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sábado, 4 de setembro de 2021

As Duas Loucuras na Arte

John Bauer, um exemplo de arte curativa

A loucura é um assunto clássico do pensamento ocidental. Platão, no Fedro, distingue dois tipos de loucura (mania): uma má, contrária à razão, que levaria aos excessos dos prazeres, por exemplo na atração homossexual (a atração erótica pelo mesmo sexo é contrária à sua função natural, que é procriar); e outra boa, “divina”, que se divide em quatro subtipos: a profética (apolínea), a iniciática (dionisíaca), a poética (inspirada pelas musas) e a erótica (inspirada por Eros). Mais recentemente Michel Foucault, em Folie et Déraison (1961), analisa o conceito de loucura tomando por base o método fenomenológico de “alteridade”; o que seria um trabalho psicológico se torna mais um trabalho sociológico que visa captar a linguagem pela qual os homens são arbitrariamente excluídos da sociedade.

Podemos, ainda, considerar a arte como uma instância da loucura. Platão já incluíra, de alguma maneira, a arte nessa loucura “boa”. Em sua época, todas as artes tendiam a buscar em algum sentido o bom e o belo e, por isso, o harmônico ou racional, e neste sentido se inserem na loucura boa ou divina, porque elevam, curam, tranquilizam, reordenam a alma humana. Mas hoje não podemos mais ser tão coniventes com a arte; as técnicas tomaram a sociedade moderna, hoje tudo é essencialmente técnico, e sendo técnico tudo está dotado de intencionalidade daquele que produz e daquele que utiliza. Vivemos em uma sociedade em permanente construção, controle, manutenção, a própria ordem já não se assenta apenas na natureza, mas depende de um bom uso da técnica. É por isso que hoje devemos discutir a boa e a má loucura dentro da arte moderna.

Todas as artes lidam com o fantástico e são já, nesse sentido e por definição, uma loucura. Não é possível criar algo que não seja em algum sentido artificial, que não se distinga do puramente natural. Toda arte visa montar sobre o natural, transcendê-lo. Mas então surgem dois comportamentos distintos por parte dos artistas e daqueles que empregam as artes: primeiro há aqueles que usam o fantástico para destacar aspectos do mundo natural ou que criam artes que se utilizam do mundo natural, não visando corromper seus princípios básicos, racionais; em segundo lugar há aqueles que usam da arte para distorcer a realidade propositalmente, criar novos princípios contrários à natureza e reificá-los por meio da expressão estética[1]. Vou chamar o primeiro de arte curativa e o segundo de arte degenerativa.

 Arte Curativa

A arte curativa é aquela que, usando de engenharia estética, visa resolver contradições do mundo humano com o mundo natural. Para dar um caso bem paradigmático, falemos da divisão sexual. Há artes que enaltecem tanto os aspectos masculinos no homem e tanto os aspectos femininos na mulher que, com certeza, podem ser consideradas loucuras pela intensidade exagerada de seus aspectos. Muitas das esculturas gregas e romanas seguem esta lógica; na literatura gótica este motivo também está bastante presente, por exemplo no Drácula de Bram Stoker, que exagera por um lado a imagética do poder, da força, do intransponível, qualidades masculinas da personagem vampiresca, e por outro a sensibilidade e fragilidade femininas em suas vítimas. Na literatura religiosa nós costumamos ter o mesmo motivo quando se analisa a relação que Deus tem com sua Criação, uma relação de interferência, autoridade, muitas vezes de ira, controle e castigo; a Criação mantém com o Criador uma relação que se repete entre mulher e homem. O símbolo, nestes casos, ajuda a elucidar, apontar para algo essencial, concreto, com lastro na realidade imanente, e assim educa o leitor, muitas vezes curando-o de medos, traumas e uma incapacidade de compreender “o outro”.

Sobretudo no mundo contemporâneo, a arte curativa é fundamental, de importância máxima. Uma vez que tudo é técnica (tekhnê em grego serve tanto para a engenharia quanto para a “arte” em sentido moderno), são necessárias obras que o tempo todo lembrem o homem daquilo que ele é essencialmente. A técnica do mundo contemporâneo é uma maré de esquecimento, de apagamento da visão das essências, de esquecimento e distanciamento do próprio real; nada tão necessário como as artes que levem ao homem de volta para aquilo que ele é, que o coloquem no seu lugar, na sua função cósmica. O papel do masculino, ainda que por meio da arte, deve permanecer masculino, e o papel feminino, da mesma maneira, deve permanecer feminino. O grande desafio dos artistas contemporâneos é criar técnicas que não corrompam essa relação, mas a atualizem sob novas formas. Isso vai desde a literatura até a legislação e o urbanismo – todas estas esferas são técnicas.

O filósofo alemão G.W.F. Hegel já havia pensado em tudo isso. Para ele as formas e os momentos mudam, mas a consciência permanece em seu processo dinâmico e contínuo. As formas se reatualizam, mas não corrompem o real, o saber absoluto não é um arbítrio do sujeito, mas um saber que diz respeito ao real concreto. Assim, a complexidade com que, por exemplo, homem e mulher se relacionam no mundo moderno será diferente da complexidade com que a mesma relação acontece no mundo grego e depois no mundo romano. Mas o homem e a mulher, em si, não se transformam, não deixam de ser homem e mulher, e dessa maneira não perdem a relação essencial que há entre eles. Se no mundo antigo a mulher era submetida pela força, no mundo moderno será pela lei e pela cultura, que por sua vez são construídas por homens[2]. E nisso está a liberdade no idealismo hegeliano, o fato de que cada consciência tem seu lugar natural garantido por uma lei universal.

É evidente que uma arte curativa exige esforço, antes de tudo um estudo, uma reflexão sobre a realidade e, no caso em questão, sobre o que é o masculino e o que é o feminino. Deve-se buscar na realidade, na observação empírica e na tradição clássica os elementos simbólicos que podemos extrair e utilizar na expressão destes dois polos do homem[3]. Quando há uma personagem masculina, deve-se saber dotá-la de características masculinas[4], e o mesmo serve para as personagens femininas. O artista que cura é um sábio, um alquimista, um terapeuta[5], e não é possível sê-lo sem primeiro conhecer o real com a profundidade necessária para poder representar os objetos que aparecem na arte. Os bons escultores são também conhecedores do corpo e perscrutam cada músculo, cada osso, cada movimento antes de imprimi-los em suas obras – do contrário, o objeto tende a não ser o que visa representar. Notemos que estamos falando de arte em sentido genérico, misturando o realismo e o fantástico: na verdade estamos borrando a barreira entre os dois, porque o vampiro no Drácula, pelo menos enquanto expressão enaltecida de traços reais do homem masculino, não deixa de ser “realista” quanto a este objeto em particular, por mais que suas qualidades ultrapassem as do homem comum do qual ele é imagem[6].

Em geral, a arte curativa costuma se tornar um clássico. Se olharmos para a história veremos que todas as artes que permaneceram, sejam fantásticas ou realistas, foram em algum sentido um dispositivo de rememoração da realidade: os deuses em Homero amplificam relações hipotéticas entre homem e mulher, entre pai e filho, entre comandante e súditos etc., os templos greco-romanos satisfaziam a intuição que o homem grego tinha do belo e do harmônico, as catedrais góticas, ainda que bastante diferentes dos templos gregos, da mesma maneira se punham como obras harmônicas para o espírito europeu, não irritando-o mas inspirando-o e dando vazão às suas potencialidades psíquicas. E sobretudo na literatura religiosa encontramos os símbolos mais bem condensados, mais bem trabalhados, refletidos, aprofundados, ainda que também sejam mais abstratos e que possuam uma linguagem mais “estranha” ao público vulgar. Deus, Criação, Adão e Eva, o Éden, em algum sentido condensam em si os elementos de toda a literatura mítica e fantástica posterior.

Arte Degenerativa

Com base no que já foi dito fica fácil compreender o que é a arte degenerativa. Ela é em algum sentido o oposto: ao invés de fazer o homem rememorar quem ele é, como ele é, qual seu papel no mundo, ela visa ofuscar, afastar essa lembrança. E para tomarmos exemplos desse tipo de arte basta lançarmos os olhos para a enxurrada de livros e de exposições artísticas que se fazem nos museus e nas praças atualmente, ou então basta observarmos a arquitetura lúgubre, fria, mórbida que se espalha como selva de pedra nas grandes cidades. Por via de regra, tudo o que é feio ou que não possui preocupação com o belo já é em si degenerativo, porque a experiência do belo é em si um processo curativo, harmonizador, que leva em conta o ambiente onde se insere e o sujeito que presencia a obra neste mesmo ambiente. Uma obra de arte pode ser abstrata, “estranha”, e ainda ser curativa; para ser degenerativa não é necessário ser abstrato nem “estranho”, pode também ser bem concreto e realista[7].

Sobretudo hoje, um dos melhores exemplos para demonstrar a arte degenerativa é apontar para a maneira como se representam os sexos nas artes. O mais comum é o apagamento da divisão sexual entre masculino e feminino[8], mas também temos a distorção da natureza dos sexos com a sobreposição de características masculinas e femininas nas mesmas personagens e, o que não é menos grave, temos a distorção das relações entre os sexos[9].

Ao invés de elevar, purificar, transcender, tornar sutil, a arte degenerativa rebaixa, faz apodrecer, torna tudo deveras imanente e concreto, duro, denso, impenetrável e do qual é impossível fugir. E assim ela não traz uma experiência de harmonia, de leveza, mas incute a angústia, a ansiedade, a sensação de se estar perdido, isolado, sozinho, dividido e decomposto; ela cinde a psique ao invés de unificar e recompor. Ela provoca o estranhamento, a náusea do existencialismo sartreano. Sartre talvez seja o maior representante intelectual dessa arte degenerativa; sua filosofia é a degeneração cristalizada, o ódio ao homem, ao mundo, o ressentimento de ser o que ele é diante de um mundo que é melhor do que ele. Sartre quis que todos se sentissem imundos e pútridos como ele se sentia ao se olhar no espelho ou se comparar com outras pessoas com belos rostos, por isso quis que todos experimentasse o absurdo que era ser um Sartre. É precisamente daí que vem toda a parafernália intelectual que deu suporte a uma ostensiva produção de arte degenerativa da segunda metade do século XX para cá. O modelo neoliberal viu em Sartre um poderoso instrumento de dissolução de povos, de psiques, de comunidades, de Estados, e não poupou esforços na promoção de tudo o que degenera, enfraquece, apodrece, dissolve com vistas a dominar e imperar pelo dinheiro e pelo poder policial. O absurdismo, que deu suporte intelectual à arte degenerativa, é a ideologia do esquecimento permanente, a luta pela perdição da alma contra tudo o que eleva e cura. Assim, uma maneira de compreender a arte degenerativa é estudando Sartre e sua fenomenologia do absurdo.

Conclusão

Analisamos dois tipos de loucura, isto é, o fantástico na arte. Um nós definimos como arte curativa e o outro como arte degenerativa. Os dois manipulam a realidade, em algum sentido “distorcem” ela; mas enquanto o primeiro tipo o faz sem corromper a realidade, o segundo o faz corrompendo-a. A experiência que o sujeito tem na primeira arte é positiva, a arte o eleva, o unifica, o harmoniza, enquanto que a experiência que ele tem na segunda arte é negativa, a arte o rebaixa, o decompõe, introduz a desordem em sua psique. Se usarmos um conceito grego para defini-las, diríamos que a primeira é racional e a segunda é irracional.

NOTAS

[1] Karl Marx havia analisado esse fenômeno da reificação no processo capitalista: o produto do capital é artificial, ele se torna uma necessidade fabricada, falsa, ilusória, e seduz a sociedade a consumir. É o fetiche (um impulso patológico) que impulsiona o capital.

[2] Para Hegel, bem como para todos os idealistas e românticos, o masculino estava essencialmente ligado à esfera pública e à lei, enquanto ao feminino se reservava a esfera privada e a religião (os Lares). Isso define a sociedade moderna ideal hegeliana, que não transforma essencialmente o mundo grego, mas o reatualiza, resgata sob novas formas civilizacionais.

[3] Aqui deve-se ler “Homem” em sentido genérico, e utilizo o termo por uma questão de gosto e etimologia. “Ser humano” me parece uma aberração moderna, uma gambiarra linguística, e por isso busco evitar ao máximo, ainda que talvez pareça mais claro ao leitor vulgar.

[4] Infelizmente as autoras raramente conseguem esta proeza. Por exemplo em Frankenstein, de Mary Shelley, Robert Walton, não fosse o nome, poderia ser uma mulher pois tem todos os traços psíquicos de uma mulher: sofre com solidão, paranoia, baixa auto-estima, insegurança, busca o consolo, o conforto, e possui uma compaixão bastante exagerada.

[5] Com um propósito mais claro na terapia podemos citar o romance de formação e, como seu maior exemplar, o Wilhelm Meister de J.W. Goethe.

[6] Também temos que levar em conta que os objetos no Drácula possuem múltiplos significados simultaneamente; o vampiro não é feito para ser a mera representação de um homem; esta personagem induz a muitas interpretações simbólicas, sociais e psicológicas que, contudo, não negam a natureza psíquica de seu fundamento, que é em algum sentido um homem (e na própria história o vampiro foi, uma vez, um homem, sua natureza se deu em cima da matéria masculina, a partir dela).

[7] As obras de Marcel Duchamp são realistas e ainda sim horríveis, desarmônicas, toscas, rasas, degenerativas.

[8] Um exemplo são as pichações de “Os Gêmeos”, que deveriam estar presos por depredarem o patrimônio público pelo mau-gosto que espalham nas grandes cidades mundo afora.

[9] Um caso de se citar aqui talvez seja o assim intitulado Cinquenta Tons de Cinza; ele não distorce a natureza dos sexos em si, mas as relações entre eles: ao invés de termos relações de proteção, unidade, cumplicidade, amor e frutificação, temos relações externas de exploração entre os sexos; esse tipo de literatura se torna ainda mais perigoso porque seu ardil é muito mais sutil e apela mais facilmente aos jovens que vivem a explosão dos hormônios. No mais, podemos citar quase tudo o que se produz hoje nas telenovelas, música pop etc.: é sempre uma mulher que comanda e homens que obedecem e meramente acompanham; a relação hierárquica foi totalmente invertida.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A Folha de Cisco: o encontro entre Tolkien e Hegel

 

O conto A Folha de Cisco, de Tolkien (publicado mais recentemente pela Harper Collins Brasil em 2020), é uma obra com profundo caráter autobiográfico. O protagonista, Cisco, personifica as inclinações do autor, e a lição moral da obra como um todo é de algum modo uma defesa de sua própria visão-de-mundo. Mas estes elementos não estão presentes apenas como uma expressão subjetiva do autor, que visa expor “sua visão” sobre o mundo ao modo romântico; eles estão organicamente construídos como obra universal e intemporal, que não simplesmente impõe sua perspectiva sobre o leitor, mas o convida a uma reflexão impessoal sobre o mundo e os acontecimentos, uma viagem ao interior do mistério da vida.

 A narrativa conta a história de Cisco, um pintor desajeitado que constantemente adia a preparação para sua viagem. Às vezes ele empacota alguma coisa aqui e ali, mas logo abandona e se volta para sua pintura. No esforço de pintar uma árvore, com todos os detalhes possíveis em sua imensa complexidade, ele gasta todo seu tempo disponível. Então surgem os problemas: o vizinho, Pároco, constantemente bate a sua porta para interromper seu trabalho, requisitando ajuda para questões cotidianas, desprezando a obra em desenvolvimento; com isso concorre ainda o tempo, cada vez menor, para a viagem, e a dificuldade cada vez mais consciente de conseguir pintar a árvore em todos os seus detalhes conforme imaginada pelo pintor. Por fim, todos os males surgem quase que instantaneamente juntos: Cisco, ao tentar ajudar Pároco com o telhado de sua casa destruído, pega um resfriado e cai doente; assim que sua febre melhora surge o Inspetor para exigir o uso da tela, da madeira e da tinta usada na pintura para o conserto da casa de Pároco, e ao lado dele aparece o Carregador para levar Cisco à estação de trem para sua viagem, para a qual ele não havia se preparado. Chegando no destino ele passa por um período de trabalho manual que serve como uma purgação de sua obsessão artística, e depois é tratado em um hospital; neste hospital ele ouve duas vozes discutindo o julgamento a se fazer a respeito de Cisco, até que a Segunda Voz, que detém da autoridade, o envia para um jardim. Neste jardim o protagonista encontra sua árvore, mas desta com todos os detalhes prontos, tanto aqueles que Cisco poderia ter pintado quanto aqueles que ele jamais conseguiria pintar, afinal esta árvore tem algo que a outra não tinha: vida, era uma árvore e não apenas uma pintura. Cisco, sentindo-se satisfeito, pede então à Segunda Voz que traga Pároco para este jardim, com quem ele poderia compartilhar desta experiência. Chegado no jardim, Pároco diz a Cisco que ele também havia sido julgado e que só por causa do pedido de Cisco que a Segunda Voz concedeu este destino. Cisco descobre que todo o lugar onde ele caminha faria parte de sua pintura, quando ela estivesse pronta, e aos poucos descobre um lugar mais ao longe, para o qual a pintura ainda deveria ser descoberta: a montanha; e para lá ele se dirige. Pároco, porém, decide retornar ao jardim e pedir a concessão de sua esposa, para que ela também possa desfrutar dessa vida. Enquanto isso, Cisco se dirige à montanha, orientado por um Guia.

 Toda esta narrativa, independentemente da interpretação que possamos fazer, apresenta claramente um movimento circular que começa na idealização subjetiva da pintura, “desce” para a realidade cotidiana e contingente, e por fim, depois de um processo de ruptura, retorna para o objeto dessa idealização, mas agora como realidade. Esse movimento imita todo o sistema da obra hegeliana, que começa na Ideia abstrata, “desce” para a natureza e para a contingência, e por fim sobe retornando para esta mesma ideia, agora não mais como abstração, mas como Espírito, como realidade concreta. Em Hegel também é com a arte, a religião, a alta política, a filosofia especulativa (cujo método ele identifica à tradição neoplatônica) que o homem percorre o caminho de retorno ao Uno, ao mesmo tempo origem e destino da Ideia.

 A tônica do conto de Tolkien, contudo, está neste trecho de “ascensão”. Não apenas Cisco passa por este processo, mas toda a realidade, exemplificada pelo Pároco e por sua esposa, o acompanham na jornada. Fica demonstrada a inferioridade da realidade cotidiana, da qual Pároco compartilha muito mais que Cisco, e a superioridade (inclusive ontológica!) da realidade ideal expressa pela pintura. Embora o pintor seja um tanto desconhecido no mundo cotidiano (ele é apenas um sujeitinho desprezado e até pouco conhecido por seus conterrâneos), o que se descobre é que todo mundo, em dado momento, acaba tendo que fazer a desdita viagem, e a culminância do destino, a “terra primeira” (o paradigma) em vista da qual todos os destinos são julgados pelas duas vozes, é aquela que subjazia na mente idealista do pintorzinho e que ele, com muita dificuldade e imperfeição, tentava expressar, com tinta sobre tela. A viagem pode ser tomada como o momento de dissolução, na linguagem alquímica, quando o neófito é iniciado nos altos mistérios e “morre” para um mundo ao mesmo tempo em que “renasce” para outro, este sim, o “verdadeiro mundo” a ser alcançado ao longo de um processo de coagulação.

 Na medida em que Cisco percorre seu caminho, sempre iluminado por seu ideal, ele traz consigo, atrás de si, todo o resto da realidade, arrastando o mundo de volta para o princípio. É por causa de Cisco que Pároco pôde ascender ao jardim, e por causa de Pároco, depois de ter finalmente sido iluminado pela vida da árvore, que a mulher do Pároco, ainda mais maculada pela vida “profana”, também pôde receber uma passagem para o jardim – todos formando uma “corrente de ouro” que se dirige para um destino único.

 Da parte de Tolkien, está clara, como parte da “lição” que o conto transmite, uma crítica ao desprezo que de modo geral a sociedade costuma ter pelos seus artistas, quando são estes que fornecem a “substância” da vida, a razão da realidade e, por conseguinte, o motivo pelo qual viver. O que Hegel diria é que a imagem pensada pelo artista é a própria estrutura do real ainda não efetivada. O artista (compreendido aqui em sentido amplo, incluindo o filósofo especulativo e o político conforme idealizado por Hegel, concretizado na figura de Napoleão), na medida em que ele, como um profeta, se define como aquele que profere a Ideia, é, tanto em Tolkien quanto em Hegel, o guia de um povo. E o destino é a divindade; para Hegel, o Espírito Absoluto que transcende as formas contingentes, e, para Tolkien em seu conto, a montanha, capaz de transcender até mesmo a árvore com sua multiplicidade de folhas e detalhes.

 É claro que devemos levar em consideração também as diferenças. Tolkien era um católico, Hegel era luterano. Mas, embora os símbolos usados no conto de Tolkien tenham de fato alguma proximidade maior com o catolicismo (a árvore, o “guia”, a “redenção”, o “purgatório”), eles estão muito longe de representar uma analogia com os dogmas do catolicismo. Estes símbolos falam por si, e deles se pode encontrar talvez uma proximidade ainda maior com o que Hegel chamou de “filosofia especulativa”: embora não possamos de modo algum definir, por exemplo, o jardim do conto como a “substância primeira” da realidade (afinal isso seria cair também em discurso alegórico), a estrutura com que os elementos ontológicos do conto estão organizados mostra claramente uma hierarquia entre “níveis de realidade”, as quais não se diferenciam meramente por um ser superior ao outro, mas pelo fato de os superiores “conterem” os níveis inferiores em si. É a árvore e seu jardim, seu entorno, que detém a vida da qual as plantas no mundo contingente são feitas. E essa árvore é superada por um manancial que, brotando no seio da floresta, alimenta todo o jardim – inclusive é desta fonte que Cisco bebe no final dos longos dias de trabalho para se manter vigoroso, possuindo esta fonte então um caráter curativo e rejuvenescedor que na alquimia o ouro e a pedra filosofal representam.

 A estrutura de A Folha de Cisco é, assim, mística. Ela não apenas exprime uma obediência, um respeito, uma veneração, ou um culto a uma certa divindade, mas introduz a busca pela fusão espiritual com a “substância divina” que a tudo dá vida. Este talvez seja o elemento culminante ou nevrálgico do parentesco com a filosofia hegeliana: para o filósofo, não basta a veneração do divino de modo distanciado e alienado, é preciso, em um movimento duplo, “internalizar” a Ideia (a estrutura da realidade), e efetivá-la no mundo através das estruturas históricas, de modo que as instituições, como as artes, a família, a sociedade, a religião, o Estado, tomados em conjunto, em um sistema orgânico, se tornem uma gigantesca escada para o alcance final do divino por parte dos espíritos singulares, em um êxtase universal, da substância universal. Por ser luterano, e não católico, Hegel concebia um valor especial para a subjetividade nesse trabalho (também duro e por vezes doloroso, como o foi para Cisco no conto diversas vezes), e neste ponto de novo ele se aproxima de Tolkien, que, embora católico, também defendia a literatura individual, o isolamento e o trabalho intelectual (subjetivo) como partes fundamentais do processo espiritual do homem. Afinal, é o “sujeito” que conhece, e a realidade deve ser conhecida. A Fantasia, para Tolkien, não é um escape para o irracionalismo, mas uma forma superior de racionalidade, tal como para Hegel a filosofia especulativa (atacada como “devaneio” por seus opositores) é o modo par excellence de se alcançar o Espírito Absoluto – por trás da Fantasia e da filosofia especulativa está uma “outra razão”, intemporal, organizada em princípios objetivos, que dá sentido à vida e também à própria razão instrumental (as duas razões não estão em desacordo). Essa “outra razão” é aquela capaz de “ver” a realidade invisível, os princípios transcendentes, que a razão instrumental é por definição incapaz de explicar e compreender.

 A ampla gama de correspondências que se pode encontrar entre Hegel e Tolkien (não só no conto em questão) talvez seja fruto de uma grande erudição de ambos, de onde certamente vão acabar bebendo de fontes próximas e similares na história do pensamento e sendo influenciadas por elas, portanto não exatamente de uma influência direta. Mas são muitas essas correspondências, e a mais interessante de todas, aquela que destaca ambos os autores de seus próprios contextos e os coloca em sintonia, é a tonalidade mística de busca e de união intelectual e substancial com o divino, por sua vez a própria fonte da vida – e, para ambos os autores, tudo o que existe é, no fundo, Vida.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

A Felicidade no Pensamento

Carl Spitzweg

Não sou um estudioso de Aristóteles, mas não é preciso ser especialista para saber que é a ele que devemos o conceito ocidental de contemplação. Para Aristóteles, a grande questão que move o homem é a felicidade; ela é o objetivo, a causa final do ato de viver. Nós nascemos em busca da felicidade, nós vivemos para sermos felizes.

Mas então a grande questão que surge é: “o que é, então, a felicidade?”, o que constitui, concretamente, a felicidade. Estaria ela na posse de bens? No poder político? Na fama, no sucesso ou na glória? Para Aristóteles, em nenhum destes lugares a felicidade está. Mais do que isso, ela não está em lugar algum, não está reduzida a uma quantidade de coisas, mas é, pelo contrário, um modo de ser, de viver. A felicidade não é um fim concreto que se possui em um dado momento ou se circunscreve sobre nossos braços; pelo contrário, ela é o próprio ato contínuo e ininterrupto de busca pela felicidade. A felicidade está no busca-la, não no alcança-la. Essa busca se traduz como conhecimento, pois é no conhecer as coisas que o homem se coloca no interior dessa busca e o permite vislumbrar a natureza das coisas. Contemplação em grego é theôria, de onde surge o conceito moderno de ciência, mas também de contemplação religiosa. Para Aristóteles e os antigos em geral, ciência e religião não eram coisas distintas, mas aspectos de um mesmo fenômeno, ou antes disso: um modo de ser, de viver – diria ainda Heidegger, um modo de existir autenticamente, na visada dos deuses.

Assim, para Aristóteles a felicidade é o conhecer, ou o contemplar. A vida teorética está no nível mais alto da hierarquia humana, sendo também o modo de ser mais feliz, ou, para usar o termo grego eudaimônico, o modo de ser “de [mais] bom espírito”. Foi daí que derivou o misticismo e a vida religiosa tanto no cristianismo quanto no islamismo, mas também foi daí que surgiu a noção científica do mundo ocidental. O cientista é aquele que contempla a realidade e a admira, e existe exclusivamente para essa contemplação. É um sacrifício para a beleza celeste e terrena. A ciência nasceu desse espírito religioso e só mais tarde, muito mais tarde, ela passou a ser utilizada para outros fins, seja para a tecnologia ou até mesmo para o enriquecimento. E mesmo assim, ainda nos nossos tempos de profundo distanciamento desse ideal antigo e sacro, a ciência reserva (e sempre reservará) lugar para o sacrifício teorético. Não poucos são os cientistas, enclausurados nas universidades, que mergulham apaixonadamente nas grandes questões da humanidade, seja na história, na biologia, nas letras, ou ainda e acima de tudo: na própria filosofia. E estes homens, no geral, costumam brindar a todos nós obras impecáveis, magníficas, de uma beleza que jamais deixaria de assombrar as almas delicadas e purificadas, afeitas também à vida teorética.

Para Platão, os cumes da existência humana não estavam reservados exatamente aos homens enclausurados e entregues à vida teorética. Para ele, a política era fundamental, e a noção de uma vida feliz (se é que ela existia para Platão) estava certamente mais ligada à noção de justiça política. O objetivo não era tanto a felicidade individual, mas o serviço feito aos deuses, de acordo com sua vontade; e a justiça representava esse fim na terra, ou melhor: na pólis, a cidade-Estado. Mas, embora ele não tenha enfatizado a vida contemplativa, também é na República que o nível mais alto da hierarquia é aberto aos filósofos, que na sua época não significava – obviamente – pessoas com “diploma”, mas pessoas sábias. Pessoas sábias, porém, como nos mostrava Sócrates nos diálogos de Platão, eram pessoas que, em não sabendo, buscavam saber. E o motivo que tornou Platão a verdadeira inspiração para as especulações da astronomia e das ciências em geral talvez seja ainda o fato de que é “no além”, e não na terra, que segundo ele se alcança o que podemos compreender por felicidade. É no mundo das Formas que encontramos o Bem e o Belo, os paradigmas ontológicos de todas as coisas que são aqui na terra, e que são de modo inferior, nem tão boas nem tão belas quanto “lá em cima”. De modo que também Platão tenha estabelecido como prioridade uma vida contemplativa.

Não por acaso, foram os neoplatônicos, como Plotino e Porfírio, que, utilizando-se também muito das teses aristotélicas, organizaram-nas em um modelo platônico regido pela noção de justiça e pela metafísica das Formas no “outro mundo”. A vida contemplativa se tornou prioridade, e por vezes até hostilizava os horrores da política. Mas a contemplação se inseria em um sistema paidêutico abrangente, que reunia todas as esferas da vida e toda a hierarquia política em um conceito cosmológico de justiça, que os homens – os filósofos – passaram a aprender dos deuses. E aprendiam através da oração, da piedade e da fé em relação aos deuses, de uma vida estritamente religiosa. Mas assim como aprendiam dos deuses a justiça, também aprendiam as leis da aritmética, da gramática, da lógica – que derivaram áreas da ciência como a geometria, a música, a astrologia. E assim a ciência, inspirada sempre por uma relação religiosa com o kósmos, foi se desenvolvendo através da Idade Média, de onde surgiram as noções de “artes liberais”, “artes régias” ou “artes sacras”.

A ciência sempre foi algo que deveria existir por si mesma. De novo segundo Aristóteles, uma coisa tem um valor máximo e pode servir de objetivo apenas se ela tem um valor intrínseco, i.e., se ela não está sujeita a outro fim que não ela mesma. A vida teorética não está sujeita a nada, ela é pura contemplação, ao contemplar o contemplador não visa preencher ou realizar outro fim que não a própria contemplação. Então, se a contemplação estivesse sujeita a outra coisa, ela perderia seu valor. Por isso que a contemplação e a ciência, para Aristóteles, Platão e os medievais, jamais deveriam estar sujeitas a outro objetivo que não a própria contemplação ela mesma. Portanto, a noção de que alguma coisa só tem valor quando ela serve, por exemplo, ao mercado, ou às “riquezas”, para um grego, um homem antigo em qualquer lugar do mundo, ou mesmo um homem medieval, soaria no mínimo cômico, senão irônico. De um modo ou de outro, soaria assim: satânico. Pois é através da contemplação que contatamos os deuses e recebemos sabedoria, o bom e o belo, a justiça etc.; se a contemplação for sujeitada a um fim exclusivamente terreno, titânico ou material, ela estará servindo não aos deuses, mas a outro tipo de “coisa”, a saber entidades “subterrâneas”, obscuras, de algum modo inimigas, que têm o caráter de desviar a mente humana, distraí-la para fins estranhos e perigosos.

Para Jâmblico, por exemplo, um neoplatônico importante, que influenciou largamente o desenvolvimento científico e religioso no Ocidente e no Oriente Próximo, a matemática pitagórica, que compreendia o núcleo duro de toda atividade científica, servia para purificar a alma dos elementos obscuros, “terrenos”, a fim de torna-la leve, límpida, e fazê-la ascender aos deuses. As ciências tinham em geral um aspecto ao mesmo tempo religioso, pois os princípios científicos ensinavam também a teologia e inspiravam ao bom e belo transcendente, e tinha também um aspecto ético/político, pois o aprendizado funcionava como uma paideia capaz de tornar mais sutil os hábitos e os pensamentos do aluno, que, na medida em que ascendia espiritualmente, também ascendia politicamente rumo a níveis superiores na hierarquia humana.

Aqui, de novo, e assim sempre, o objetivo da ciência está voltado à contemplação pura, à teoria, à especulação, à kalokagatia ou o bom e belo como ideal e modo de vida, como felicidade. Nada de “aplicação” e muito menos de “gerar riqueza” para um tal de “mercado”. O mercado é o reino de Mammon, e não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo.