O conto A Folha de Cisco, de Tolkien (publicado mais recentemente pela Harper Collins Brasil em 2020), é uma obra com profundo caráter autobiográfico. O protagonista, Cisco, personifica as inclinações do autor, e a lição moral da obra como um todo é de algum modo uma defesa de sua própria visão-de-mundo. Mas estes elementos não estão presentes apenas como uma expressão subjetiva do autor, que visa expor “sua visão” sobre o mundo ao modo romântico; eles estão organicamente construídos como obra universal e intemporal, que não simplesmente impõe sua perspectiva sobre o leitor, mas o convida a uma reflexão impessoal sobre o mundo e os acontecimentos, uma viagem ao interior do mistério da vida.
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segunda-feira, 17 de agosto de 2020
A Folha de Cisco: o encontro entre Tolkien e Hegel
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segunda-feira, 18 de maio de 2020
Lustre, Platão e Pitágoras
![]() |
Rob Gonsalves |
Em República 530c-d, Platão se apoia em Pitágoras
e sustenta que há duas formas de movimento cósmico e que há, portanto, duas
ciências diferentes para compreendê-lo: a astronomia, ciência que adquirimos
através dos olhos, e a harmônica (ou seja, a música no contexto moderno), adquirida
através dos ouvidos. Ambas estas ciências partem de um mesmo propósito, que é o
estudo do movimento, e assim são ciências irmãs.
Esta doutrina que une Platão e Pitágoras e sistematiza a
ciência dentro de um amplo conceito de ordem (harmonia) se tornou fundamental
para os sistemas filosóficos da antiguidade tardia e particularmente para os
neoplatônicos. Plotino, por exemplo, no tratado 2.9 das Enéadas, defende
os astros como as únicas entidades intermediárias entre o mundo corpóreo e o
mundo inteligível; os astros são nossa porta para o mundo superior, é através
deles que podemos compreender a lógica dos ciclos cósmicos. Mas Plotino não defende
especificamente a matematização do mundo astronômico; neste tratado, que se intitula
“Contra os Gnósticos”, ele visa apontar para a contemplação estética da ordem
astronômica, a possibilidade de se enxergar a beleza do mundo superior através
da simples observação do céu. Nós não podemos, através da matemática moderna,
compreender a lógica desse mundo inteligível; é através da intuição intelectual
durante a longa observação, que se “conhece” a natureza divina.
Jâmblico, que foi discípulo de Porfírio, que foi
discípulo de Plotino, nos legou quatro livros pitagóricos onde ele constroi um
amplo plano pedagógico capaz de fazer elevar as almas presas na matéria até o
mundo inteligível; a astronomia e a teologia compõem os níveis mais altos do
conhecimento humano; antes delas existem a aritmética e a harmônica, que
funcionam como a base teórica para o conhecimento mais alto. Todos os níveis partem
de um princípio de harmonia universal que rege o todo, desde a lógica mais
básica dos objetos do cotidiano até os grandes ciclos dos astros fixos. Ao
longo do trajeto científico, então, o homem ascende de sua condição material
até a condição do mundo da eternidade. E por trás das fórmulas matemáticas que
certamente se estuda existe o objetivo principal que é o da simples
contemplação do universo, a descoberta do divino.
Em torno de 1700 anos depois de Jâmblico, em um momento
não menos conturbado da história humana, surge um movimento também não menos preocupado
com as sutilezas cósmicas e não menos “ocultista” do que o platonismo era na
antiguidade tardia: o Black Metal, que gira em torno da música, mas que se expande
também nas artes plásticas e começa a influenciar a filosofia e a política
contemporâneas (os tradicionalismos do século XXI). Mas precisamente agora vale
a pena citar Lustre, um projeto sueco, como talvez o maior exemplo dessa
contemplação dos astros através da música.
Com rara maestria, Nachtzeit (o compositor) consegue
aliar o som dos instrumentos com o típico silêncio da contemplação neoplatônica.
Usando de sons cristalinos e lentas e repetitivas melodias de base ele transforma
em som a imagem celeste dos lentos ciclos dos astros pintalgados de estrelas e
planetas compondo massas luminosas e percorrendo órbitas precisas. Um som
fresco e noturno que se tornaria inimaginável em um contexto muito social e
conturbado pelas disputas políticas, onde a vida se encontra abafada e
disforme, desgovernada; pelo contrário, o som de Lustre é para o alto de uma
montanha solitária durante à noite sob um céu limpo, gélido e ampla e
profundamente estrelado. O nome do projeto, “Lustre”, exprime com genialidade
estética o sabor de sua sonoridade, um sabor leitoso, cheiroso, macio, sutil,
contínuo, mas luminoso e pintalgado de cristais, exatamente como o céu se
apresenta durante a noite limpa. Os elementos se apresentam todos em harmonia, em
ordem, como expressão viva e saborosa de natureza inteligível. Poderíamos
tentar compreender sua lógica através de cálculos matemáticos, mas jamais
alcançaríamos o esboço primordial; por isso nos resta contemplar.
Nachtzeit certamente usou de conhecimentos em teoria
musical para construir suas melodias (sem isso nada seria possível), mas o que
ele fez foi, através deste conhecimento, buscar exprimir os inexprimível,
trazer em matemática musical uma lógica que a ultrapassa e que só pode ser
apreendida através da percepção de sua beleza, do êxtase. O conhecimento
teórico levou o compositor mais próximo do divino, mas jamais o permitiu alcança-lo
por si mesmo; foi com um salto de coragem, uma intuição e a simples contemplação,
em sentido neoplatônico, que permitiu-o apreendê-lo e transmiti-lo com sua
obra. Neste sentido, Lustre é uma revelação divina, ou então uma salvaguarda ou
um receptáculo do divino, similar às Silmarils, feitas por Fëanor ao buscar
preservar a essência das Duas Árvores de Valinor antes que elas fossem
destruídas por Melkor.
Abaixo, Lustre -- Echoes of Transcendence
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sexta-feira, 3 de maio de 2019
A Felicidade no Pensamento
![]() |
Carl Spitzweg |
Não sou um estudioso de Aristóteles, mas não é preciso
ser especialista para saber que é a ele que devemos o conceito ocidental de
contemplação. Para Aristóteles, a grande questão que move o homem é a
felicidade; ela é o objetivo, a causa final do ato de viver. Nós nascemos em
busca da felicidade, nós vivemos para sermos felizes.
Mas então a grande questão que surge é: “o que é, então, a
felicidade?”, o que constitui, concretamente, a felicidade. Estaria ela na
posse de bens? No poder político? Na fama, no sucesso ou na glória? Para
Aristóteles, em nenhum destes lugares a felicidade está. Mais do que isso, ela
não está em lugar algum, não está reduzida a uma quantidade de coisas, mas é,
pelo contrário, um modo de ser, de viver. A felicidade não é um fim concreto
que se possui em um dado momento ou se circunscreve sobre nossos braços; pelo
contrário, ela é o próprio ato contínuo e ininterrupto de busca pela felicidade.
A felicidade está no busca-la, não no alcança-la. Essa busca se traduz como
conhecimento, pois é no conhecer as coisas que o homem se coloca no interior
dessa busca e o permite vislumbrar a natureza das coisas. Contemplação em grego
é theôria, de onde surge o conceito
moderno de ciência, mas também de contemplação religiosa. Para Aristóteles e os
antigos em geral, ciência e religião não eram coisas distintas, mas aspectos de
um mesmo fenômeno, ou antes disso: um modo de ser, de viver – diria ainda
Heidegger, um modo de existir autenticamente, na visada dos deuses.
Assim, para Aristóteles a felicidade é o conhecer, ou o
contemplar. A vida teorética está no nível mais alto da hierarquia humana, sendo
também o modo de ser mais feliz, ou, para usar o termo grego eudaimônico, o modo de ser “de [mais]
bom espírito”. Foi daí que derivou o misticismo e a vida religiosa tanto no
cristianismo quanto no islamismo, mas também foi daí que surgiu a noção
científica do mundo ocidental. O cientista é aquele que contempla a realidade e
a admira, e existe exclusivamente para essa contemplação. É um sacrifício para
a beleza celeste e terrena. A ciência nasceu desse espírito religioso e só mais
tarde, muito mais tarde, ela passou a ser utilizada para outros fins, seja para
a tecnologia ou até mesmo para o enriquecimento. E mesmo assim, ainda nos
nossos tempos de profundo distanciamento desse ideal antigo e sacro, a ciência reserva
(e sempre reservará) lugar para o sacrifício teorético. Não poucos são os
cientistas, enclausurados nas universidades, que mergulham apaixonadamente nas
grandes questões da humanidade, seja na história, na biologia, nas letras, ou
ainda e acima de tudo: na própria filosofia. E estes homens, no geral, costumam
brindar a todos nós obras impecáveis, magníficas, de uma beleza que jamais
deixaria de assombrar as almas delicadas e purificadas, afeitas também à vida
teorética.
Para Platão, os cumes da existência humana não estavam
reservados exatamente aos homens enclausurados e entregues à vida teorética.
Para ele, a política era fundamental, e a noção de uma vida feliz (se é que ela
existia para Platão) estava certamente mais ligada à noção de justiça política.
O objetivo não era tanto a felicidade individual, mas o serviço feito aos
deuses, de acordo com sua vontade; e a justiça representava esse fim na terra,
ou melhor: na pólis, a cidade-Estado.
Mas, embora ele não tenha enfatizado a vida contemplativa, também é na República que o nível mais alto da
hierarquia é aberto aos filósofos, que na sua época não significava –
obviamente – pessoas com “diploma”, mas pessoas sábias. Pessoas sábias, porém,
como nos mostrava Sócrates nos diálogos de Platão, eram pessoas que, em não
sabendo, buscavam saber. E o motivo que tornou Platão a verdadeira inspiração
para as especulações da astronomia e das ciências em geral talvez seja ainda o
fato de que é “no além”, e não na terra, que segundo ele se alcança o que
podemos compreender por felicidade. É no mundo das Formas que encontramos o Bem
e o Belo, os paradigmas ontológicos de todas as coisas que são aqui na terra, e
que são de modo inferior, nem tão boas nem tão belas quanto “lá em cima”. De
modo que também Platão tenha estabelecido como prioridade uma vida contemplativa.
Não por acaso, foram os neoplatônicos, como Plotino e
Porfírio, que, utilizando-se também muito das teses aristotélicas, organizaram-nas
em um modelo platônico regido pela noção de justiça e pela metafísica das
Formas no “outro mundo”. A vida contemplativa se tornou prioridade, e por vezes
até hostilizava os horrores da política. Mas a contemplação se inseria em um
sistema paidêutico abrangente, que reunia todas as esferas da vida e toda a
hierarquia política em um conceito cosmológico de justiça, que os homens – os filósofos
– passaram a aprender dos deuses. E aprendiam através da oração, da piedade e
da fé em relação aos deuses, de uma vida estritamente religiosa. Mas assim como
aprendiam dos deuses a justiça, também aprendiam as leis da aritmética, da
gramática, da lógica – que derivaram áreas da ciência como a geometria, a
música, a astrologia. E assim a ciência, inspirada sempre por uma relação
religiosa com o kósmos, foi se
desenvolvendo através da Idade Média, de onde surgiram as noções de “artes liberais”,
“artes régias” ou “artes sacras”.
A ciência sempre foi algo que deveria existir por si mesma.
De novo segundo Aristóteles, uma coisa tem um valor máximo e pode servir de
objetivo apenas se ela tem um valor intrínseco, i.e., se ela não está sujeita a
outro fim que não ela mesma. A vida teorética não está sujeita a nada, ela é
pura contemplação, ao contemplar o contemplador não visa preencher ou realizar
outro fim que não a própria contemplação. Então, se a contemplação estivesse
sujeita a outra coisa, ela perderia seu valor. Por isso que a contemplação e a
ciência, para Aristóteles, Platão e os medievais, jamais deveriam estar
sujeitas a outro objetivo que não a própria contemplação ela mesma. Portanto, a
noção de que alguma coisa só tem valor quando ela serve, por exemplo, ao
mercado, ou às “riquezas”, para um grego, um homem antigo em qualquer lugar do
mundo, ou mesmo um homem medieval, soaria no mínimo cômico, senão irônico. De
um modo ou de outro, soaria assim: satânico. Pois é através da contemplação que
contatamos os deuses e recebemos sabedoria, o bom e o belo, a justiça etc.; se
a contemplação for sujeitada a um fim exclusivamente terreno, titânico ou
material, ela estará servindo não aos deuses, mas a outro tipo de “coisa”, a
saber entidades “subterrâneas”, obscuras, de algum modo inimigas, que têm o
caráter de desviar a mente humana, distraí-la para fins estranhos e perigosos.
Para Jâmblico, por exemplo, um neoplatônico importante,
que influenciou largamente o desenvolvimento científico e religioso no Ocidente
e no Oriente Próximo, a matemática pitagórica, que compreendia o núcleo duro de
toda atividade científica, servia para purificar a alma dos elementos obscuros,
“terrenos”, a fim de torna-la leve, límpida, e fazê-la ascender aos deuses. As
ciências tinham em geral um aspecto ao mesmo tempo religioso, pois os
princípios científicos ensinavam também a teologia e inspiravam ao bom e belo
transcendente, e tinha também um aspecto ético/político, pois o aprendizado
funcionava como uma paideia capaz de
tornar mais sutil os hábitos e os pensamentos do aluno, que, na medida em que
ascendia espiritualmente, também ascendia politicamente rumo a níveis
superiores na hierarquia humana.
Aqui, de novo, e assim sempre, o objetivo da ciência está
voltado à contemplação pura, à teoria, à especulação, à kalokagatia ou o bom e belo como ideal e modo de vida, como
felicidade. Nada de “aplicação” e muito menos de “gerar riqueza” para um tal de
“mercado”. O mercado é o reino de Mammon, e não se pode servir a dois senhores
ao mesmo tempo.
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