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sábado, 4 de setembro de 2021

As Duas Loucuras na Arte

John Bauer, um exemplo de arte curativa

A loucura é um assunto clássico do pensamento ocidental. Platão, no Fedro, distingue dois tipos de loucura (mania): uma má, contrária à razão, que levaria aos excessos dos prazeres, por exemplo na atração homossexual (a atração erótica pelo mesmo sexo é contrária à sua função natural, que é procriar); e outra boa, “divina”, que se divide em quatro subtipos: a profética (apolínea), a iniciática (dionisíaca), a poética (inspirada pelas musas) e a erótica (inspirada por Eros). Mais recentemente Michel Foucault, em Folie et Déraison (1961), analisa o conceito de loucura tomando por base o método fenomenológico de “alteridade”; o que seria um trabalho psicológico se torna mais um trabalho sociológico que visa captar a linguagem pela qual os homens são arbitrariamente excluídos da sociedade.

Podemos, ainda, considerar a arte como uma instância da loucura. Platão já incluíra, de alguma maneira, a arte nessa loucura “boa”. Em sua época, todas as artes tendiam a buscar em algum sentido o bom e o belo e, por isso, o harmônico ou racional, e neste sentido se inserem na loucura boa ou divina, porque elevam, curam, tranquilizam, reordenam a alma humana. Mas hoje não podemos mais ser tão coniventes com a arte; as técnicas tomaram a sociedade moderna, hoje tudo é essencialmente técnico, e sendo técnico tudo está dotado de intencionalidade daquele que produz e daquele que utiliza. Vivemos em uma sociedade em permanente construção, controle, manutenção, a própria ordem já não se assenta apenas na natureza, mas depende de um bom uso da técnica. É por isso que hoje devemos discutir a boa e a má loucura dentro da arte moderna.

Todas as artes lidam com o fantástico e são já, nesse sentido e por definição, uma loucura. Não é possível criar algo que não seja em algum sentido artificial, que não se distinga do puramente natural. Toda arte visa montar sobre o natural, transcendê-lo. Mas então surgem dois comportamentos distintos por parte dos artistas e daqueles que empregam as artes: primeiro há aqueles que usam o fantástico para destacar aspectos do mundo natural ou que criam artes que se utilizam do mundo natural, não visando corromper seus princípios básicos, racionais; em segundo lugar há aqueles que usam da arte para distorcer a realidade propositalmente, criar novos princípios contrários à natureza e reificá-los por meio da expressão estética[1]. Vou chamar o primeiro de arte curativa e o segundo de arte degenerativa.

 Arte Curativa

A arte curativa é aquela que, usando de engenharia estética, visa resolver contradições do mundo humano com o mundo natural. Para dar um caso bem paradigmático, falemos da divisão sexual. Há artes que enaltecem tanto os aspectos masculinos no homem e tanto os aspectos femininos na mulher que, com certeza, podem ser consideradas loucuras pela intensidade exagerada de seus aspectos. Muitas das esculturas gregas e romanas seguem esta lógica; na literatura gótica este motivo também está bastante presente, por exemplo no Drácula de Bram Stoker, que exagera por um lado a imagética do poder, da força, do intransponível, qualidades masculinas da personagem vampiresca, e por outro a sensibilidade e fragilidade femininas em suas vítimas. Na literatura religiosa nós costumamos ter o mesmo motivo quando se analisa a relação que Deus tem com sua Criação, uma relação de interferência, autoridade, muitas vezes de ira, controle e castigo; a Criação mantém com o Criador uma relação que se repete entre mulher e homem. O símbolo, nestes casos, ajuda a elucidar, apontar para algo essencial, concreto, com lastro na realidade imanente, e assim educa o leitor, muitas vezes curando-o de medos, traumas e uma incapacidade de compreender “o outro”.

Sobretudo no mundo contemporâneo, a arte curativa é fundamental, de importância máxima. Uma vez que tudo é técnica (tekhnê em grego serve tanto para a engenharia quanto para a “arte” em sentido moderno), são necessárias obras que o tempo todo lembrem o homem daquilo que ele é essencialmente. A técnica do mundo contemporâneo é uma maré de esquecimento, de apagamento da visão das essências, de esquecimento e distanciamento do próprio real; nada tão necessário como as artes que levem ao homem de volta para aquilo que ele é, que o coloquem no seu lugar, na sua função cósmica. O papel do masculino, ainda que por meio da arte, deve permanecer masculino, e o papel feminino, da mesma maneira, deve permanecer feminino. O grande desafio dos artistas contemporâneos é criar técnicas que não corrompam essa relação, mas a atualizem sob novas formas. Isso vai desde a literatura até a legislação e o urbanismo – todas estas esferas são técnicas.

O filósofo alemão G.W.F. Hegel já havia pensado em tudo isso. Para ele as formas e os momentos mudam, mas a consciência permanece em seu processo dinâmico e contínuo. As formas se reatualizam, mas não corrompem o real, o saber absoluto não é um arbítrio do sujeito, mas um saber que diz respeito ao real concreto. Assim, a complexidade com que, por exemplo, homem e mulher se relacionam no mundo moderno será diferente da complexidade com que a mesma relação acontece no mundo grego e depois no mundo romano. Mas o homem e a mulher, em si, não se transformam, não deixam de ser homem e mulher, e dessa maneira não perdem a relação essencial que há entre eles. Se no mundo antigo a mulher era submetida pela força, no mundo moderno será pela lei e pela cultura, que por sua vez são construídas por homens[2]. E nisso está a liberdade no idealismo hegeliano, o fato de que cada consciência tem seu lugar natural garantido por uma lei universal.

É evidente que uma arte curativa exige esforço, antes de tudo um estudo, uma reflexão sobre a realidade e, no caso em questão, sobre o que é o masculino e o que é o feminino. Deve-se buscar na realidade, na observação empírica e na tradição clássica os elementos simbólicos que podemos extrair e utilizar na expressão destes dois polos do homem[3]. Quando há uma personagem masculina, deve-se saber dotá-la de características masculinas[4], e o mesmo serve para as personagens femininas. O artista que cura é um sábio, um alquimista, um terapeuta[5], e não é possível sê-lo sem primeiro conhecer o real com a profundidade necessária para poder representar os objetos que aparecem na arte. Os bons escultores são também conhecedores do corpo e perscrutam cada músculo, cada osso, cada movimento antes de imprimi-los em suas obras – do contrário, o objeto tende a não ser o que visa representar. Notemos que estamos falando de arte em sentido genérico, misturando o realismo e o fantástico: na verdade estamos borrando a barreira entre os dois, porque o vampiro no Drácula, pelo menos enquanto expressão enaltecida de traços reais do homem masculino, não deixa de ser “realista” quanto a este objeto em particular, por mais que suas qualidades ultrapassem as do homem comum do qual ele é imagem[6].

Em geral, a arte curativa costuma se tornar um clássico. Se olharmos para a história veremos que todas as artes que permaneceram, sejam fantásticas ou realistas, foram em algum sentido um dispositivo de rememoração da realidade: os deuses em Homero amplificam relações hipotéticas entre homem e mulher, entre pai e filho, entre comandante e súditos etc., os templos greco-romanos satisfaziam a intuição que o homem grego tinha do belo e do harmônico, as catedrais góticas, ainda que bastante diferentes dos templos gregos, da mesma maneira se punham como obras harmônicas para o espírito europeu, não irritando-o mas inspirando-o e dando vazão às suas potencialidades psíquicas. E sobretudo na literatura religiosa encontramos os símbolos mais bem condensados, mais bem trabalhados, refletidos, aprofundados, ainda que também sejam mais abstratos e que possuam uma linguagem mais “estranha” ao público vulgar. Deus, Criação, Adão e Eva, o Éden, em algum sentido condensam em si os elementos de toda a literatura mítica e fantástica posterior.

Arte Degenerativa

Com base no que já foi dito fica fácil compreender o que é a arte degenerativa. Ela é em algum sentido o oposto: ao invés de fazer o homem rememorar quem ele é, como ele é, qual seu papel no mundo, ela visa ofuscar, afastar essa lembrança. E para tomarmos exemplos desse tipo de arte basta lançarmos os olhos para a enxurrada de livros e de exposições artísticas que se fazem nos museus e nas praças atualmente, ou então basta observarmos a arquitetura lúgubre, fria, mórbida que se espalha como selva de pedra nas grandes cidades. Por via de regra, tudo o que é feio ou que não possui preocupação com o belo já é em si degenerativo, porque a experiência do belo é em si um processo curativo, harmonizador, que leva em conta o ambiente onde se insere e o sujeito que presencia a obra neste mesmo ambiente. Uma obra de arte pode ser abstrata, “estranha”, e ainda ser curativa; para ser degenerativa não é necessário ser abstrato nem “estranho”, pode também ser bem concreto e realista[7].

Sobretudo hoje, um dos melhores exemplos para demonstrar a arte degenerativa é apontar para a maneira como se representam os sexos nas artes. O mais comum é o apagamento da divisão sexual entre masculino e feminino[8], mas também temos a distorção da natureza dos sexos com a sobreposição de características masculinas e femininas nas mesmas personagens e, o que não é menos grave, temos a distorção das relações entre os sexos[9].

Ao invés de elevar, purificar, transcender, tornar sutil, a arte degenerativa rebaixa, faz apodrecer, torna tudo deveras imanente e concreto, duro, denso, impenetrável e do qual é impossível fugir. E assim ela não traz uma experiência de harmonia, de leveza, mas incute a angústia, a ansiedade, a sensação de se estar perdido, isolado, sozinho, dividido e decomposto; ela cinde a psique ao invés de unificar e recompor. Ela provoca o estranhamento, a náusea do existencialismo sartreano. Sartre talvez seja o maior representante intelectual dessa arte degenerativa; sua filosofia é a degeneração cristalizada, o ódio ao homem, ao mundo, o ressentimento de ser o que ele é diante de um mundo que é melhor do que ele. Sartre quis que todos se sentissem imundos e pútridos como ele se sentia ao se olhar no espelho ou se comparar com outras pessoas com belos rostos, por isso quis que todos experimentasse o absurdo que era ser um Sartre. É precisamente daí que vem toda a parafernália intelectual que deu suporte a uma ostensiva produção de arte degenerativa da segunda metade do século XX para cá. O modelo neoliberal viu em Sartre um poderoso instrumento de dissolução de povos, de psiques, de comunidades, de Estados, e não poupou esforços na promoção de tudo o que degenera, enfraquece, apodrece, dissolve com vistas a dominar e imperar pelo dinheiro e pelo poder policial. O absurdismo, que deu suporte intelectual à arte degenerativa, é a ideologia do esquecimento permanente, a luta pela perdição da alma contra tudo o que eleva e cura. Assim, uma maneira de compreender a arte degenerativa é estudando Sartre e sua fenomenologia do absurdo.

Conclusão

Analisamos dois tipos de loucura, isto é, o fantástico na arte. Um nós definimos como arte curativa e o outro como arte degenerativa. Os dois manipulam a realidade, em algum sentido “distorcem” ela; mas enquanto o primeiro tipo o faz sem corromper a realidade, o segundo o faz corrompendo-a. A experiência que o sujeito tem na primeira arte é positiva, a arte o eleva, o unifica, o harmoniza, enquanto que a experiência que ele tem na segunda arte é negativa, a arte o rebaixa, o decompõe, introduz a desordem em sua psique. Se usarmos um conceito grego para defini-las, diríamos que a primeira é racional e a segunda é irracional.

NOTAS

[1] Karl Marx havia analisado esse fenômeno da reificação no processo capitalista: o produto do capital é artificial, ele se torna uma necessidade fabricada, falsa, ilusória, e seduz a sociedade a consumir. É o fetiche (um impulso patológico) que impulsiona o capital.

[2] Para Hegel, bem como para todos os idealistas e românticos, o masculino estava essencialmente ligado à esfera pública e à lei, enquanto ao feminino se reservava a esfera privada e a religião (os Lares). Isso define a sociedade moderna ideal hegeliana, que não transforma essencialmente o mundo grego, mas o reatualiza, resgata sob novas formas civilizacionais.

[3] Aqui deve-se ler “Homem” em sentido genérico, e utilizo o termo por uma questão de gosto e etimologia. “Ser humano” me parece uma aberração moderna, uma gambiarra linguística, e por isso busco evitar ao máximo, ainda que talvez pareça mais claro ao leitor vulgar.

[4] Infelizmente as autoras raramente conseguem esta proeza. Por exemplo em Frankenstein, de Mary Shelley, Robert Walton, não fosse o nome, poderia ser uma mulher pois tem todos os traços psíquicos de uma mulher: sofre com solidão, paranoia, baixa auto-estima, insegurança, busca o consolo, o conforto, e possui uma compaixão bastante exagerada.

[5] Com um propósito mais claro na terapia podemos citar o romance de formação e, como seu maior exemplar, o Wilhelm Meister de J.W. Goethe.

[6] Também temos que levar em conta que os objetos no Drácula possuem múltiplos significados simultaneamente; o vampiro não é feito para ser a mera representação de um homem; esta personagem induz a muitas interpretações simbólicas, sociais e psicológicas que, contudo, não negam a natureza psíquica de seu fundamento, que é em algum sentido um homem (e na própria história o vampiro foi, uma vez, um homem, sua natureza se deu em cima da matéria masculina, a partir dela).

[7] As obras de Marcel Duchamp são realistas e ainda sim horríveis, desarmônicas, toscas, rasas, degenerativas.

[8] Um exemplo são as pichações de “Os Gêmeos”, que deveriam estar presos por depredarem o patrimônio público pelo mau-gosto que espalham nas grandes cidades mundo afora.

[9] Um caso de se citar aqui talvez seja o assim intitulado Cinquenta Tons de Cinza; ele não distorce a natureza dos sexos em si, mas as relações entre eles: ao invés de termos relações de proteção, unidade, cumplicidade, amor e frutificação, temos relações externas de exploração entre os sexos; esse tipo de literatura se torna ainda mais perigoso porque seu ardil é muito mais sutil e apela mais facilmente aos jovens que vivem a explosão dos hormônios. No mais, podemos citar quase tudo o que se produz hoje nas telenovelas, música pop etc.: é sempre uma mulher que comanda e homens que obedecem e meramente acompanham; a relação hierárquica foi totalmente invertida.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A Folha de Cisco: o encontro entre Tolkien e Hegel

 

O conto A Folha de Cisco, de Tolkien (publicado mais recentemente pela Harper Collins Brasil em 2020), é uma obra com profundo caráter autobiográfico. O protagonista, Cisco, personifica as inclinações do autor, e a lição moral da obra como um todo é de algum modo uma defesa de sua própria visão-de-mundo. Mas estes elementos não estão presentes apenas como uma expressão subjetiva do autor, que visa expor “sua visão” sobre o mundo ao modo romântico; eles estão organicamente construídos como obra universal e intemporal, que não simplesmente impõe sua perspectiva sobre o leitor, mas o convida a uma reflexão impessoal sobre o mundo e os acontecimentos, uma viagem ao interior do mistério da vida.

 A narrativa conta a história de Cisco, um pintor desajeitado que constantemente adia a preparação para sua viagem. Às vezes ele empacota alguma coisa aqui e ali, mas logo abandona e se volta para sua pintura. No esforço de pintar uma árvore, com todos os detalhes possíveis em sua imensa complexidade, ele gasta todo seu tempo disponível. Então surgem os problemas: o vizinho, Pároco, constantemente bate a sua porta para interromper seu trabalho, requisitando ajuda para questões cotidianas, desprezando a obra em desenvolvimento; com isso concorre ainda o tempo, cada vez menor, para a viagem, e a dificuldade cada vez mais consciente de conseguir pintar a árvore em todos os seus detalhes conforme imaginada pelo pintor. Por fim, todos os males surgem quase que instantaneamente juntos: Cisco, ao tentar ajudar Pároco com o telhado de sua casa destruído, pega um resfriado e cai doente; assim que sua febre melhora surge o Inspetor para exigir o uso da tela, da madeira e da tinta usada na pintura para o conserto da casa de Pároco, e ao lado dele aparece o Carregador para levar Cisco à estação de trem para sua viagem, para a qual ele não havia se preparado. Chegando no destino ele passa por um período de trabalho manual que serve como uma purgação de sua obsessão artística, e depois é tratado em um hospital; neste hospital ele ouve duas vozes discutindo o julgamento a se fazer a respeito de Cisco, até que a Segunda Voz, que detém da autoridade, o envia para um jardim. Neste jardim o protagonista encontra sua árvore, mas desta com todos os detalhes prontos, tanto aqueles que Cisco poderia ter pintado quanto aqueles que ele jamais conseguiria pintar, afinal esta árvore tem algo que a outra não tinha: vida, era uma árvore e não apenas uma pintura. Cisco, sentindo-se satisfeito, pede então à Segunda Voz que traga Pároco para este jardim, com quem ele poderia compartilhar desta experiência. Chegado no jardim, Pároco diz a Cisco que ele também havia sido julgado e que só por causa do pedido de Cisco que a Segunda Voz concedeu este destino. Cisco descobre que todo o lugar onde ele caminha faria parte de sua pintura, quando ela estivesse pronta, e aos poucos descobre um lugar mais ao longe, para o qual a pintura ainda deveria ser descoberta: a montanha; e para lá ele se dirige. Pároco, porém, decide retornar ao jardim e pedir a concessão de sua esposa, para que ela também possa desfrutar dessa vida. Enquanto isso, Cisco se dirige à montanha, orientado por um Guia.

 Toda esta narrativa, independentemente da interpretação que possamos fazer, apresenta claramente um movimento circular que começa na idealização subjetiva da pintura, “desce” para a realidade cotidiana e contingente, e por fim, depois de um processo de ruptura, retorna para o objeto dessa idealização, mas agora como realidade. Esse movimento imita todo o sistema da obra hegeliana, que começa na Ideia abstrata, “desce” para a natureza e para a contingência, e por fim sobe retornando para esta mesma ideia, agora não mais como abstração, mas como Espírito, como realidade concreta. Em Hegel também é com a arte, a religião, a alta política, a filosofia especulativa (cujo método ele identifica à tradição neoplatônica) que o homem percorre o caminho de retorno ao Uno, ao mesmo tempo origem e destino da Ideia.

 A tônica do conto de Tolkien, contudo, está neste trecho de “ascensão”. Não apenas Cisco passa por este processo, mas toda a realidade, exemplificada pelo Pároco e por sua esposa, o acompanham na jornada. Fica demonstrada a inferioridade da realidade cotidiana, da qual Pároco compartilha muito mais que Cisco, e a superioridade (inclusive ontológica!) da realidade ideal expressa pela pintura. Embora o pintor seja um tanto desconhecido no mundo cotidiano (ele é apenas um sujeitinho desprezado e até pouco conhecido por seus conterrâneos), o que se descobre é que todo mundo, em dado momento, acaba tendo que fazer a desdita viagem, e a culminância do destino, a “terra primeira” (o paradigma) em vista da qual todos os destinos são julgados pelas duas vozes, é aquela que subjazia na mente idealista do pintorzinho e que ele, com muita dificuldade e imperfeição, tentava expressar, com tinta sobre tela. A viagem pode ser tomada como o momento de dissolução, na linguagem alquímica, quando o neófito é iniciado nos altos mistérios e “morre” para um mundo ao mesmo tempo em que “renasce” para outro, este sim, o “verdadeiro mundo” a ser alcançado ao longo de um processo de coagulação.

 Na medida em que Cisco percorre seu caminho, sempre iluminado por seu ideal, ele traz consigo, atrás de si, todo o resto da realidade, arrastando o mundo de volta para o princípio. É por causa de Cisco que Pároco pôde ascender ao jardim, e por causa de Pároco, depois de ter finalmente sido iluminado pela vida da árvore, que a mulher do Pároco, ainda mais maculada pela vida “profana”, também pôde receber uma passagem para o jardim – todos formando uma “corrente de ouro” que se dirige para um destino único.

 Da parte de Tolkien, está clara, como parte da “lição” que o conto transmite, uma crítica ao desprezo que de modo geral a sociedade costuma ter pelos seus artistas, quando são estes que fornecem a “substância” da vida, a razão da realidade e, por conseguinte, o motivo pelo qual viver. O que Hegel diria é que a imagem pensada pelo artista é a própria estrutura do real ainda não efetivada. O artista (compreendido aqui em sentido amplo, incluindo o filósofo especulativo e o político conforme idealizado por Hegel, concretizado na figura de Napoleão), na medida em que ele, como um profeta, se define como aquele que profere a Ideia, é, tanto em Tolkien quanto em Hegel, o guia de um povo. E o destino é a divindade; para Hegel, o Espírito Absoluto que transcende as formas contingentes, e, para Tolkien em seu conto, a montanha, capaz de transcender até mesmo a árvore com sua multiplicidade de folhas e detalhes.

 É claro que devemos levar em consideração também as diferenças. Tolkien era um católico, Hegel era luterano. Mas, embora os símbolos usados no conto de Tolkien tenham de fato alguma proximidade maior com o catolicismo (a árvore, o “guia”, a “redenção”, o “purgatório”), eles estão muito longe de representar uma analogia com os dogmas do catolicismo. Estes símbolos falam por si, e deles se pode encontrar talvez uma proximidade ainda maior com o que Hegel chamou de “filosofia especulativa”: embora não possamos de modo algum definir, por exemplo, o jardim do conto como a “substância primeira” da realidade (afinal isso seria cair também em discurso alegórico), a estrutura com que os elementos ontológicos do conto estão organizados mostra claramente uma hierarquia entre “níveis de realidade”, as quais não se diferenciam meramente por um ser superior ao outro, mas pelo fato de os superiores “conterem” os níveis inferiores em si. É a árvore e seu jardim, seu entorno, que detém a vida da qual as plantas no mundo contingente são feitas. E essa árvore é superada por um manancial que, brotando no seio da floresta, alimenta todo o jardim – inclusive é desta fonte que Cisco bebe no final dos longos dias de trabalho para se manter vigoroso, possuindo esta fonte então um caráter curativo e rejuvenescedor que na alquimia o ouro e a pedra filosofal representam.

 A estrutura de A Folha de Cisco é, assim, mística. Ela não apenas exprime uma obediência, um respeito, uma veneração, ou um culto a uma certa divindade, mas introduz a busca pela fusão espiritual com a “substância divina” que a tudo dá vida. Este talvez seja o elemento culminante ou nevrálgico do parentesco com a filosofia hegeliana: para o filósofo, não basta a veneração do divino de modo distanciado e alienado, é preciso, em um movimento duplo, “internalizar” a Ideia (a estrutura da realidade), e efetivá-la no mundo através das estruturas históricas, de modo que as instituições, como as artes, a família, a sociedade, a religião, o Estado, tomados em conjunto, em um sistema orgânico, se tornem uma gigantesca escada para o alcance final do divino por parte dos espíritos singulares, em um êxtase universal, da substância universal. Por ser luterano, e não católico, Hegel concebia um valor especial para a subjetividade nesse trabalho (também duro e por vezes doloroso, como o foi para Cisco no conto diversas vezes), e neste ponto de novo ele se aproxima de Tolkien, que, embora católico, também defendia a literatura individual, o isolamento e o trabalho intelectual (subjetivo) como partes fundamentais do processo espiritual do homem. Afinal, é o “sujeito” que conhece, e a realidade deve ser conhecida. A Fantasia, para Tolkien, não é um escape para o irracionalismo, mas uma forma superior de racionalidade, tal como para Hegel a filosofia especulativa (atacada como “devaneio” por seus opositores) é o modo par excellence de se alcançar o Espírito Absoluto – por trás da Fantasia e da filosofia especulativa está uma “outra razão”, intemporal, organizada em princípios objetivos, que dá sentido à vida e também à própria razão instrumental (as duas razões não estão em desacordo). Essa “outra razão” é aquela capaz de “ver” a realidade invisível, os princípios transcendentes, que a razão instrumental é por definição incapaz de explicar e compreender.

 A ampla gama de correspondências que se pode encontrar entre Hegel e Tolkien (não só no conto em questão) talvez seja fruto de uma grande erudição de ambos, de onde certamente vão acabar bebendo de fontes próximas e similares na história do pensamento e sendo influenciadas por elas, portanto não exatamente de uma influência direta. Mas são muitas essas correspondências, e a mais interessante de todas, aquela que destaca ambos os autores de seus próprios contextos e os coloca em sintonia, é a tonalidade mística de busca e de união intelectual e substancial com o divino, por sua vez a própria fonte da vida – e, para ambos os autores, tudo o que existe é, no fundo, Vida.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A Sabedoria dos Mitos e Contos de Fadas


Há um vício nas atuais doutrinas e nos atuais estudos sobre os mistérios, sobre o gnosticismo, religiões e seitas esotéricas que imita exatamente aquilo que julgam combater: o racionalismo. Perdemos o contato com a realidade, esquecemos o sentido simbólico da linguagem, e passamos assim, senão a interpretar as doutrinas literalmente, ao menos a concebê-las como sistemas abstratos e dogmáticos. Desse modo, a Idade de Ouro se torna um dogma como qualquer outro, tal como o céu abstrato do cristianismo, uma "realidade" inventada; perdeu-se a noção de que a Idade de Ouro, por exemplo, sendo um símbolo de significados múltiplos, pode querer dizer algo sobre o processo histórico concreto, sobre o desenvolvimento intelectual e moral do homem, sobre a constituição natural e originária de um mundo que não se distingue do nosso, cuja constituição apenas tenha sido esquecida enquanto conteúdo de cognição.

Muito se fala sobre símbolos, mitos, entidades, até fazem-se relações, mas nunca se aponta o sentido concreto, que é realmente o que importa, sem o qual tudo não passa de palavras vazias, típicas inclusive do nosso sistema acadêmico, que fala das coisas sem realizá-las. Em suma, é racionalismo puro, pura abstração vazia e sem conteúdo; sinais sem significado, sem a referência subjacente. Em face disso, queremos fazer uma ode aos contos de fadas, e mostrar que eles são as formas mais puras e imediatas de um "esoterismo" milenar; não lidam com abstrações exageradas, seus símbolos são facilmente compreensíveis, e sua sabedoria é inesgotável para filósofos e contempladores. Aliás, há quem diga que os contos, muitos dos quais foram reunidos pelos irmãos Grimm na Europa Central, são mais antigos que os mitos mediterrâneos dos gregos e que a Bíblia[1]; o que é muito crível, em vista de sua estrutura primitiva e seus símbolos, típicos de civilizações tão antigas quanto a hindu. Esses contos de fadas não são invenções abstratas, mas relatos recolhidos no seio do povo, muitas vezes habitantes de florestas e vales remotos, onde a sabedoria dos antepassados permanece repleta de vida e significa, quase intocada; os contos dos irmãos Grimm, por sua vez, refletem um frescor e uma naturalidade, uma clareza, muito familiares a um homem germânico, cujo espírito, o Geist, pertence a vales orvalhados, picos gelados e mulheres brancas, sorridentes, graciosas e luminosas, que colhem flores no campo como uma flor reunida com suas irmãs.

Prestemos atenção em um conto curto, porém riquíssimo de significado, sobre o qual nosso comentário, pobre, apenas terá o interesse de se demorar sobre a riqueza sábia dos antigos, que nunca deixará de ter algo de grande e profundo a nos ensinar:

A Abelha-rainha (Die Bienenkönigin)

Era uma vez, dois filhos de um rei foram para uma aventura e enfrentaram uma vida selvagem e bruta, de modo que não voltariam mais para casa. O mais novo, o qual chamavam de Bobo, aprontou-se e foi a procura dos seus dois irmãos; mas, assim que ele finalmente os encontrou, eles zombaram dele que ele, com sua simplicidade, queria dominar o mundo, enquanto eles dois não podiam se virar muito bem, mesmo sendo mais sábios. Mas eles então retomaram, os três, a viagem e encontraram um ninho de formiga. Os dois mais velhos queriam fuçar e ver como as pequenas formigas, angustiadas, rastejar-se-iam e carregariam seus ovos, mas o Bobo disse: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os incomodem". Então eles seguiram em frente e viram um lago, onde nadavam muitos, muitos patos. Os dois irmãos queriam pegar um punhado deles e assar, mas o Bobo não deixou e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os matem". Por fim, encontraram um ninho de abelha, onde tinha tanto mel que escorria pelo tronco. Os dois queriam pôr fogo de baixo da árvore e sufocar as abelhas, de modo que assim poderiam levar o mel embora. Mas o Bobo se manteve empacado e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os queimem". No fim, os três irmãos chegaram em um castelo, onde no estábulo estava cheio de cavalos de pedra, e não havia pessoas por perto, e eles foram entrando por todos os salões até que bem lá no final tinha uma porta com três fechaduras; pela fechadura da porta tinha uma criança que se podia ver no quarto. Eles viram ali um homenzinho cinzento que estava sentado na mesa. Eles o chamaram uma vez, duas vezes, mas ele não ouviu, então o chamaram pela terceira vez, e ele se levantou, destrancou a porta e veio para fora. Não falou uma palavra, mas os guiou a uma mesa farta, e conforme eles tinham comido e bebido, ele levava cada um para dormir. Na manhã seguinte veio o homenzinho cinzento para o mais velho, acenou e o guiou a uma mesa de pedra sobre a qual haviam três missões por escrito, através das quais o feitiço sobre o castelo poderia ser quebrado. A primeira era: na floresta, sob o musgo, estão jogadas as pérolas da filha do rei, que são mil em número, que devem ser recolhidas, e se quando o sol tiver caído ainda faltar uma única, aquele que foi procurá-las se transformará em pedra. O mais velho partiu e ficou o dia inteiro procurando, mas o dia chegou ao fim e ele só tinha recolhido uma centena; então aconteceu que, assim como ele estava de pé diante da mesa, se transformou em pedra. No dia seguinte entregou a aventura ao segundo irmão, que não foi muito melhor que seu irmão mais velho e, tendo encontrado duzentas pérolas, foi transformado em pedra. Por fim, chegou a vez do Bobo; ele procurou no musgo, mas estava muito difícil encontrar as pérolas e estava muito devagar. Então ele se sentou sobre uma pedra e chorou. Veio então o rei das formigas, de quem ele tinha salvo a vida, com cinco mil formiguinhas, e não durou muito para que os bichinhos encontrassem as pérolas. A segunda missão era encontrar a chave para o quarto da filha do rei, que estava perdida no lago. Quando o Bobo foi para o lago os patos, que tinham sido resgatados por ele, se aproximaram nadando, mergulharam e trouxeram as chaves lá do fundo. Mas a terceira missão era a mais difícil: das três filhas do rei, que dormiam, ele deveria apontar qual era a mais nova e mais amável. Elas eram perfeitamente parecidas e não se distinguiam em nada, a não ser pelo fato de que, antes de terem ido dormir, elas tinham comido doces diferentes; a mais velha, um pedaço de açúcar, a segunda, um pouquinho de xarope, e a mais nova, uma colher de mel. Veio, então, a rainha das abelhas, que o Bobo tinha protegido do fogo, lambe a boquinha de cada uma das três; no fim se senta sobre a boca daquela que tinha comido mel, de modo que o filho do rei pudesse saber quem era a certa. O feitiço foi quebrado, todos os que dormiam foram acordados, os que tinham se tornado pedras voltaram a suas formas humanas. E o Bobo se casou com a mais nova e mais amável e se tornou o rei depois da morte do pai dela; mas seus dois irmãos receberam as outras duas irmãs. (Tradução nossa da versão de Knaur, 2012)

Sem racionalismo, sem as inférteis análises do "sistema" simbólico, sem desejar explicar este maravilhoso conto e esvaziar, assim, seu significado, limitemo-nos a debater um pouco sobre o que ele nos diz e o que dele podemos apreender. Uma criança certamente perceberá coisas que um adulto pode muito bem passar por alto e não notar; mas há tanto a se absorver deste conto que pessoas diferentes vão provavelmente observar detalhes diferentes, não se contradizendo, mas se complementando em suas observações.

Podemos notar, por exemplo, que dos três irmãos, o único que foi capaz de levar a cabo as missões recebidas, embora tenha sido muito inexperiente na vida, foi o mais novo, chamado de "Bobo" pelos demais. Eis aqui um tema que nos lembra Dom Quixote, o mais tolo dos cavaleiros, mas também o mais valente e o mais sutil dos homens. A fim de suprir desejos superficiais, os irmãos mais velhos se ocupam da técnica e da brutalidade para derrubar os obstáculos à sua frente; o mais novo os impediu de tamanho pecado, o qual eles ouviram e respeitaram, e o qual terão motivos para agradecê-lo mais tarde por isso. Notemos aqui que é a inocência (a "tolice", aos olhos dos utilitários) quem foi capaz de cavar mais fundo nas leis da natureza, não com pá, mas com o coração. O conto nada nos diz sobre as percepções subjetivas de cada um (desnecessárias), trata-se de um conto antigo e de caráter objetivo, mas podemos imaginar que o mais novo teve seus motivos ocultos para salvar os bichos da malícia humana; sabemos o que ele sentiu porque também agimos assim quando amamos algo ou alguém, e também agimos como os outros quando somos estúpidos e, de tanto pensarmos em suprir desejos nossos, passamos por alto sem notar as sutilezas do mundo que não nos pertence enquanto mero objeto. A inocência, aqui, aparece em uma criança, não porque só a criança é inocente, mas porque a vida mecânica do mundo adulto nos ensina a corrupção do coração humano.

Não que não se deva matar; nós matamos para comer. Mas no caso deste conto (e é muitas vezes o nosso caso) não havia necessidade para tanto. Os irmãos queriam apenas fuçar e incomodar as formigas, não tinham necessidade de matar patos nem pôr fogo em uma colmeia; não estavam famintos, e o conto mostra ainda, depois, que foram todos levados a uma mesa farta. Aqui, os "obstáculos" a serem derrubados a fim de obter os objetos do desejo demonstram serem contornáveis, trazendo à luz a lei profunda da natureza, que a tudo contorne e supera sem destruir. Tivessem os dois mais velhos desrespeitado o menor e atacado os bichos, não teriam chegado ao castelo e às farturas. Essa ideia de recompensa é reforçada, no final, quando os irmãos recebem as outras filhas do rei; eles não eram tão sutis quanto o menor, mas foram sutis o bastante para perceber a malícia dos seus desejos e abortar as ideias toda vez que o mais novo aconselhava. A natureza oferece farturas a quem souber respeitá-la, mesmo que não saiba amá-la, como é o caso dos dois irmãos. E a quem souber amá-la terá para si o amável também: a mais amável filha do rei é uma oferenda sagrada que a natureza oferece às almas de ouro, que no amor se fundem com ela, a mãe-terra, como em uma mesma essência. Não há, notamos, subjetividade no mais novo, nem sua contraparte objetividade (há nos mais velhos: o uso da técnica para atacar os bichos concebe um sujeito, o agente, e o objeto, o mundo, de quem deve ser retirado um bem para suprir unicamente os primeiros), há um modo de vida imparcial e, nas nossas palavras modernas, místico, de unidade com a natureza, portanto familiaridade, proximidade, piedade e, por fim, o amor silencioso e profundo. O mais novo via na natureza um "pedaço" de si mesmo, era a ordem do todo que lhe importava, e o todo inclui em um mesmo o mundo e ele próprio, o Bobo.

Só o amor místico, a inocência quixotesca, é capaz de eliminar o feitiço que recaiu sobre o mundo e transformou os homens em pedras. Ainda dizemos quando alguém é demasiadamente frio: "ele é uma pedra", ou "tem um coração de pedra". Sabemos bem o que isso quer dizer, embora o termo atualmente seja usado para muitas situações diferentes, e nem sempre é referido a homens impiedosos. No caso do conto, aqueles que não se uniram à fluidez natural do mundo foram transformados em pedras, jogados para dentro de sua subjetividade, abandonados, expulsos da vida orgânica. O nosso mundo moderno, aqui, é representado pelos dois irmãos, com a exceção de que o mundo moderno, sejam os conselhos que recebe, jamais poupa a natureza, a vida e a inocência -- com a presença do moderno, não teria havido, no conto, o respeito à autoridade do irmão "tolo", os bichos teriam sido maltratados e o feitiço jamais teria sido quebrado. É o que acontece nesse nosso mundo há vários milênios. Em se tratando de "tolice" redentora, citamos mais um mito de Percival, um dos cavaleiros da Távola Redonda, narrado por Eliade:

Lembramos a misteriosa doença que paralisou o velho Rei, detentor do segredo do Graal. Aliás, ele não era o único que sofria; tudo em torno de si desabava, desmoronava: o palácio, as torres, os jardins; os animais não mais se reproduziam, as árvores não davam frutos, as fontes secavam. Inúmeros médicos tinham tentado tratar o Rei Pescador -- sem o menor resultado. Dia e noite chegavam os cavaleiros, e todos começavam por perguntar as novidades sobre a saúde do Rei. Um único cavaleiro -- pobre e desconhecido, até um pouco ridículo -- permitiu-se ignorar o cerimonial e a cortesia. Seu nome era Percival. Sem levar em conta o cerimonial da corte, ele se dirige diretamente ao Rei e, aproximando-se dele, sem nenhum preâmbulo, pergunta-lhe: "onde está o Graal?". No mesmo momento, tudo se transforma: o Rei levanta-se do seu leito de sofrimento, os rios e as fontes começam a jorrar, a vegetação renasce, o castelo se restaura milagrosamente. As poucas palavras de Percival tinham sido suficientes para regenerar toda a Natureza. Mas essas poucas palavras constituíam a questão central, o único problema que podia interessar não só ao Rei Pescador mas também ao Cosmos inteiro: onde se achava o real por excelência, o sagrado, o Centro da vida e a fonte da imortalidade? Onde se encontrava o Santo Graal? Ninguém havia pensado, antes de Percival, em formular esta pergunta central -- e o mundo morria por causa dessa indiferença metafísica e religiosa, por causa dessa falta de imaginação e ausência de desejo do real. (Imagens e Símbolos, Martins Fontes, julho de 2012, pp. 51-2)

Neste relato de Percival vemos elementos e dramas muito parecidos com os do conto que abriu este nosso texto: uma figura simples, "pobre", que não conheceu os caprichos da corte, repleto de virtude e fé na experiência e no mistério da vida, quebra o feitiço, ou melhor, cura a doença incurável do Rei, que é a mesma que se abate sobre a natureza. O misticismo neste mito está implícito na fé de Percival, uma fé primitiva e cheia de um frescor valente, jovem, luminoso. Neste aqui Percival não se torna um Rei, mas traz um Rei de volta, o que se equivale, visto que o Rei não é uma pessoa, mas um elemento místico que pertence à Natureza.

No caso do conto de fadas narrado aqui, o Bobo herda o trono, a coroa, se torna o rei. Quer dizer que o reinado, que pertence à natureza, é uma função da própria natureza, e só aquele que reiná-la, ao invés de corrompê-la, portanto guiá-la e protegê-la, deve se tornar, realmente, um rei, um protetor, um pai. A natureza oferece a cada um o que é devido, e aqui podemos lembrar a doutrina aristotélica dos lugares naturais, em que cada ser tem seu lugar natural; Aristóteles certamente absorveu em sua doutrina uma sabedoria antiga, mas a corrompeu, a racionalizou, e o "lugar" se tornou meramente um "espaço", um ponto em um mapa cartográfico. Voltando ao conto, o lugar devido de uma alma que protege é o reinado -- há atividade por parte da alma que voluntariamente protege a natureza, e passividade, mas também um movimento complementar que retribui imediatamente, não moralisticamente, mas eroticamente (a proteção é por amor, e amor é proximidade e união, portanto diálogo profundo), por parte da natureza. A mesma passividade encontrada na natureza está implícita na mulher, no caso das filhas do rei, que por ser identificada à natureza e oferecida ao Bobo como que algo de si mesma, a natureza lhe oferece um pedaço de si, um cristal da sua essência. E a mulher é um cristal, um mineral do cosmos, um tesouro. O cristal mais puro dos três que o rei tinha alcançou sua contraparte devida.

No mundo moderno estas leis naturais não funcionam, pois estão rompidas em sua continuidade por irmãos maus que corrompem a natureza. Os três irmãos só alcançaram o castelo e o feitiço só foi quebrado porque o mal não chegou a ser lançado; nós modernos, pelo contrário, não temos a chance de pôr a prova a natureza, de esperar dela o que nos é devido, porque ininterruptamente tentamos arrancar dela o que queremos. Antes mesmo de sairmos à floresta já estamos transformados em pedras brutas destruidoras, em velhos doentes. Na modernidade, a autoridade só é respeitada, seja boa ou ruim, ao ser tomada pela força e pela brutalidade, e só a força tem autoridade, o caráter já não conta mais, a sutileza, a profundidade, a sabedoria, nada disso é reconhecido, nem mesmo respeitado. E aqui o conto nos ensina algo mais, nos dando previsões dos tempos, de que só há a possibilidade de reconciliação com a natureza, e da obtenção do nosso lugar no mundo, caso nos atentemos aos princípios metafísicos disponíveis de imediato no mundo e na experiência humana, que nos apresentam os deuses e nos iluminam nosso união originária com a natureza; o desenvolvimento do caráter não é algo que acontece na abstração, no simples "dever" normativo e imposto, mas está intimamente ligado à ordem existencial do mundo apresentada nas relações naturais: na contemplação da beleza e harmonia do mundo, na hierarquia do kósmos, que também são a beleza e harmonia do homem e das relações humanas, a hierarquia que distingue o lugar de cada um na sociedade -- é na natureza que observamos a eterna e contínua colaboração e participação das partes complementares em um todo, um mesmo único, para todos. O mundo moderno só voltará a reconhecer a ordem humana quando se voltar para as sutilezas da natureza, pois nela estão as chaves para quebrar o feitiço, e só será possível encontrar estas chaves quando mudarmos nossa maneira de tratá-la, pararmos um pouco a fim de observá-la e descobrir nela os mistérios e as respostas pelas quais ansiamos no íntimo. É a própria natureza quem nos trará as chaves ao sentir que podemos recebê-las, porque já estamos de ouvidos abertos e podemos ouvi-la cantar -- e é sutil, miúdo, muito frágil o canto dela.

Como podemos perceber, um conto de fadas tem muito a nos ensinar, tanto sobre moralidade, sobre relações humanas básicas, sobre as emoções humanas, quanto sobre metafísica e ciências mais avançadas. Mesmo assim, estamos certos de não ter esgotado este conto, há muito mais a se falar e pensar sobre ele; mas mesmo que investíssemos em discursar a fim de esgotá-lo, não teríamos sucesso; o conto não apresenta uma divisão simbólica artificial, ele não é construído arbitrariamente com partes individuais, avulsas, passíveis de serem distinguidas. Pelo contrário, cada "parte" dele está a serviço do todo, da ideia do todo, e somos nós que fazemos o esforço de recortá-lo a fim de salientar certos valores que nos são transmitidos inseparavelmente com todos os outros por inteiro, intuitivamente. O conto fala uma linguagem intuitiva, de apreensão natural por parte do Geist -- os valores são introduzidos no conto pela sutileza e pelo Geist do povo no seio do qual o conto foi formado tradicionalmente; e é o mesmo indivíduo pertencente ao povo, em cujo seio também queima o Geist popular, capaz de apreender o conteúdo implícito na linguagem discursiva, mas claro, luminoso, quando atinge a imaginação humana. A imaginação trata de interpretar intuitivamente aquilo que está por trás das meras palavras e é engastado pelo Geist do qual ela mesma é feita. Só ela, no homem, tem as chaves necessárias para a compreensão da natureza e da realidade como um todo. Não são as barafundas dos cientistas, mas a imaginação e o Geist que carregam as chaves do conhecimento e dos mistérios da vida.

O conto é um fenômeno vivo e fala por si, por isso dispensa explicações. Se a arte moderna se obrigou a explicar suas "obras" é porque não é mais arte, mas pura técnica -- ela perdeu a linguagem do Geist, que, não obstante, permanece viva nos contos de fadas (não aqueles corrompidos pela Disney, que transformou as histórias, imprimindo novos e decadentes significados em questão de minutos e caneteadas arbitrárias em laboratórios, mas os antigos e originais formados durante milênios de experiência e observação humanas, que falam a linguagem do ser e transmitem o logos). E, por falar a linguagem do Geist, não há contra-indicações, e tanto as crianças quando os adultos, tanto o filósofo quanto o agricultor, são capazes de compreender. Aqui notamos uma citação de Hayao Miyazaki, diretor de animes muito interessado em contos japoneses e até ocidentais, que reproduz um pouco o que estamos a dizer: "uma vez uma mulher que trabalha na produção [dos animes] me contou que as crianças devem assistir coisas que elas não compreendem no momento, mas compreenderão mais tarde -- ora, eu nunca concordei com isto". Miyazaki também pensa que o que se pode saber da vida se pode saber a qualquer momento, independentemente da educação recebida, porque não é a mente racional que conhece, mas o coração humano ou a alma humana, que falam outra língua e compreendem outra língua, uma língua silenciosa e que nos atinge imediatamente na alma. Por isso, seus animes silenciam quando os modernos imprimiriam diálogos insossos, e falam através do exemplo, através da demonstração das sutilezas, sem se limitar a imprimir significações precisas e já orientadas por uma interpretação particular. Ao invés de ordenar a contemplação, mostra o que há para contemplar, e deixa nossa alma contemplar por si, ativamente, participando de sua obra. É como presenciar um ritual dionisíaco e místico, onde enxergamos os deuses e os ouvimos falar diretamente à nossa alma, não como telespectadores, mas como participantes do kósmos no qual eles habitam.

Para terminar, deixamos mais uma citação, desta vez diretamente dos "mistérios", do Corpus Hermeticum, que arrematará muito do que dissemos neste texto:

Se você não se fizer igual a Deus, não poderá apreender Deus, porque o semelhante é apreendido pelo semelhante. Ultrapasse todo corpo e se expanda para a grandeza imensurável; supere todo tempo e se torne eternidade: assim você deve apreender Deus... abrace em ti todas as sensações de todas as coisas criadas, do fogo e da água, do seco e do molhado; esteja simultaneamente em todos os lugares, no mar, na terra e no céu; seja de uma só vez um nascido e esteja ainda no útero, seja jovem e velho, esteja morto e além da morte; e se você conseguir segurar todas essas coisas juntas, os tempos e lugares e substâncias, qualidades e quantidades, então você pode apreender Deus. Mas se você subestimar sua alma e fechá-la no seu corpo, se disser "eu não sei nada, eu não consigo nada, eu tenho medo do mar, eu não consigo escalar o céu; eu não sei o que fui nem o que devo ser", nesse caso o que você tem que ver com Deus? (XI, 20, retirado de Dodds, Pagan and christian in an age of anxiety, p. 82).

[1] http://portal-legionario.blogspot.com.br/2016/07/contos-de-fadas-sao-mais-antigos-que.html
[10/02/2017]