segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

(POEMA) Onde Estás?

John Bauer
Minha mimosa, onde foi que
te enfiaste tão dengosa?
com que sorte
te afastaste lacrimosa?
Onde foi que te perdeste?
Diz-me, querida minha,
pois daquele lado ou mesmo deste
não te acho, minha pombinha...
de onde gritas tão ardente,
tão chorosa e descontente,
desprotegida e sem consolo,
a tudo tão assim sujeita
a todo tipo de intempérie
que a ti tão rude fere?
De onde caem estas lágrimas
que encharcam todo o chão?
Quero com o calor de minha mão
no teu rostinho elas secar.
Baixinho e soluçando choras,
e se não me contares onde estás
como poder-te-ei encontrar
assim sem muita demora
e meu coração então curar? [22/02/2021]

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O sacrifício do clássico e a facilidade da subcultura televisiva

Rob Gonsalves

Um dos grandes males do pós-guerra foi a cultura da televisão. Ela retirou do indivíduo, das famílias, das comunidades regionais e do Estado a liberdade do pensamento, monopolizando os conceitos, os debates, afirmando o que existe e suprimindo o que, segundo as empresas que produzem o conteúdo transmitido, não deve mais existir.

Mas a televisão é apenas um dos elementos e veículos, talvez o maior elemento e o maior veículo, dentro de um grande movimento cultural de dissolução mental, psicológica, social, política, educacional. Se em meados do século XX alguém seria ridicularizado por nutrir esse tipo de opinião, hoje essa ideia se torna cada vez mais uma especulação geratriz de preocupação séria entre pensadores e cientistas sociais. Tornou-se óbvio para todas as classes letradas que o papel da televisão é cada vez mais o de ofuscar o conhecimento com oceanos de bobagens, imbecilizar o jovem, inocular no interior das famílias ideias estapafúrdias que passam a influenciar nas relações internas.

A televisão é sem dúvida um dos maiores motores da confusão e do caos que estamos vivendo hoje. A partir de 2010 a cultura começou a sair da televisão para entrar na internet, é verdade, mas os métodos continuaram os mesmos para a esmagadora maioria dos consumidores de internet e redes sociais: as empresas que antes transmitiam conteúdos pela televisão de tubo migraram para as redes; surgiram páginas na internet divulgando o material, mas também surgiram novos meios de informação com conteúdo pago e acessado pela internet. Quem transmite continua ditando o que existe e o que não existe no universo das ideias de toda uma população, e aquilo que existe sem dúvida é traduzido da forma que convém aos donos das mídias, que também hoje controlam a economia global e ameaçam as bases dos Estados nacionais.

Um livro, por outro lado, é livre de monopólio. O autor sempre incute no livro suas ideias, suas ideologias, disso ninguém escapa. Mas o autor não detém do monopólio sobre o mercado livreiro e, caso não for digno de ser lido, facilmente se pode colocá-lo de lado. Hoje existe, sim, uma tentativa de monopolizar o mercado livreiro, mas esse é só mais um processo dentre os tantos monopólios culturais que existem e que se concentram sempre nos mesmos conglomerados que controlam as grandes mídias de televisão e de rede. O livro, por sua vez, permanece revolucionário, e sua interpretação depende muito do próprio leitor, que participa da história da recepção e da reprodução das ideias que ele leu. É por isso que também os monopólios tentam fazer do mercado livreiro um mercado de bobagens, a fim de ofuscar as grandes obras, os clássicos, e assim distanciar cada vez mais o jovem das grandes ideias. Participam desse show os tais “influenciadores de rede” que não mais querem que os jovens aprendam com Machado de Assis e permaneçam para sempre pessoas imaturas, passíveis dos monopólios culturais que facilmente abocanham os povos quanto mais ignorantes, mesquinhos e irresponsáveis eles se tornam.

Os livros considerados clássicos, por sua vez, não o foram por mero oportunismo dos monopólios ao longo da história, até porque nenhum monopólio dura milhares de anos, se é que dura muitas décadas sem causar destruição em massa e autodestruição. Eles são clássicos porque têm algo de importante a dizer, a mostrar, a revelar para a psique humana aquilo que sozinha lhe custaria, em muitos casos, milhares de anos para se dar conta. Um livro clássico está carregado de conhecimento sobre a natureza humana, e assim sugere reflexões sobre nossos atos, nossos gostos, nossos anseios mais íntimos. Ao fazer estas reflexões e perseguir o mistério existencial o leitor imediatamente se emancipa das amarras culturais que muitas vezes o prende para seu próprio mal. E digo isso não para condenar os costumes populares e tradicionais, pelos quais muitas vezes o jovem se sente ameaçado, mas para condenar a televisão e a cultura que ela promove em detrimento desses mesmos costumes populares. Afinal, qual é a verdadeira prisão em Orwell e Huxley senão a prisão das Big Techs, da televisão e das grandes mídias? Por que uma comunidade luterana do interior de Santa Catarina, onde crianças aprendem a socializar e amar através da dança e do Kerp, ou uma mãe de santo no Rio de Janeiro, que benze os jovens para seu sucesso, seriam exemplos de opressão? Não nos parece então estapafúrdia a ideia de que a expressão do povo, isto é, a tradição e sabedoria popular, seja agente de sua própria opressão? Pois quem fez dos jovens uma revolução contra a cultura popular foram os oligopólios da informação, que passaram a monopolizar a mente deles contra eles mesmos.

O conteúdo de um livro clássico não é diferente daquele expresso pela sabedoria popular. Os elementos utilizados sempre derivam dos ricos símbolos da linguagem usual. As grandes obras não são diferentes dos grandes ensinamentos da sabedoria popular, sendo elas uma reflexão profunda que também passa de geração em geração, de século em século, milênio em milênio. Elas apenas são mais complexas, mais bem arquitetadas pelo gênio, muitas vezes mais profundas e inspiradoras. Mas elas não visam renegar ou rivalizar com a sabedoria popular; pelo contrário, a história mostra que sempre houve um diálogo e uma interdependência muito forte entre elas, mas que acontece livremente do lado de ambas pela atração estética e pelo valor que possuem uma para a outra.

Tomemos o exemplo de Dante Alighieri. A Divina Comédia jamais teria vindo a existir sem a própria experiência de vida do autor, do conhecimento que ele tinha dos mitos cristãos, tanto popular quanto erudito. E a sabedoria popular cristã talvez jamais viesse a ter a noção que ela passou a ter do inferno e do purgatório se não fosse a obra de Dante. E mais uma vez, essa mútua influência nunca foi imposta através de uma máquina monopolista de informação, e sim por intermédio da inspiração que o gênio do autor transmitia, pelo conhecimento profundo da alma humana que sua obra carrega, pelo significado que ele teve para seus leitores.

E estes leitores de Dante, por sua vez, jamais teriam vindo a ocupar seu tempo em uma obra gigantesca e rigidamente talhada em versos sem um certo esforço. Uma obra da magnitude de sua Comédia é muito difícil de absorver. Acadêmicos passam vidas inteiras se debruçando sobre os detalhes mais ínfimos e deles extraindo informações valiosas para uma compreensão ainda mais profunda. É natural que uma obra grande exija dedicação. Tudo que é grande exige. Lembremos que as catedrais góticas da Idade Média duravam séculos até ficarem prontas; gerações inteiras passavam trabalhando em sua arquitetura até que a construção adquirisse seu formato “perfeito”. Nada de grande se faz com mordomia, nada de grande se faz para ser usufruído na mesma hora. Tudo o que é grande requer elaboração, estudo, reflexão, experiências, e isso significa muitas vezes sacrifício, solidão, dor e sofrimento.

A cultura da televisão quer nos privar das profundezas, quer nos vender o fácil e barato que no fim acaba saindo bem caro. Essa cultura, ou antes subcultura, quer nos privar da nossa natureza humana, de nossa alma, do gozo do verdadeiro e eterno amor, que é sagrado e dura muito mais que uma vida. Precisamos combate-la, e um meio de fazer isso é revitalizarmos a leitura dos clássicos da literatura, da filosofia e da história. Tudo o que é grande requer sacrifício, e está na hora de optarmos pela grandeza e destruirmos a mediocridade; está na hora da águia pisar e bicar a serpente maligna.


*Álvaro Körbes Hauschild, nascido em 1992, é doutorando em Filosofia Antiga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também fez graduação (2016) e mestrado (2019); traduziu Geopolítica do Mundo Multipolar (2012) e Contra o Ocidente (2013), obras do filósofo e geopolitólogo russo Aleksandr Dugin. Atualmente se dedica a uma tradução comentada dos Oráculos Caldeus diretamente do grego antigo e lançará pela Kotter o livro “Anamnesine” (2021).

Publicado originalmente no blog da Kotter (01/02/2021) [https://kotter.com.br/o-sacrificio-do-classico-e-a-facilidade-da-subcultura-televisiva-alvaro-hauschild/]

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

[Sobre] Sturm und Drang em ANAMNESINE (2021)

Os Primeiros Acordes da Canção Fatal (2020), de autoria de A.R.R. de Sousa e G.C. Rodriguez

Resenha de Alfredo RR de Sousa e Gabriel C. Rodriguez para ANAMNESINE (2021), livro de estreia do mestre em filosofia Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e tradutor Álvaro Körbes Hauschild.

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Sturm und Drang em ANAMNESINE

Alfredo RR de Sousa & Gabriel C. Rodriguez

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Foi com imensa satisfação e grata surpresa que empreendemos a leitura de ANAMNESINE (2021), de lavra do mestre em filosofia (UFRGS) e tradutor Álvaro Körbes Hauschild. Obra de difícil de caracterização em termos de gênero, há que observar já à partida, muito embora se calhar a definição que melhor se lhe ajuste seja a novela alegórica à moda de Novalis, formato que permite ao autor, inclusive em consonância com essa hipotética matriz, lançar mão de seu vasto conhecimento de causa no âmbito da filosofia e literatura helênicas.

 Mas que o leitor não pense que o universo conceitual de Hauschild se restringe à excelsa Hélade: com efeito, ANAMNESINE se desdobra sob a égide de caleidoscópica e multifária progênie: da ominosa geometria espacial dos “Carceri d’invenzione” de Piranesi às abstrações paradoxais da geometria textual de J.L.Borges, passando por William Blake, Franz Kafka e Hugo von Hofmannsthal, são muitas as paragens na jornada iniciática que o autor nos propõe.

Jornada essa que se traduz, quer nos parecer, como um progressivo ‘perder-se de si mesmo’, à moda do itinerário espiritual dos peregrinos aéreos no “Colóquio dos Pássaros” do místico persa Farid ud-Din Attar, um ‘perder-se de si mesmo’ que não obstante emblematicamente se traduz como extática conquista extática da lucidez transfigurada; ou então como o processo triádico de iluminação na tradição ortodoxa cristã: catharsis (purificação) / theoria (esclarecimento) / theosis (união com Deus). Tal é a matéria da prosa poética de Hauschild, sob os auspícios d’uma paternidade outrossim tríplice: a tradição hermética, o idealismo alemão e a sabedoria hiperbórea.  A crítica literária norte-americana Helen Gardner afirma que a poesia de T.S. Eliot caminha do ‘niilismo’ (em “Prufrock and other Observations”, primeiro volume de versos do autor, publicado em 1917) à ‘glória’ (em “Ash-Wednesday”, de 1930 e, sobretudo, nos “Four Quartets”, de 1943), passando pelo ‘medo’ (“The Waste Land” - 1922) e pelo ‘horror’ ("The Hollow Men" - 1925). Algo análogo poderia ser dito a propósito de ANAMNESINE.

O estilo do autor, solene, evocativo e densamente poético, faz jus às suas pretensões, e emoldura admiravelmente a construção da narrativa: o protagonista, um homem sem nome, subitamente desperta num cárcere abandonado e então dá início a seu périplo, através d’uma miríade de experiências sensoriais, devaneios (talvez metade da obra se passe no reino dos sonhos, e nisso temos um vislumbre de quão fundamental é a dimensão onírica nesse texto) E quem é ANAMNESINE? O leitor terá que descobrir por si só, uma vez que entre nessa mandala de páramos e conhecimentos ignotos.

Há alguns elementos que nos pareceram particularmente refinados e fascinantes nessa obra de sabor tão peculiar; citamos aqui dois, porventura ao sabor do acaso: no capítulo VI, uma sutilíssima crítica, em compasso de alegoria poética ‘novaliana’, a certos aspectos de dogmatismo racionalista presentes na filosofia kantiana; e no capítulo V, um conto de antecipação apocalíptica digna do horror cósmico d’um Clark Ashton Smith ou das fantasmagorias expressionistas d’um Alfred Kubin.

De resto, gostaríamos de reiterar o facto de que estamos sobremaneira honrados com a oportunidade de resenhar essa obra de um confrade de muitos anos e que agora faz parte da mesma casa editorial que nos lançou. Aproveitamos o ensejo para felicitar a Kotter pela disposição e coragem em lançar uma obra tão arrojada, demonstrando uma vez mais que seu time editorial tem  “olhos para ver” coisas que amiúde ficam ocultas, e que por isso mesmo devem vir à luz...  A luz  que ilumina o Leste, destino final do périplo de ANAMNESINE e Álvaro Hauschild, que a essa altura, já se amalgamam numa única entidade não sendo mais possível para nós discernir criador e criação.

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Alfredo Rubinato Rodrigues de Sousa nasceu em Recife no dia 20 de novembro de 1971. Mudou-se para o Rio de Janeiro antes de completar seu primeiro aniversário, cidade em que reside desde então. É neto do célebre compositor popular paulista Adoniran Barbosa. Graduado em Comunicação Social e Filosofia, pós-graduado em Relações Internacionais, dedica-se atualmente à tradução. Mantém um blog desde 2001, espaço onde divulga sua produção ensaística (filosofia; estudos literários; análise política; crítica musical e cinematográfica, etc.) bem como alguns textos de prosa poética e um epistolário fictício. Em matéria de literatura, tem como referências basilares figuras como Paul Valéry, S.T. Coleridge, J.L. Borges, W.B. Yeats, Edmund Spenser, Novalis, entre outros. Sua primeira experiência no gênero ‘Romance’ é o livro Os Primeiros Acordes da Canção Fatal, escrito em coautoria com Gabriel Rodriguez.


Gabriel Rodriguez nasceu em Limeira, município situado na região leste do estado de São Paulo, no dia 22 de junho de 1991. Concluiu em 2019 um MBA em gestão de pessoas, mas suas grandes paixões são a literatura e a História, tendo já escrito alguns contos e, agora, em coautoria com Alfredo RR de Sousa, o romance Os Primeiros Acordes da Canção Fatal (com quem também coescreveu um relato de horror – O Monstro, entre outras obras ainda inéditas). Suas preferências literárias recaem, sobretudo, no campo da ficção fantástica, com destaque para autores como E.A. Poe, H.P. Lovecraft, Milorad Pavic, Dino Buzzati, etc. É também grande entusiasta da poesia de Baudelaire e T.S Eliot; do cinema expressionista alemão (bem como de outros filmes clássicos do cinema de horror); e de música de vanguarda em geral (popular e erudita). Recentemente criou um blog, onde pretende escrever sobre diversos temas.

O livro dos autores pode ser acessado aqui: (https://kotter.com.br/loja/o-primeiros-acordes-da-cancao-fatal-alfredo-rubinato-rodrigues-de-sousa-gabriel-rodriguez/)

Minha resenha sobre o livro deles: (https://alvarohauschild.blogspot.com/2019/10/breve-comentario-os-primeiros-acordes.html)