sexta-feira, 3 de maio de 2019

A Felicidade no Pensamento

Carl Spitzweg

Não sou um estudioso de Aristóteles, mas não é preciso ser especialista para saber que é a ele que devemos o conceito ocidental de contemplação. Para Aristóteles, a grande questão que move o homem é a felicidade; ela é o objetivo, a causa final do ato de viver. Nós nascemos em busca da felicidade, nós vivemos para sermos felizes.

Mas então a grande questão que surge é: “o que é, então, a felicidade?”, o que constitui, concretamente, a felicidade. Estaria ela na posse de bens? No poder político? Na fama, no sucesso ou na glória? Para Aristóteles, em nenhum destes lugares a felicidade está. Mais do que isso, ela não está em lugar algum, não está reduzida a uma quantidade de coisas, mas é, pelo contrário, um modo de ser, de viver. A felicidade não é um fim concreto que se possui em um dado momento ou se circunscreve sobre nossos braços; pelo contrário, ela é o próprio ato contínuo e ininterrupto de busca pela felicidade. A felicidade está no busca-la, não no alcança-la. Essa busca se traduz como conhecimento, pois é no conhecer as coisas que o homem se coloca no interior dessa busca e o permite vislumbrar a natureza das coisas. Contemplação em grego é theôria, de onde surge o conceito moderno de ciência, mas também de contemplação religiosa. Para Aristóteles e os antigos em geral, ciência e religião não eram coisas distintas, mas aspectos de um mesmo fenômeno, ou antes disso: um modo de ser, de viver – diria ainda Heidegger, um modo de existir autenticamente, na visada dos deuses.

Assim, para Aristóteles a felicidade é o conhecer, ou o contemplar. A vida teorética está no nível mais alto da hierarquia humana, sendo também o modo de ser mais feliz, ou, para usar o termo grego eudaimônico, o modo de ser “de [mais] bom espírito”. Foi daí que derivou o misticismo e a vida religiosa tanto no cristianismo quanto no islamismo, mas também foi daí que surgiu a noção científica do mundo ocidental. O cientista é aquele que contempla a realidade e a admira, e existe exclusivamente para essa contemplação. É um sacrifício para a beleza celeste e terrena. A ciência nasceu desse espírito religioso e só mais tarde, muito mais tarde, ela passou a ser utilizada para outros fins, seja para a tecnologia ou até mesmo para o enriquecimento. E mesmo assim, ainda nos nossos tempos de profundo distanciamento desse ideal antigo e sacro, a ciência reserva (e sempre reservará) lugar para o sacrifício teorético. Não poucos são os cientistas, enclausurados nas universidades, que mergulham apaixonadamente nas grandes questões da humanidade, seja na história, na biologia, nas letras, ou ainda e acima de tudo: na própria filosofia. E estes homens, no geral, costumam brindar a todos nós obras impecáveis, magníficas, de uma beleza que jamais deixaria de assombrar as almas delicadas e purificadas, afeitas também à vida teorética.

Para Platão, os cumes da existência humana não estavam reservados exatamente aos homens enclausurados e entregues à vida teorética. Para ele, a política era fundamental, e a noção de uma vida feliz (se é que ela existia para Platão) estava certamente mais ligada à noção de justiça política. O objetivo não era tanto a felicidade individual, mas o serviço feito aos deuses, de acordo com sua vontade; e a justiça representava esse fim na terra, ou melhor: na pólis, a cidade-Estado. Mas, embora ele não tenha enfatizado a vida contemplativa, também é na República que o nível mais alto da hierarquia é aberto aos filósofos, que na sua época não significava – obviamente – pessoas com “diploma”, mas pessoas sábias. Pessoas sábias, porém, como nos mostrava Sócrates nos diálogos de Platão, eram pessoas que, em não sabendo, buscavam saber. E o motivo que tornou Platão a verdadeira inspiração para as especulações da astronomia e das ciências em geral talvez seja ainda o fato de que é “no além”, e não na terra, que segundo ele se alcança o que podemos compreender por felicidade. É no mundo das Formas que encontramos o Bem e o Belo, os paradigmas ontológicos de todas as coisas que são aqui na terra, e que são de modo inferior, nem tão boas nem tão belas quanto “lá em cima”. De modo que também Platão tenha estabelecido como prioridade uma vida contemplativa.

Não por acaso, foram os neoplatônicos, como Plotino e Porfírio, que, utilizando-se também muito das teses aristotélicas, organizaram-nas em um modelo platônico regido pela noção de justiça e pela metafísica das Formas no “outro mundo”. A vida contemplativa se tornou prioridade, e por vezes até hostilizava os horrores da política. Mas a contemplação se inseria em um sistema paidêutico abrangente, que reunia todas as esferas da vida e toda a hierarquia política em um conceito cosmológico de justiça, que os homens – os filósofos – passaram a aprender dos deuses. E aprendiam através da oração, da piedade e da fé em relação aos deuses, de uma vida estritamente religiosa. Mas assim como aprendiam dos deuses a justiça, também aprendiam as leis da aritmética, da gramática, da lógica – que derivaram áreas da ciência como a geometria, a música, a astrologia. E assim a ciência, inspirada sempre por uma relação religiosa com o kósmos, foi se desenvolvendo através da Idade Média, de onde surgiram as noções de “artes liberais”, “artes régias” ou “artes sacras”.

A ciência sempre foi algo que deveria existir por si mesma. De novo segundo Aristóteles, uma coisa tem um valor máximo e pode servir de objetivo apenas se ela tem um valor intrínseco, i.e., se ela não está sujeita a outro fim que não ela mesma. A vida teorética não está sujeita a nada, ela é pura contemplação, ao contemplar o contemplador não visa preencher ou realizar outro fim que não a própria contemplação. Então, se a contemplação estivesse sujeita a outra coisa, ela perderia seu valor. Por isso que a contemplação e a ciência, para Aristóteles, Platão e os medievais, jamais deveriam estar sujeitas a outro objetivo que não a própria contemplação ela mesma. Portanto, a noção de que alguma coisa só tem valor quando ela serve, por exemplo, ao mercado, ou às “riquezas”, para um grego, um homem antigo em qualquer lugar do mundo, ou mesmo um homem medieval, soaria no mínimo cômico, senão irônico. De um modo ou de outro, soaria assim: satânico. Pois é através da contemplação que contatamos os deuses e recebemos sabedoria, o bom e o belo, a justiça etc.; se a contemplação for sujeitada a um fim exclusivamente terreno, titânico ou material, ela estará servindo não aos deuses, mas a outro tipo de “coisa”, a saber entidades “subterrâneas”, obscuras, de algum modo inimigas, que têm o caráter de desviar a mente humana, distraí-la para fins estranhos e perigosos.

Para Jâmblico, por exemplo, um neoplatônico importante, que influenciou largamente o desenvolvimento científico e religioso no Ocidente e no Oriente Próximo, a matemática pitagórica, que compreendia o núcleo duro de toda atividade científica, servia para purificar a alma dos elementos obscuros, “terrenos”, a fim de torna-la leve, límpida, e fazê-la ascender aos deuses. As ciências tinham em geral um aspecto ao mesmo tempo religioso, pois os princípios científicos ensinavam também a teologia e inspiravam ao bom e belo transcendente, e tinha também um aspecto ético/político, pois o aprendizado funcionava como uma paideia capaz de tornar mais sutil os hábitos e os pensamentos do aluno, que, na medida em que ascendia espiritualmente, também ascendia politicamente rumo a níveis superiores na hierarquia humana.

Aqui, de novo, e assim sempre, o objetivo da ciência está voltado à contemplação pura, à teoria, à especulação, à kalokagatia ou o bom e belo como ideal e modo de vida, como felicidade. Nada de “aplicação” e muito menos de “gerar riqueza” para um tal de “mercado”. O mercado é o reino de Mammon, e não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo.