Mostrando postagens com marcador Pitagorismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Pitagorismo. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A Folha de Cisco: o encontro entre Tolkien e Hegel

 

O conto A Folha de Cisco, de Tolkien (publicado mais recentemente pela Harper Collins Brasil em 2020), é uma obra com profundo caráter autobiográfico. O protagonista, Cisco, personifica as inclinações do autor, e a lição moral da obra como um todo é de algum modo uma defesa de sua própria visão-de-mundo. Mas estes elementos não estão presentes apenas como uma expressão subjetiva do autor, que visa expor “sua visão” sobre o mundo ao modo romântico; eles estão organicamente construídos como obra universal e intemporal, que não simplesmente impõe sua perspectiva sobre o leitor, mas o convida a uma reflexão impessoal sobre o mundo e os acontecimentos, uma viagem ao interior do mistério da vida.

 A narrativa conta a história de Cisco, um pintor desajeitado que constantemente adia a preparação para sua viagem. Às vezes ele empacota alguma coisa aqui e ali, mas logo abandona e se volta para sua pintura. No esforço de pintar uma árvore, com todos os detalhes possíveis em sua imensa complexidade, ele gasta todo seu tempo disponível. Então surgem os problemas: o vizinho, Pároco, constantemente bate a sua porta para interromper seu trabalho, requisitando ajuda para questões cotidianas, desprezando a obra em desenvolvimento; com isso concorre ainda o tempo, cada vez menor, para a viagem, e a dificuldade cada vez mais consciente de conseguir pintar a árvore em todos os seus detalhes conforme imaginada pelo pintor. Por fim, todos os males surgem quase que instantaneamente juntos: Cisco, ao tentar ajudar Pároco com o telhado de sua casa destruído, pega um resfriado e cai doente; assim que sua febre melhora surge o Inspetor para exigir o uso da tela, da madeira e da tinta usada na pintura para o conserto da casa de Pároco, e ao lado dele aparece o Carregador para levar Cisco à estação de trem para sua viagem, para a qual ele não havia se preparado. Chegando no destino ele passa por um período de trabalho manual que serve como uma purgação de sua obsessão artística, e depois é tratado em um hospital; neste hospital ele ouve duas vozes discutindo o julgamento a se fazer a respeito de Cisco, até que a Segunda Voz, que detém da autoridade, o envia para um jardim. Neste jardim o protagonista encontra sua árvore, mas desta com todos os detalhes prontos, tanto aqueles que Cisco poderia ter pintado quanto aqueles que ele jamais conseguiria pintar, afinal esta árvore tem algo que a outra não tinha: vida, era uma árvore e não apenas uma pintura. Cisco, sentindo-se satisfeito, pede então à Segunda Voz que traga Pároco para este jardim, com quem ele poderia compartilhar desta experiência. Chegado no jardim, Pároco diz a Cisco que ele também havia sido julgado e que só por causa do pedido de Cisco que a Segunda Voz concedeu este destino. Cisco descobre que todo o lugar onde ele caminha faria parte de sua pintura, quando ela estivesse pronta, e aos poucos descobre um lugar mais ao longe, para o qual a pintura ainda deveria ser descoberta: a montanha; e para lá ele se dirige. Pároco, porém, decide retornar ao jardim e pedir a concessão de sua esposa, para que ela também possa desfrutar dessa vida. Enquanto isso, Cisco se dirige à montanha, orientado por um Guia.

 Toda esta narrativa, independentemente da interpretação que possamos fazer, apresenta claramente um movimento circular que começa na idealização subjetiva da pintura, “desce” para a realidade cotidiana e contingente, e por fim, depois de um processo de ruptura, retorna para o objeto dessa idealização, mas agora como realidade. Esse movimento imita todo o sistema da obra hegeliana, que começa na Ideia abstrata, “desce” para a natureza e para a contingência, e por fim sobe retornando para esta mesma ideia, agora não mais como abstração, mas como Espírito, como realidade concreta. Em Hegel também é com a arte, a religião, a alta política, a filosofia especulativa (cujo método ele identifica à tradição neoplatônica) que o homem percorre o caminho de retorno ao Uno, ao mesmo tempo origem e destino da Ideia.

 A tônica do conto de Tolkien, contudo, está neste trecho de “ascensão”. Não apenas Cisco passa por este processo, mas toda a realidade, exemplificada pelo Pároco e por sua esposa, o acompanham na jornada. Fica demonstrada a inferioridade da realidade cotidiana, da qual Pároco compartilha muito mais que Cisco, e a superioridade (inclusive ontológica!) da realidade ideal expressa pela pintura. Embora o pintor seja um tanto desconhecido no mundo cotidiano (ele é apenas um sujeitinho desprezado e até pouco conhecido por seus conterrâneos), o que se descobre é que todo mundo, em dado momento, acaba tendo que fazer a desdita viagem, e a culminância do destino, a “terra primeira” (o paradigma) em vista da qual todos os destinos são julgados pelas duas vozes, é aquela que subjazia na mente idealista do pintorzinho e que ele, com muita dificuldade e imperfeição, tentava expressar, com tinta sobre tela. A viagem pode ser tomada como o momento de dissolução, na linguagem alquímica, quando o neófito é iniciado nos altos mistérios e “morre” para um mundo ao mesmo tempo em que “renasce” para outro, este sim, o “verdadeiro mundo” a ser alcançado ao longo de um processo de coagulação.

 Na medida em que Cisco percorre seu caminho, sempre iluminado por seu ideal, ele traz consigo, atrás de si, todo o resto da realidade, arrastando o mundo de volta para o princípio. É por causa de Cisco que Pároco pôde ascender ao jardim, e por causa de Pároco, depois de ter finalmente sido iluminado pela vida da árvore, que a mulher do Pároco, ainda mais maculada pela vida “profana”, também pôde receber uma passagem para o jardim – todos formando uma “corrente de ouro” que se dirige para um destino único.

 Da parte de Tolkien, está clara, como parte da “lição” que o conto transmite, uma crítica ao desprezo que de modo geral a sociedade costuma ter pelos seus artistas, quando são estes que fornecem a “substância” da vida, a razão da realidade e, por conseguinte, o motivo pelo qual viver. O que Hegel diria é que a imagem pensada pelo artista é a própria estrutura do real ainda não efetivada. O artista (compreendido aqui em sentido amplo, incluindo o filósofo especulativo e o político conforme idealizado por Hegel, concretizado na figura de Napoleão), na medida em que ele, como um profeta, se define como aquele que profere a Ideia, é, tanto em Tolkien quanto em Hegel, o guia de um povo. E o destino é a divindade; para Hegel, o Espírito Absoluto que transcende as formas contingentes, e, para Tolkien em seu conto, a montanha, capaz de transcender até mesmo a árvore com sua multiplicidade de folhas e detalhes.

 É claro que devemos levar em consideração também as diferenças. Tolkien era um católico, Hegel era luterano. Mas, embora os símbolos usados no conto de Tolkien tenham de fato alguma proximidade maior com o catolicismo (a árvore, o “guia”, a “redenção”, o “purgatório”), eles estão muito longe de representar uma analogia com os dogmas do catolicismo. Estes símbolos falam por si, e deles se pode encontrar talvez uma proximidade ainda maior com o que Hegel chamou de “filosofia especulativa”: embora não possamos de modo algum definir, por exemplo, o jardim do conto como a “substância primeira” da realidade (afinal isso seria cair também em discurso alegórico), a estrutura com que os elementos ontológicos do conto estão organizados mostra claramente uma hierarquia entre “níveis de realidade”, as quais não se diferenciam meramente por um ser superior ao outro, mas pelo fato de os superiores “conterem” os níveis inferiores em si. É a árvore e seu jardim, seu entorno, que detém a vida da qual as plantas no mundo contingente são feitas. E essa árvore é superada por um manancial que, brotando no seio da floresta, alimenta todo o jardim – inclusive é desta fonte que Cisco bebe no final dos longos dias de trabalho para se manter vigoroso, possuindo esta fonte então um caráter curativo e rejuvenescedor que na alquimia o ouro e a pedra filosofal representam.

 A estrutura de A Folha de Cisco é, assim, mística. Ela não apenas exprime uma obediência, um respeito, uma veneração, ou um culto a uma certa divindade, mas introduz a busca pela fusão espiritual com a “substância divina” que a tudo dá vida. Este talvez seja o elemento culminante ou nevrálgico do parentesco com a filosofia hegeliana: para o filósofo, não basta a veneração do divino de modo distanciado e alienado, é preciso, em um movimento duplo, “internalizar” a Ideia (a estrutura da realidade), e efetivá-la no mundo através das estruturas históricas, de modo que as instituições, como as artes, a família, a sociedade, a religião, o Estado, tomados em conjunto, em um sistema orgânico, se tornem uma gigantesca escada para o alcance final do divino por parte dos espíritos singulares, em um êxtase universal, da substância universal. Por ser luterano, e não católico, Hegel concebia um valor especial para a subjetividade nesse trabalho (também duro e por vezes doloroso, como o foi para Cisco no conto diversas vezes), e neste ponto de novo ele se aproxima de Tolkien, que, embora católico, também defendia a literatura individual, o isolamento e o trabalho intelectual (subjetivo) como partes fundamentais do processo espiritual do homem. Afinal, é o “sujeito” que conhece, e a realidade deve ser conhecida. A Fantasia, para Tolkien, não é um escape para o irracionalismo, mas uma forma superior de racionalidade, tal como para Hegel a filosofia especulativa (atacada como “devaneio” por seus opositores) é o modo par excellence de se alcançar o Espírito Absoluto – por trás da Fantasia e da filosofia especulativa está uma “outra razão”, intemporal, organizada em princípios objetivos, que dá sentido à vida e também à própria razão instrumental (as duas razões não estão em desacordo). Essa “outra razão” é aquela capaz de “ver” a realidade invisível, os princípios transcendentes, que a razão instrumental é por definição incapaz de explicar e compreender.

 A ampla gama de correspondências que se pode encontrar entre Hegel e Tolkien (não só no conto em questão) talvez seja fruto de uma grande erudição de ambos, de onde certamente vão acabar bebendo de fontes próximas e similares na história do pensamento e sendo influenciadas por elas, portanto não exatamente de uma influência direta. Mas são muitas essas correspondências, e a mais interessante de todas, aquela que destaca ambos os autores de seus próprios contextos e os coloca em sintonia, é a tonalidade mística de busca e de união intelectual e substancial com o divino, por sua vez a própria fonte da vida – e, para ambos os autores, tudo o que existe é, no fundo, Vida.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Lustre, Platão e Pitágoras

Rob Gonsalves

Em República 530c-d, Platão se apoia em Pitágoras e sustenta que há duas formas de movimento cósmico e que há, portanto, duas ciências diferentes para compreendê-lo: a astronomia, ciência que adquirimos através dos olhos, e a harmônica (ou seja, a música no contexto moderno), adquirida através dos ouvidos. Ambas estas ciências partem de um mesmo propósito, que é o estudo do movimento, e assim são ciências irmãs.

Esta doutrina que une Platão e Pitágoras e sistematiza a ciência dentro de um amplo conceito de ordem (harmonia) se tornou fundamental para os sistemas filosóficos da antiguidade tardia e particularmente para os neoplatônicos. Plotino, por exemplo, no tratado 2.9 das Enéadas, defende os astros como as únicas entidades intermediárias entre o mundo corpóreo e o mundo inteligível; os astros são nossa porta para o mundo superior, é através deles que podemos compreender a lógica dos ciclos cósmicos. Mas Plotino não defende especificamente a matematização do mundo astronômico; neste tratado, que se intitula “Contra os Gnósticos”, ele visa apontar para a contemplação estética da ordem astronômica, a possibilidade de se enxergar a beleza do mundo superior através da simples observação do céu. Nós não podemos, através da matemática moderna, compreender a lógica desse mundo inteligível; é através da intuição intelectual durante a longa observação, que se “conhece” a natureza divina.

Jâmblico, que foi discípulo de Porfírio, que foi discípulo de Plotino, nos legou quatro livros pitagóricos onde ele constroi um amplo plano pedagógico capaz de fazer elevar as almas presas na matéria até o mundo inteligível; a astronomia e a teologia compõem os níveis mais altos do conhecimento humano; antes delas existem a aritmética e a harmônica, que funcionam como a base teórica para o conhecimento mais alto. Todos os níveis partem de um princípio de harmonia universal que rege o todo, desde a lógica mais básica dos objetos do cotidiano até os grandes ciclos dos astros fixos. Ao longo do trajeto científico, então, o homem ascende de sua condição material até a condição do mundo da eternidade. E por trás das fórmulas matemáticas que certamente se estuda existe o objetivo principal que é o da simples contemplação do universo, a descoberta do divino.

Em torno de 1700 anos depois de Jâmblico, em um momento não menos conturbado da história humana, surge um movimento também não menos preocupado com as sutilezas cósmicas e não menos “ocultista” do que o platonismo era na antiguidade tardia: o Black Metal, que gira em torno da música, mas que se expande também nas artes plásticas e começa a influenciar a filosofia e a política contemporâneas (os tradicionalismos do século XXI). Mas precisamente agora vale a pena citar Lustre, um projeto sueco, como talvez o maior exemplo dessa contemplação dos astros através da música.

Com rara maestria, Nachtzeit (o compositor) consegue aliar o som dos instrumentos com o típico silêncio da contemplação neoplatônica. Usando de sons cristalinos e lentas e repetitivas melodias de base ele transforma em som a imagem celeste dos lentos ciclos dos astros pintalgados de estrelas e planetas compondo massas luminosas e percorrendo órbitas precisas. Um som fresco e noturno que se tornaria inimaginável em um contexto muito social e conturbado pelas disputas políticas, onde a vida se encontra abafada e disforme, desgovernada; pelo contrário, o som de Lustre é para o alto de uma montanha solitária durante à noite sob um céu limpo, gélido e ampla e profundamente estrelado. O nome do projeto, “Lustre”, exprime com genialidade estética o sabor de sua sonoridade, um sabor leitoso, cheiroso, macio, sutil, contínuo, mas luminoso e pintalgado de cristais, exatamente como o céu se apresenta durante a noite limpa. Os elementos se apresentam todos em harmonia, em ordem, como expressão viva e saborosa de natureza inteligível. Poderíamos tentar compreender sua lógica através de cálculos matemáticos, mas jamais alcançaríamos o esboço primordial; por isso nos resta contemplar.

Nachtzeit certamente usou de conhecimentos em teoria musical para construir suas melodias (sem isso nada seria possível), mas o que ele fez foi, através deste conhecimento, buscar exprimir os inexprimível, trazer em matemática musical uma lógica que a ultrapassa e que só pode ser apreendida através da percepção de sua beleza, do êxtase. O conhecimento teórico levou o compositor mais próximo do divino, mas jamais o permitiu alcança-lo por si mesmo; foi com um salto de coragem, uma intuição e a simples contemplação, em sentido neoplatônico, que permitiu-o apreendê-lo e transmiti-lo com sua obra. Neste sentido, Lustre é uma revelação divina, ou então uma salvaguarda ou um receptáculo do divino, similar às Silmarils, feitas por Fëanor ao buscar preservar a essência das Duas Árvores de Valinor antes que elas fossem destruídas por Melkor.

Abaixo, Lustre -- Echoes of Transcendence

sexta-feira, 3 de maio de 2019

A Felicidade no Pensamento

Carl Spitzweg

Não sou um estudioso de Aristóteles, mas não é preciso ser especialista para saber que é a ele que devemos o conceito ocidental de contemplação. Para Aristóteles, a grande questão que move o homem é a felicidade; ela é o objetivo, a causa final do ato de viver. Nós nascemos em busca da felicidade, nós vivemos para sermos felizes.

Mas então a grande questão que surge é: “o que é, então, a felicidade?”, o que constitui, concretamente, a felicidade. Estaria ela na posse de bens? No poder político? Na fama, no sucesso ou na glória? Para Aristóteles, em nenhum destes lugares a felicidade está. Mais do que isso, ela não está em lugar algum, não está reduzida a uma quantidade de coisas, mas é, pelo contrário, um modo de ser, de viver. A felicidade não é um fim concreto que se possui em um dado momento ou se circunscreve sobre nossos braços; pelo contrário, ela é o próprio ato contínuo e ininterrupto de busca pela felicidade. A felicidade está no busca-la, não no alcança-la. Essa busca se traduz como conhecimento, pois é no conhecer as coisas que o homem se coloca no interior dessa busca e o permite vislumbrar a natureza das coisas. Contemplação em grego é theôria, de onde surge o conceito moderno de ciência, mas também de contemplação religiosa. Para Aristóteles e os antigos em geral, ciência e religião não eram coisas distintas, mas aspectos de um mesmo fenômeno, ou antes disso: um modo de ser, de viver – diria ainda Heidegger, um modo de existir autenticamente, na visada dos deuses.

Assim, para Aristóteles a felicidade é o conhecer, ou o contemplar. A vida teorética está no nível mais alto da hierarquia humana, sendo também o modo de ser mais feliz, ou, para usar o termo grego eudaimônico, o modo de ser “de [mais] bom espírito”. Foi daí que derivou o misticismo e a vida religiosa tanto no cristianismo quanto no islamismo, mas também foi daí que surgiu a noção científica do mundo ocidental. O cientista é aquele que contempla a realidade e a admira, e existe exclusivamente para essa contemplação. É um sacrifício para a beleza celeste e terrena. A ciência nasceu desse espírito religioso e só mais tarde, muito mais tarde, ela passou a ser utilizada para outros fins, seja para a tecnologia ou até mesmo para o enriquecimento. E mesmo assim, ainda nos nossos tempos de profundo distanciamento desse ideal antigo e sacro, a ciência reserva (e sempre reservará) lugar para o sacrifício teorético. Não poucos são os cientistas, enclausurados nas universidades, que mergulham apaixonadamente nas grandes questões da humanidade, seja na história, na biologia, nas letras, ou ainda e acima de tudo: na própria filosofia. E estes homens, no geral, costumam brindar a todos nós obras impecáveis, magníficas, de uma beleza que jamais deixaria de assombrar as almas delicadas e purificadas, afeitas também à vida teorética.

Para Platão, os cumes da existência humana não estavam reservados exatamente aos homens enclausurados e entregues à vida teorética. Para ele, a política era fundamental, e a noção de uma vida feliz (se é que ela existia para Platão) estava certamente mais ligada à noção de justiça política. O objetivo não era tanto a felicidade individual, mas o serviço feito aos deuses, de acordo com sua vontade; e a justiça representava esse fim na terra, ou melhor: na pólis, a cidade-Estado. Mas, embora ele não tenha enfatizado a vida contemplativa, também é na República que o nível mais alto da hierarquia é aberto aos filósofos, que na sua época não significava – obviamente – pessoas com “diploma”, mas pessoas sábias. Pessoas sábias, porém, como nos mostrava Sócrates nos diálogos de Platão, eram pessoas que, em não sabendo, buscavam saber. E o motivo que tornou Platão a verdadeira inspiração para as especulações da astronomia e das ciências em geral talvez seja ainda o fato de que é “no além”, e não na terra, que segundo ele se alcança o que podemos compreender por felicidade. É no mundo das Formas que encontramos o Bem e o Belo, os paradigmas ontológicos de todas as coisas que são aqui na terra, e que são de modo inferior, nem tão boas nem tão belas quanto “lá em cima”. De modo que também Platão tenha estabelecido como prioridade uma vida contemplativa.

Não por acaso, foram os neoplatônicos, como Plotino e Porfírio, que, utilizando-se também muito das teses aristotélicas, organizaram-nas em um modelo platônico regido pela noção de justiça e pela metafísica das Formas no “outro mundo”. A vida contemplativa se tornou prioridade, e por vezes até hostilizava os horrores da política. Mas a contemplação se inseria em um sistema paidêutico abrangente, que reunia todas as esferas da vida e toda a hierarquia política em um conceito cosmológico de justiça, que os homens – os filósofos – passaram a aprender dos deuses. E aprendiam através da oração, da piedade e da fé em relação aos deuses, de uma vida estritamente religiosa. Mas assim como aprendiam dos deuses a justiça, também aprendiam as leis da aritmética, da gramática, da lógica – que derivaram áreas da ciência como a geometria, a música, a astrologia. E assim a ciência, inspirada sempre por uma relação religiosa com o kósmos, foi se desenvolvendo através da Idade Média, de onde surgiram as noções de “artes liberais”, “artes régias” ou “artes sacras”.

A ciência sempre foi algo que deveria existir por si mesma. De novo segundo Aristóteles, uma coisa tem um valor máximo e pode servir de objetivo apenas se ela tem um valor intrínseco, i.e., se ela não está sujeita a outro fim que não ela mesma. A vida teorética não está sujeita a nada, ela é pura contemplação, ao contemplar o contemplador não visa preencher ou realizar outro fim que não a própria contemplação. Então, se a contemplação estivesse sujeita a outra coisa, ela perderia seu valor. Por isso que a contemplação e a ciência, para Aristóteles, Platão e os medievais, jamais deveriam estar sujeitas a outro objetivo que não a própria contemplação ela mesma. Portanto, a noção de que alguma coisa só tem valor quando ela serve, por exemplo, ao mercado, ou às “riquezas”, para um grego, um homem antigo em qualquer lugar do mundo, ou mesmo um homem medieval, soaria no mínimo cômico, senão irônico. De um modo ou de outro, soaria assim: satânico. Pois é através da contemplação que contatamos os deuses e recebemos sabedoria, o bom e o belo, a justiça etc.; se a contemplação for sujeitada a um fim exclusivamente terreno, titânico ou material, ela estará servindo não aos deuses, mas a outro tipo de “coisa”, a saber entidades “subterrâneas”, obscuras, de algum modo inimigas, que têm o caráter de desviar a mente humana, distraí-la para fins estranhos e perigosos.

Para Jâmblico, por exemplo, um neoplatônico importante, que influenciou largamente o desenvolvimento científico e religioso no Ocidente e no Oriente Próximo, a matemática pitagórica, que compreendia o núcleo duro de toda atividade científica, servia para purificar a alma dos elementos obscuros, “terrenos”, a fim de torna-la leve, límpida, e fazê-la ascender aos deuses. As ciências tinham em geral um aspecto ao mesmo tempo religioso, pois os princípios científicos ensinavam também a teologia e inspiravam ao bom e belo transcendente, e tinha também um aspecto ético/político, pois o aprendizado funcionava como uma paideia capaz de tornar mais sutil os hábitos e os pensamentos do aluno, que, na medida em que ascendia espiritualmente, também ascendia politicamente rumo a níveis superiores na hierarquia humana.

Aqui, de novo, e assim sempre, o objetivo da ciência está voltado à contemplação pura, à teoria, à especulação, à kalokagatia ou o bom e belo como ideal e modo de vida, como felicidade. Nada de “aplicação” e muito menos de “gerar riqueza” para um tal de “mercado”. O mercado é o reino de Mammon, e não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo.