segunda-feira, 18 de maio de 2020

Lustre, Platão e Pitágoras

Rob Gonsalves

Em República 530c-d, Platão se apoia em Pitágoras e sustenta que há duas formas de movimento cósmico e que há, portanto, duas ciências diferentes para compreendê-lo: a astronomia, ciência que adquirimos através dos olhos, e a harmônica (ou seja, a música no contexto moderno), adquirida através dos ouvidos. Ambas estas ciências partem de um mesmo propósito, que é o estudo do movimento, e assim são ciências irmãs.

Esta doutrina que une Platão e Pitágoras e sistematiza a ciência dentro de um amplo conceito de ordem (harmonia) se tornou fundamental para os sistemas filosóficos da antiguidade tardia e particularmente para os neoplatônicos. Plotino, por exemplo, no tratado 2.9 das Enéadas, defende os astros como as únicas entidades intermediárias entre o mundo corpóreo e o mundo inteligível; os astros são nossa porta para o mundo superior, é através deles que podemos compreender a lógica dos ciclos cósmicos. Mas Plotino não defende especificamente a matematização do mundo astronômico; neste tratado, que se intitula “Contra os Gnósticos”, ele visa apontar para a contemplação estética da ordem astronômica, a possibilidade de se enxergar a beleza do mundo superior através da simples observação do céu. Nós não podemos, através da matemática moderna, compreender a lógica desse mundo inteligível; é através da intuição intelectual durante a longa observação, que se “conhece” a natureza divina.

Jâmblico, que foi discípulo de Porfírio, que foi discípulo de Plotino, nos legou quatro livros pitagóricos onde ele constroi um amplo plano pedagógico capaz de fazer elevar as almas presas na matéria até o mundo inteligível; a astronomia e a teologia compõem os níveis mais altos do conhecimento humano; antes delas existem a aritmética e a harmônica, que funcionam como a base teórica para o conhecimento mais alto. Todos os níveis partem de um princípio de harmonia universal que rege o todo, desde a lógica mais básica dos objetos do cotidiano até os grandes ciclos dos astros fixos. Ao longo do trajeto científico, então, o homem ascende de sua condição material até a condição do mundo da eternidade. E por trás das fórmulas matemáticas que certamente se estuda existe o objetivo principal que é o da simples contemplação do universo, a descoberta do divino.

Em torno de 1700 anos depois de Jâmblico, em um momento não menos conturbado da história humana, surge um movimento também não menos preocupado com as sutilezas cósmicas e não menos “ocultista” do que o platonismo era na antiguidade tardia: o Black Metal, que gira em torno da música, mas que se expande também nas artes plásticas e começa a influenciar a filosofia e a política contemporâneas (os tradicionalismos do século XXI). Mas precisamente agora vale a pena citar Lustre, um projeto sueco, como talvez o maior exemplo dessa contemplação dos astros através da música.

Com rara maestria, Nachtzeit (o compositor) consegue aliar o som dos instrumentos com o típico silêncio da contemplação neoplatônica. Usando de sons cristalinos e lentas e repetitivas melodias de base ele transforma em som a imagem celeste dos lentos ciclos dos astros pintalgados de estrelas e planetas compondo massas luminosas e percorrendo órbitas precisas. Um som fresco e noturno que se tornaria inimaginável em um contexto muito social e conturbado pelas disputas políticas, onde a vida se encontra abafada e disforme, desgovernada; pelo contrário, o som de Lustre é para o alto de uma montanha solitária durante à noite sob um céu limpo, gélido e ampla e profundamente estrelado. O nome do projeto, “Lustre”, exprime com genialidade estética o sabor de sua sonoridade, um sabor leitoso, cheiroso, macio, sutil, contínuo, mas luminoso e pintalgado de cristais, exatamente como o céu se apresenta durante a noite limpa. Os elementos se apresentam todos em harmonia, em ordem, como expressão viva e saborosa de natureza inteligível. Poderíamos tentar compreender sua lógica através de cálculos matemáticos, mas jamais alcançaríamos o esboço primordial; por isso nos resta contemplar.

Nachtzeit certamente usou de conhecimentos em teoria musical para construir suas melodias (sem isso nada seria possível), mas o que ele fez foi, através deste conhecimento, buscar exprimir os inexprimível, trazer em matemática musical uma lógica que a ultrapassa e que só pode ser apreendida através da percepção de sua beleza, do êxtase. O conhecimento teórico levou o compositor mais próximo do divino, mas jamais o permitiu alcança-lo por si mesmo; foi com um salto de coragem, uma intuição e a simples contemplação, em sentido neoplatônico, que permitiu-o apreendê-lo e transmiti-lo com sua obra. Neste sentido, Lustre é uma revelação divina, ou então uma salvaguarda ou um receptáculo do divino, similar às Silmarils, feitas por Fëanor ao buscar preservar a essência das Duas Árvores de Valinor antes que elas fossem destruídas por Melkor.

Abaixo, Lustre -- Echoes of Transcendence

domingo, 17 de maio de 2020

A Metafísica do Fumo

Mher Khachatryan

Em defesa de uma economia fundamentada no artesanato, de uma perspectiva sacra sobre os fenômenos da vida, hoje discutiremos uma atividade que poderia ser considerada a culminância de todos os artesanatos. Trata-se de um ritual, de uma experiência religiosa que une a simbologia teológica com o drama da alma humana no interior ou através do sistema cosmológico implícito no símbolo. Pensaremos o fumo, o ato de fumar.

Não é novidade que o fogo tem para o homem uma importância mística desde que o homem é homem. É o fogo que, misteriosamente, oculta os fenômenos, transforma os elementos do mundo e permite seu transporte, sua permanente recriação e restauração. É um elemento ao mesmo tempo destruidor e mantenedor do kósmos. Também não é novidade que, certamente em conexão com esta ideia, desde que o homem descobriu maneiras de dominar o fogo ele mantém a atividade de fumar.

Desde sempre o fumo teve, então, uma forte conexão com a religiosidade; através dele o homem aspirava os espíritos contidos na planta e, com o êxtase do tabaco, entrava em contato com o divino, colocava-se em um Tempo metafísico e vivia um drama cósmico. Foi assim que no xamanismo o ato de fumar teve sua máxima manifestação, até se tornar uma atividade mais secularizada (porém nunca desprovida plenamente de seu significado “profundo”) em civilizações tardias.

Hoje temos uma indústria do fumo, dos cigarros, que investe no vício das pessoas e o objetivo é exclusivamente o lucro, o benefício econômico. A baixa qualidade do tabaco e a banalização do fumo que a produção em série de cigarros produziu levou a uma transformação na atitude do homem diante do fumo. O mesmo ocorre com todas as demais drogas e se expande para a comoditização de todos os aspectos da vida e do mundo, transformando até o próprio sexo em mercadoria e objeto de vício. Isso não deve ser motivo para o desprestígio do fumo, das drogas nem do sexo – é exclusivamente a indústria e o sistema econômico no qual ela se insere que devem carregar a culpa dos problemas de saúde individual e coletivo decorrentes da banalização da vida.

É por isso que vale a pena refletirmos sobre a significação original e real do fumo, que se insere no âmbito do sagrado e é ali seu lugar próprio. Em cada uma das tradições ao redor do mundo, evidentemente, o fumo adquiriu uma explicação e uma sistematização teológica distinta, própria da etnia local; as formas do sagrado são fluidas, mas não são fruto do acaso: elas seguem o logos da interconexão da psique individual do homem (e do povo local que guarda uma linguagem determinada) com o divino que há no mundo. Não temos a competência nem o tempo para discuti-las todas aqui, mas, emprestando da simbologia cristã, refletiremos sobre um aspecto preciso.

O tabaco, para que possa ser fumado, requer um cuidado todo especial. Primeiramente as sementes são selecionadas, classificadas, e então semeadas. Em seguida a semente dá lugar a uma planta, que cresce, se desenvolve, amadurece, até que surge o momento da colheita. Depois disso o tabaco é de novo selecionado, preparado em inúmeros processos de secagem, manuseio, corte e aromatização. Durante todo este processo o artesão está colocando seu pensamento no tabaco, dando desenhos precisos, sabores, textura, para que no fim ele tenha o produto acabado, que é uma conjunção entre seu pensamento e os elementos do próprio mundo. O fumante então adquire este fumo e, em questão de instantes, transforma toda essa arte em fumaça. Ao fumar, porém, ele se extasia com o sabor, e os mais delicados dentre os fumantes farão isso em momentos precisos, em comemoração ou em contemplação, sozinhos e em silêncio durante uma pausa para levar a mente ao longe. Não raro são nesses momentos que cientistas, políticos, escritores, poetas (e artistas em geral), filósofos e místicos têm suas mais aguçadas intuições.

Podemos observar que este processo, que não é senão “o processo do inútil”, tomando em conta que todo trabalho foi feito para virar fumaça, revela ao mesmo tempo o drama humano e o drama divino. A história já é capaz de mostrar suficientemente como o drama humano também não passa de uma semeadura e de um trabalho permanente que, ao fim e ao cabo, vira fumaça; grandes civilizações e construções arquitetônicas, línguas imperiais, imperadores, tudo isso nasce, brilha e é de novo engolido pelo fogo da história.

Mas, no contexto do drama divino, também o kósmos, para algumas vertentes greco-romanas e cristãs, é devidamente pensado por um Demiurgo, que trabalha primeiramente semeando as almas, proporcionando elementos e riqueza, abundância para o crescimento, até que finalmente o fogo surge também de cima para arrebatar a criação de volta para o criador, em um momento de êxtase. Através do fogo, o criador inspira de volta para si os elementos fundamentais do kósmos, “fumando” sua criação. Do pó ao pó. Todo aquele processo de criação e desenvolvimento do kósmos está a serviço de um propósito maior e misterioso; a vida está submetida à morte, é verdade, mas como sua própria essência. A abundância graciosa da vida revela em formas a abundância do criador; a graciosidade da vida, que morre, que vira pó, apenas se recolhe em sua origem em um ato de sacrifício. Tal como o criador se sacrificou: com esmero, com seu trabalho contínuo, deu vida à sua própria alma ao criar o mundo, e tudo isso para depois arrebata-la.

A vida é inútil, os fenômenos envolvidos nela não nos são úteis, e quando tentamos dar uma utilidade para eles surge o fogo e nos elimina. A vida é feita para se mostrar, para brilhar, é a um gozo espiritual e cósmico que ela “serve”, inalcançável para nossas ambições mesquinhas. O termo “fenômeno” vem do grego e significa “aquilo que se mostra”; assim, os fenômenos que compõem a vida são simplesmente “mostrações”, “revelações”. São imagens de algo. Da mesma maneira, os elementos que compõem o tabaco apenas revelam um sabor divino e invisível, intocável; ao se fumar este tabaco ocorre a concretização da obra, sua realização final, isto é, o fim para o qual ela foi feita aconteceu. Assim o mundo, ao ser consumido pelo fogo, está realizando sua razão de ser. Sua razão de ser não é simplesmente morrer, mas retornar ao criador tendo cumprida sua participação no Grande Espetáculo.