a natureza. O misticismo neste mito está implícito na fé de Percival, uma fé primitiva e cheia de um frescor valente, jovem, luminoso. Neste aqui Percival não se torna um Rei, mas traz um Rei de volta, o que se equivale, visto que o Rei não é uma pessoa, mas um elemento místico que pertence à Natureza.

No caso do conto de fadas narrado aqui, o Bobo herda o trono, a coroa, se torna o rei. Quer dizer que o reinado, que pertence à natureza, é uma função da própria natureza, e só aquele que reiná-la, ao invés de corrompê-la, portanto guiá-la e protegê-la, deve se tornar, realmente, um rei, um protetor, um pai. A natureza oferece a cada um o que é devido, e aqui podemos lembrar a doutrina aristotélica dos lugares naturais, em que cada ser tem seu lugar natural; Aristóteles certamente absorveu em sua doutrina uma sabedoria antiga, mas a corrompeu, a racionalizou, e o "lugar" se tornou meramente um "espaço", um ponto em um mapa cartográfico. Voltando ao conto, o lugar devido de uma alma que protege é o reinado -- há atividade por parte da alma que voluntariamente protege a natureza, e passividade, mas também um movimento complementar que retribui imediatamente, não moralisticamente, mas eroticamente (a proteção é por amor, e amor é proximidade e união, portanto diálogo profundo), por parte da natureza. A mesma passividade encontrada na natureza está implícita na mulher, no caso das filhas do rei, que por ser identificada à natureza e oferecida ao Bobo como que algo de si mesma, a natureza lhe oferece um pedaço de si, um cristal da sua essência. E a mulher é um cristal, um mineral do cosmos, um tesouro. O cristal mais puro dos três que o rei tinha alcançou sua contraparte devida.

No mundo moderno estas leis naturais não funcionam, pois estão rompidas em sua continuidade por irmãos maus que corrompem a natureza. Os três irmãos só alcançaram o castelo e o feitiço só foi quebrado porque o mal não chegou a ser lançado; nós modernos, pelo contrário, não temos a chance de pôr a prova a natureza, de esperar dela o que nos é devido, porque ininterruptamente tentamos arrancar dela o que queremos. Antes mesmo de sairmos à floresta já estamos transformados em pedras brutas destruidoras, em velhos doentes. Na modernidade, a autoridade só é respeitada, seja boa ou ruim, ao ser tomada pela força e pela brutalidade, e só a força tem autoridade, o caráter já não conta mais, a sutileza, a profundidade, a sabedoria, nada disso é reconhecido, nem mesmo respeitado. E aqui o conto nos ensina algo mais, nos dando previsões dos tempos, de que só há a possibilidade de reconciliação com a natureza, e da obtenção do nosso lugar no mundo, caso nos atentemos aos princípios metafísicos disponíveis de imediato no mundo e na experiência humana, que nos apresentam os deuses e nos iluminam nosso união originária com a natureza; o desenvolvimento do caráter não é algo que acontece na abstração, no simples "dever" normativo e imposto, mas está intimamente ligado à ordem existencial do mundo apresentada nas relações naturais: na contemplação da beleza e harmonia do mundo, na hierarquia do kósmos, que também são a beleza e harmonia do homem e das relações humanas, a hierarquia que distingue o lugar de cada um na sociedade -- é na natureza que observamos a eterna e contínua colaboração e participação das partes complementares em um todo, um mesmo único, para todos. O mundo moderno só voltará a reconhecer a ordem humana quando se voltar para as sutilezas da natureza, pois nela estão as chaves para quebrar o feitiço, e só será possível encontrar estas chaves quando mudarmos nossa maneira de tratá-la, pararmos um pouco a fim de observá-la e descobrir nela os mistérios e as respostas pelas quais ansiamos no íntimo. É a própria natureza quem nos trará as chaves ao sentir que podemos recebê-las, porque já estamos de ouvidos abertos e podemos ouvi-la cantar -- e é sutil, miúdo, muito frágil o canto dela.

Como podemos perceber, um conto de fadas tem muito a nos ensinar, tanto sobre moralidade, sobre relações humanas básicas, sobre as emoções humanas, quanto sobre metafísica e ciências mais avançadas. Mesmo assim, estamos certos de não ter esgotado este conto, há muito mais a se falar e pensar sobre ele; mas mesmo que investíssemos em discursar a fim de esgotá-lo, não teríamos sucesso; o conto não apresenta uma divisão simbólica artificial, ele não é construído arbitrariamente com partes individuais, avulsas, passíveis de serem distinguidas. Pelo contrário, cada "parte" dele está a serviço do todo, da ideia do todo, e somos nós que fazemos o esforço de recortá-lo a fim de salientar certos valores que nos são transmitidos inseparavelmente com todos os outros por inteiro, intuitivamente. O conto fala uma linguagem intuitiva, de apreensão natural por parte do Geist -- os valores são introduzidos no conto pela sutileza e pelo Geist do povo no seio do qual o conto foi formado tradicionalmente; e é o mesmo indivíduo pertencente ao povo, em cujo seio também queima o Geist popular, capaz de apreender o conteúdo implícito na linguagem discursiva, mas claro, luminoso, quando atinge a imaginação humana. A imaginação trata de interpretar intuitivamente aquilo que está por trás das meras palavras e é engastado pelo Geist do qual ela mesma é feita. Só ela, no homem, tem as chaves necessárias para a compreensão da natureza e da realidade como um todo. Não são as barafundas dos cientistas, mas a imaginação e o Geist que carregam as chaves do conhecimento e dos mistérios da vida.

O conto é um fenômeno vivo e fala por si, por isso dispensa explicações. Se a arte moderna se obrigou a explicar suas "obras" é porque não é mais arte, mas pura técnica -- ela perdeu a linguagem do Geist, que, não obstante, permanece viva nos contos de fadas (não aqueles corrompidos pela Disney, que transformou as histórias, imprimindo novos e decadentes significados em questão de minutos e caneteadas arbitrárias em laboratórios, mas os antigos e originais formados durante milênios de experiência e observação humanas, que falam a linguagem do ser e transmitem o logos). E, por falar a linguagem do Geist, não há contra-indicações, e tanto as crianças quando os adultos, tanto o filósofo quanto o agricultor, são capazes de compreender. Aqui notamos uma citação de Hayao Miyazaki, diretor de animes muito interessado em contos japoneses e até ocidentais, que reproduz um pouco o que estamos a dizer: "uma vez uma mulher que trabalha na produção [dos animes] me contou que as crianças devem assistir coisas que elas não compreendem no momento, mas compreenderão mais tarde -- ora, eu nunca concordei com isto". Miyazaki também pensa que o que se pode saber da vida se pode saber a qualquer momento, independentemente da educação recebida, porque não é a mente racional que conhece, mas o coração humano ou a alma humana, que falam outra língua e compreendem outra língua, uma língua silenciosa e que nos atinge imediatamente na alma. Por isso, seus animes silenciam quando os modernos imprimiriam diálogos insossos, e falam através do exemplo, através da demonstração das sutilezas, sem se limitar a imprimir significações precisas e já orientadas por uma interpretação particular. Ao invés de ordenar a contemplação, mostra o que há para contemplar, e deixa nossa alma contemplar por si, ativamente, participando de sua obra. É como presenciar um ritual dionisíaco e místico, onde enxergamos os deuses e os ouvimos falar diretamente à nossa alma, não como telespectadores, mas como participantes do kósmos no qual eles habitam.

Para terminar, deixamos mais uma citação, desta vez diretamente dos "mistérios", do Corpus Hermeticum, que arrematará muito do que dissemos neste texto:

Se você não se fizer igual a Deus, não poderá apreender Deus, porque o semelhante é apreendido pelo semelhante. Ultrapasse todo corpo e se expanda para a grandeza imensurável; supere todo tempo e se torne eternidade: assim você deve apreender Deus... abrace em ti todas as sensações de todas as coisas criadas, do fogo e da água, do seco e do molhado; esteja simultaneamente em todos os lugares, no mar, na terra e no céu; seja de uma só vez um nascido e esteja ainda no útero, seja jovem e velho, esteja morto e além da morte; e se você conseguir segurar todas essas coisas juntas, os tempos e lugares e substâncias, qualidades e quantidades, então você pode apreender Deus. Mas se você subestimar sua alma e fechá-la no seu corpo, se disser "eu não sei nada, eu não consigo nada, eu tenho medo do mar, eu não consigo escalar o céu; eu não sei o que fui nem o que devo ser", nesse caso o que você tem que ver com Deus? (XI, 20, retirado de Dodds, Pagan and christian in an age of anxiety, p. 82).

[1] http://portal-legionario.blogspot.com.br/2016/07/contos-de-fadas-sao-mais-antigos-que.html
[10/02/2017]

terça-feira, 15 de março de 2016

Heimweh: A Caminho do Heimat

Pintura de Ludwig Fahrenkrog
Os alemães talvez sejam o povo menos caseiro do mundo, o que se vê no fato de que, saindo de suas terras, sempre para mais longe, conquistaram regiões e influenciaram muitos, senão todos, os povos do mundo, dando forma, por sua vez, ao mundo ocidental. A weltanschauung, com a filosofia, a política, a poesia, as artes em geral, as ciências, tomou para si a missão de levar adiante a história do Ocidente enquanto civilização. Inicialmente na Europa, com a expansão e conquista germânica do continente logo da queda do império romano, que se perpetuou por tradições nobiliárquicas, em seguida nas Américas, mas já um movimento levado a cabo por dissidências modernistas, não tradicionais e não mais por sangue necessariamente germânico, embora as ferramentas e a bagagem histórica dessa expansão marítima da Europa seja toda ela construída pelo espírito germânico, essencialmente continental.

Apesar desse espírito germânico expansivo, angustiado e determinado a um fim metafísico, é típico do alemão, mais do que a qualquer povo no mundo até onde se saiba, o tema da nostalgia, da saudade de uma terrinha caseira, pacata, simples, rústica, mas, justamente por tudo isto, consoladora. Por onde se assenta o alemão, seja no Volga, nos Estados Unidos, no Brasil, lá ele canta, em tom iluminado, mas repleto de uma dor oculta, o querido Heimat: "In der Heimat möchte ich sein". O alemão percorre o mundo em busca do elixir, da poção mágica que lhe deve curar a dor existencial, mas, não a encontrando em lugar algum, lá senta ele, melancólico, no meio das trevas, e canta o Heimat. Dia após dia, não encontrando o Graal, como Parcival, chora e canta - e sua música é iluminada como uma manhã de primavera, tem o sotaque de um passarinho, mas um sentimento e um significado escatológico, pois se trata de uma contemplação do nada (ou será do ser?). Ouvindo, talvez nenhum outro povo perceba a gravidade desse canto, mas um alemão, só de ouvir e cantar Heimat, é como se ao mesmo tempo Deus criasse o mundo e o destruísse, num só golpe; fica então só a irresolução da alma daquele que ficou de fora desse Heimat, a dor irreparável de não se sentir em casa em lugar algum.

O alemão tem outra palavra muito significativa: Heimweh. Ela é traduzida para o português como "saudade", mas tem um significado muito particular, até bem distante do "saudade", embora esta seja talvez a melhor palavra lusa para a qual traduzir a germânica Heimweh. Heim, mais propriamente, é "lar", weh se traduz por "dor, sofrimento"; mas o que se pode tirar disso? É preciso uma intuição muito aguda e muito bem direcionada para compreender o que os alemães dizem quando falam Heimweh, através da mera análise gramatical. Não podemos simplesmente deduzir ou induzir nada a partir dessa análise, senão simplesmente os termos friamente sobrepostos: lar e dor.

Para iniciarmos um entendimento com a palavra, devemos começar por esclarecer que o termo Heim, para o alemão, tem um significado ligeiramente distinto do "lar" do português. Heim não é só o "lar" daquilo que chamamos de casa, apartamento, uma construção ou um ambiente sentimental, com a mulher e as crianças. Heim é o lar da alma, e este lar não tem lugar no mundo, e só através da poesia, ou seja, das artes, que o alemão consegue provisoriamente trazer esse lar para o mundo - por isso o alemão é pensativo, e sua mente alterna o tempo todo entre a visão das trevas, do caos, e a do Heim. Mas a forma desse Heim é semelhante a todos os alemães: é uma manhã de primavera, úmida pelo orvalho, que seca nas flores do campo de um vale remoto e virgem, motivo pelo qual Heidegger, ao comentar os poemas de Hölderlin, Trakl e outros, onde muito se fala em "tarde" e "noite", interpretava estes tempos, em verdade, como manhãs de acordo com o sentido do poema, ou seja, como o advento, como a imagem mais própria da origem, da harmonia e da consolação. Fama também têm os alemães de serem idealistas e românticos, de derivarem a realidade toda unicamente das próprias mentes, o que serve de motivo de zombaria ou medo para grande parte dos outros povos, que veem os alemães como loucos incapazes de pôr os pés no chão, capazes de pôr de repente tudo a perder. Esse comportamento é manifestação do seu ser, e revela muito da intensa atividade que os princípios metafísicos provocam no homem alemão: consciente ou inconscientemente, ele é agitado pelo potencial que a distância em relação ao Heimat causa na alma e, assim, na mente e nos sentimentos.

Tendo introduzido uma reflexão sobre o termo Heim, é preciso agora tentar fazer o mesmo com Weh. Assim como Heim não é um termo vulgar que se possa traduzir de qualquer jeito sem perda do significado original e essencial, o mesmo acontece com Weh. Em alemão temos outra palavra para dor e sofrimento: Leid, ambas têm significância profunda e nos serviriam aqui, já que não é exatamente do termo que estamos falando, mas do fenômeno. Avançando, a dor, para o alemão, também quer dizer algo muito além de uma dor física, como quando machucamos a perna e ela dói, muito além também da dor sentimental, como quando perdemos um ente querido e dizemos que o coração dói; para o alemão, todas essas dores são de fato dores, mas no sentido em que elas participam de um significado mais profundo e mais abrangente. Quando perdemos um ente querido e nosso coração dói, para o alemão, isso significa que se abriu uma distância e um buraco na alma, e que é essa distância da alma à sua essência própria, a sua condição de solidão e esvaziamento, de necessidade de um preenchimento metafísico, é isso tudo que é a dor. A dor é a irresolução da alma, sua incompletude: a perda de um ente querido é apenas símbolo para uma realidade metafísica, a realidade do vazio, da solidão, ou seja, da distância do Heimat. Assim, o alemão é muitas vezes considerado frio, por um lado, por não ser tão "caloroso" com os entes que vão, mas, por outro lado, vítima enfraquecida de "meras" conclusões filosóficas e religiosas, que o faz comumente adoecer, enlouquecer e morrer de desgosto, quando não se suicida por "pouca coisa", "com a mudança do vento".

Heimweh, portanto, traduzida por saudade ou nostalgia, é mais como a reminiscência da origem, as memórias de um tempo mítico e primordial, de uma terra onde se pode chamar de "sua", no sentido de que é o alemão que pertence à terra e não o contrário. Um campo iluminado por um sol radiante, de cuja luz todos os seres vivos, árvores, flores, roedores, borboletas, todos se alimentam e são eternos, num tempo que não passa, onde as formas não são destruídas ou transformadas, mas coexistem harmonicamente, em contemplação pura. A dor vem da distância desse tempo mítico, que não é uma distância espacial nem temporal, mas metafísica. Vivendo no espaço-tempo, o alemão está limitado (condenado!) a absorver apenas reflexos desse Heimat, que ele enxerga sobretudo nas formas com as quais representa o tempo mítico, ou seja, no dançar serelepe e gracioso da borboleta, que beija flor atrás de flor, anunciando uma manhã ainda fresca e umedecida por gotículas cristalinas e perfeitas de orvalho, que, por sua vez, se misturam ao aroma suave e sutil das pequeninas florezinhas desabrochadas das gramíneas. E o sol, que dá ser aos entes, ilumina esta terra, onde se encontra o homem (sua essência), ou seja, ilumina o Heimat, o reino, o Reich.

O homem (a essência dele) se encontra no Heimat. O que significa isto? Significa que o alemão, ao sofrer tanto por este Heimat, não está sofrendo em vão: essencialmente, ele pertence ao Heimat, e lá se encontra o conteúdo que está faltando em sua alma vazia e errante pelo mundo espaço-temporal. "Para além do gelo, da vida e da morte", Nietzsche cita Píndaro ao se referir às gentes como ele, Nietzsche, um espírito alemão. Para além das intempéries da existência, lá está o alemão, no Heimat, ou pelo menos o que chamamos de sua essência, de alma, de espírito, sua realidade metafísica, enquanto este homem consciente espaço-temporal habita um mundo provisório, "temporal", frágil, embrutecido, onde as formas são o tempo todo destruídas e transformadas e nada é como deveria ser. "Aqui" e "agora", pois, são a representação da perda do Heimat: o alemão canta uma terra perdida, e é como se não buscasse terra alguma, porque ele senta e mergulha os olhos na imensidão; por quê? Porque não se trata de uma terra ali ou acolá, em um continente, embora tenha no coração da Europa o ambiente ideal formador da sua raça, e no fundo o alemão sabe que não se trata disso, por isso ele canta e, nesse cantar, traz um pouco do Heimat para o mundo, ou melhor, espia de longe a riqueza do Heimat, atualiza e revive constantemente o tempo mítico na medida em que o pode fazer. Aqui descobrimos um fenômeno popular que remonta a sociedades primitivas, cujos rituais tratavam de constantemente instaurar na tribo o tempo mítico, sempre feito com simbologias cosmogônicas. Isto revela a antiguidade, a profundidade e a amplitude que há no Heimweh, cuja natureza de modo algum se pode rebaixar a um mero sentimento, no sentido moderno e talvez até medieval do termo; traduzimos esta palavra anteriormente por algo como uma reminiscência, como a memória, e estes termos, nestes sentidos metafísicos, remontam a Platão, mas cujo sentido e significado se perdem na pré-história humana.

A filosofia germânica, por sua vez, é marcada por estes problemas metafísicos que atormentam o espírito germânico, em geral, e isto se tornou motivo para que a filosofia alemã parecesse ao resto do mundo como um obscurantismo, um idealismo ocultista, muito inspirado, no entanto, pelo misticismo de filósofos como Meister Eckhardt e Jakob Boehme. Schopenhauer, por exemplo, vê o sofrimento como a realidade mais imediata, universal e radical do mundo, que ele concebe como a representação metafísica de uma vontade abstrata que tende infinitamente à perdição - a maneira dos entes se livrarem desse abismo é fazer o caminho inverso desta vontade da qual somos a representação, ou seja, aniquilar em nós a vontade de viver; Schopenhauer, flertando com as tradições orientais, não considerava o homem como a centralidade do ser, e tudo o que se passa com o homem, de modos e medidas distintos, também vale para os animais, para as plantas, mas também para as pedras e todos os demais entes da "natureza": eles também sofrem, pois todo o "aqui" e "agora" espaço-temporal é mera representação e carece, portanto, da perfeição do real metafísico, o nada, o não ser. Schopenhauer também sofreu da nostalgia pelo nada, mas também do Heimweh, o princípio positivo, o Jardim do Eden - era um amante das artes, da literatura, das línguas clássicas, das tradições e dos cantos orientais, martirizado, porém, por uma surdez que o impedia dos prazeres da música de sua época.

Na pintura, os alemães levaram o simbolismo e o romantismo às alturas, ou melhor, aos abismos cavernosos de corações nostálgicos e martirizados por intuições metafísicas: Caspar David Friedrich, entre muitos outros dignos de citação e admiração, soube sintetizar em sua obra o romantismo, que se trata de um movimento erudito, com o sentimento genuinamente popular do andarilho do campo que contempla a bela Erde - ou o que restou dela em meio à profunda melancolia de um observador sensível. Aqui notamos uma certa renúncia à realidade, a mesma renúncia para a qual Heidegger chama a atenção na poesia de Georg Trakl, em Unterwegs zur Sprache (A Caminho da Linguagem); uma renúncia à ordem sacra da natureza, ao κόσμος, mas que denuncia, sobretudo, a Weh na contemplação dos campos, próprios ao observador, à alma que vê. A paisagem, ideal, nas pinturas de Friedrich é também o Heimat, mas o Heimat velado pelo mistério e manchado pelas emoções de um homem consciente da distância; tratam-se de imagens manchadas pelo sangue que transborda da incurável ferida metafísica, e que evidencia nos campos do Heim a própria Weh. Portanto, aqui pode estar velada, sim, de forma erudita porém clara, a Heimweh. Suas pinturas não poderiam deixar de ser germânicas, e talvez principalmente por causa desse sentimento intraduzível, que é genuinamente germânico.

Heidegger escreve: Tristeza e alegria tocam e jogam uma com a outra. O jogo que afina tristeza e alegria entre si, aproximando a distância e distanciando a proximidade, é a dor. Por isso, tanto a alegria mais intensa como a tristeza mais profunda são, cada uma a seu modo, dolorosas.[1] A palavra usada pelo filósofo, porém, não é Weh, mas Schmerz, que é de fato a tradução mais literal para a palavra lusa "dor". Mas, como dito anteriormente, o mais importante aqui não é a terminologia, mas o fenômeno, que se traduz e se multiplica por inúmeros termos diferentes, como Angst, Melancholia, Sehnsucht, cada qual agarrando um aspecto mais preciso e particular do fenômeno. Mas, voltando ao texto de Heidegger, tentemos intuir alguma coisa, pois ele pode nos dar mais uma pista do fenômeno investigado.

Ele diz primeiramente que tristeza e alegria tocam e jogam uma com a outra; ora, tristeza e alegria são estados de ânimos que costumamos considerar opostos entre si. Elas se tocam e jogam uma com a outra: quer dizer que não são duas coisas opostas, mas fenômenos unidos, aspectos de um mesmo; entre ambas, há algo que as unifica, um continuum. Ele diz de novo: o jogo que afina tristeza e alegria entre si, aproximando a distância e distanciando a proximidade, é a dor. Schmerz está em itálico para enfatizar alguma coisa importante: não é uma mera dor, mas isso não significa que é uma "dor muito grande"; significa que sua natureza é mais essencial e fundamental. E, de fato, a dor não é um meio termo entre alegria e tristeza, mas aquilo que as torna um só fenômeno; a dor aproxima a distância, na medida em que há, ainda assim, uma diferença superficial entre alegria e tristeza, mas ela também distancia a proximidade, porque, ambas sendo um, são tornadas duas através do jogo que a dor joga, sendo ela pura atividade. A dor é criadora, e é fundamento e princípio para os estados de ânimo, sejam eles "positivos" ou "negativos" - é da dor que tudo sai, logo, todos os ânimos terão em si, como essência, a própria dor; por onde vai o homem e por onde ele vive, lá está a dor como substância, se é que nos é permitido usar este termo ousado e perigoso. Mas é por isso que Heidegger ao fim conclui: por isso, tanto a alegria mais intensa como a tristeza mais profunda são, cada uma a seu modo, dolorosas.

Isso aponta para uma impressão semelhante à de Schopenhauer, que via a dor e o sofrimento como essenciais à realidade representacional, distante das formas eternas do Heimat. Mas, em outro lugar, Heidegger afirma que a linguagem é a morada do ser. Não é interesse nosso desvendar todo o sentido desta frase, mas fazer alguns apontamentos: nessa morada, a linguagem, o homem habita; não se trata aqui, portanto, da linguagem como usualmente compreendemos, mas da essência da linguagem, que rege não apenas a fala humana, mas a relação ontológica de todos os entes no ser; e se os entes se comunicam, é porque a linguagem é que fala através dos entes. A morada do ser é a morada do homem: é o Heimat. Por ser tão essencial e sutil, a linguagem também é ofuscada pelo palavrório ou falatório do cotidiano, e requer harmonia entre o falar do homem e o dizer da linguagem, que flui como eternidade falante; assim, Heidegger também concluirá através de suas investigações que é a poesia a melhor ou única forma pela qual a linguagem, sozinha, comunica a si mesmo através do homem. O poeta, nesse caso, é aquele atravessado pelo Heimat, é aquele que o permite se manifestar, falar, trazer alguma mensagem. É aquele que vive rumo ao Heimat, como se já estivesse no Heimat, apenas com a terrível fatalidade e diferença de se encontrar tão distante dele, enquanto é espaço-temporal, e o Heimat, além de toda limitação do "aqui e agora". Além disso tudo, poesia e pensamento, sendo tão diferentes (ou idênticos) entre si como alegria e tristeza, são um mesmo, e tratam de permitir que a linguagem fale na linguagem da linguagem. Aqui podemos recordar os gregos, cujos poetas eram inspirados por musas, tal como os filósofos, amantes da deusa da sabedoria. A diferença é que o germânico, ao invés de iniciado positivamente pela beleza das musas, é um condenado ao mistério da recordação de uma terra perdida, um reino perdido, oculto, em "algum lugar", em "algum tempo".


Essas reflexões chegam em tempos difíceis; os germânicos, ainda mais aflitos com a condição do mundo, seja na Europa, na América do Norte ou na América do Sul, onde há colônias que ainda lutam para preservar suas tradições (e manter mais próximo o Heimat), angustiadamente abraçam a modernidade e a globalização em busca de alguma resolução imediata para problemas cuja natureza, em verdade, é metafísica. Então exploram suas cidadezinhas e suas comunidades, que os abraçaram e consolaram durante gerações, onde rostos familiares só de aparecer no espaço público já causavam consolo, traziam o Heimat, a morada, e, explorando por um lado seus tesouros históricos (por exemplo, através do turismo e dos souvernirs), também os abandonam em busca de carreiras no nomadismo global, onde não há chão firme nem rosto amigo para uma companhia duradoura.

O combate de Heidegger e Jünger ao imperialismo da técnica, que é um combate genuinamente germânico, se mostra cada vez mais atualmente necessário. Famílias inteiras estão se dissolvendo, perdendo sua história para os interesses do mercado e das ideologias reinantes, que visam à destruição completa das identidades e diferenças, nivelando populações a fim de legitimizar um governo global onde os "governantes" são os chefes de oligopólios e monopólios, inalcançáveis ao poder dos povos. E o ganho da economia sobre as humanidades deve representar, evidentemente, a derrota da essência humana, da essência do homem e do mundo enquanto seres vivos repletos de significância e propósitos metafísicos; deve representar a prisão da alma, da ψυχή, a servidão da alma a propósitos meramente materiais.

E o que isto tudo significa? No mínimo, que a existência humana já não tem mais razão para continuar sendo. E embora isso tudo possa parecer uma bazófia para as massas, crentes nas maravilhas que o mundo moderno proporcionou, não lhes parecerá no futuro; assim como hoje, sem ter noção do significado (histórico e religioso-metafísico) da decepção e da epidemia de depressão e ansiedade que temos por todos os lados nas sociedades, apesar de tudo, clamam as massas enlouquecidamente por mudanças, em todos os setores e regiões da civilização ocidental.

Este texto tem o propósito, além do de provocar uma reflexão acerca da alma germânica, ao mesmo tempo, de fazer um chamado aos germânicos, um chamado à reflexão e ao estudo da gigante história e do rico legado germânico que sobra durante esta história.

Para terminar, deixamos abaixo um trecho de uma canção popular alemã, cujas variações podem ser encontradas em todas as colônias, já que o tema, bem temos que reconhecer, é familiar a todos.

In der Heimat auf der Ferne, in der Heimat möchte ich sein.
In der Heimat, in der Heimat gibt es frohes Wiedersehen.

Abends wenn die Lüfter wehen un der Mond am Himmel steht,
Steigt in mir ein heißes sehen, in der Heimat möchte ich sein.

Wenn ich sehe wie andre Kinder in dem liebsten Elternhaus
Gehen zum Vater, gehen zur Mutter, gehen froh tagein tagaus.

Und ich muß ins weiter Ferne, in den fremden Orten sein.
Muß mein Brot mir selber verdienen. O es ist so hart wie Stein. 

NOTAS

[1] Heidegger, M., A Caminho da Linguagem, Vozes, pg. 186.