quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O sacrifício do clássico e a facilidade da subcultura televisiva

Rob Gonsalves

Um dos grandes males do pós-guerra foi a cultura da televisão. Ela retirou do indivíduo, das famílias, das comunidades regionais e do Estado a liberdade do pensamento, monopolizando os conceitos, os debates, afirmando o que existe e suprimindo o que, segundo as empresas que produzem o conteúdo transmitido, não deve mais existir.

Mas a televisão é apenas um dos elementos e veículos, talvez o maior elemento e o maior veículo, dentro de um grande movimento cultural de dissolução mental, psicológica, social, política, educacional. Se em meados do século XX alguém seria ridicularizado por nutrir esse tipo de opinião, hoje essa ideia se torna cada vez mais uma especulação geratriz de preocupação séria entre pensadores e cientistas sociais. Tornou-se óbvio para todas as classes letradas que o papel da televisão é cada vez mais o de ofuscar o conhecimento com oceanos de bobagens, imbecilizar o jovem, inocular no interior das famílias ideias estapafúrdias que passam a influenciar nas relações internas.

A televisão é sem dúvida um dos maiores motores da confusão e do caos que estamos vivendo hoje. A partir de 2010 a cultura começou a sair da televisão para entrar na internet, é verdade, mas os métodos continuaram os mesmos para a esmagadora maioria dos consumidores de internet e redes sociais: as empresas que antes transmitiam conteúdos pela televisão de tubo migraram para as redes; surgiram páginas na internet divulgando o material, mas também surgiram novos meios de informação com conteúdo pago e acessado pela internet. Quem transmite continua ditando o que existe e o que não existe no universo das ideias de toda uma população, e aquilo que existe sem dúvida é traduzido da forma que convém aos donos das mídias, que também hoje controlam a economia global e ameaçam as bases dos Estados nacionais.

Um livro, por outro lado, é livre de monopólio. O autor sempre incute no livro suas ideias, suas ideologias, disso ninguém escapa. Mas o autor não detém do monopólio sobre o mercado livreiro e, caso não for digno de ser lido, facilmente se pode colocá-lo de lado. Hoje existe, sim, uma tentativa de monopolizar o mercado livreiro, mas esse é só mais um processo dentre os tantos monopólios culturais que existem e que se concentram sempre nos mesmos conglomerados que controlam as grandes mídias de televisão e de rede. O livro, por sua vez, permanece revolucionário, e sua interpretação depende muito do próprio leitor, que participa da história da recepção e da reprodução das ideias que ele leu. É por isso que também os monopólios tentam fazer do mercado livreiro um mercado de bobagens, a fim de ofuscar as grandes obras, os clássicos, e assim distanciar cada vez mais o jovem das grandes ideias. Participam desse show os tais “influenciadores de rede” que não mais querem que os jovens aprendam com Machado de Assis e permaneçam para sempre pessoas imaturas, passíveis dos monopólios culturais que facilmente abocanham os povos quanto mais ignorantes, mesquinhos e irresponsáveis eles se tornam.

Os livros considerados clássicos, por sua vez, não o foram por mero oportunismo dos monopólios ao longo da história, até porque nenhum monopólio dura milhares de anos, se é que dura muitas décadas sem causar destruição em massa e autodestruição. Eles são clássicos porque têm algo de importante a dizer, a mostrar, a revelar para a psique humana aquilo que sozinha lhe custaria, em muitos casos, milhares de anos para se dar conta. Um livro clássico está carregado de conhecimento sobre a natureza humana, e assim sugere reflexões sobre nossos atos, nossos gostos, nossos anseios mais íntimos. Ao fazer estas reflexões e perseguir o mistério existencial o leitor imediatamente se emancipa das amarras culturais que muitas vezes o prende para seu próprio mal. E digo isso não para condenar os costumes populares e tradicionais, pelos quais muitas vezes o jovem se sente ameaçado, mas para condenar a televisão e a cultura que ela promove em detrimento desses mesmos costumes populares. Afinal, qual é a verdadeira prisão em Orwell e Huxley senão a prisão das Big Techs, da televisão e das grandes mídias? Por que uma comunidade luterana do interior de Santa Catarina, onde crianças aprendem a socializar e amar através da dança e do Kerp, ou uma mãe de santo no Rio de Janeiro, que benze os jovens para seu sucesso, seriam exemplos de opressão? Não nos parece então estapafúrdia a ideia de que a expressão do povo, isto é, a tradição e sabedoria popular, seja agente de sua própria opressão? Pois quem fez dos jovens uma revolução contra a cultura popular foram os oligopólios da informação, que passaram a monopolizar a mente deles contra eles mesmos.

O conteúdo de um livro clássico não é diferente daquele expresso pela sabedoria popular. Os elementos utilizados sempre derivam dos ricos símbolos da linguagem usual. As grandes obras não são diferentes dos grandes ensinamentos da sabedoria popular, sendo elas uma reflexão profunda que também passa de geração em geração, de século em século, milênio em milênio. Elas apenas são mais complexas, mais bem arquitetadas pelo gênio, muitas vezes mais profundas e inspiradoras. Mas elas não visam renegar ou rivalizar com a sabedoria popular; pelo contrário, a história mostra que sempre houve um diálogo e uma interdependência muito forte entre elas, mas que acontece livremente do lado de ambas pela atração estética e pelo valor que possuem uma para a outra.

Tomemos o exemplo de Dante Alighieri. A Divina Comédia jamais teria vindo a existir sem a própria experiência de vida do autor, do conhecimento que ele tinha dos mitos cristãos, tanto popular quanto erudito. E a sabedoria popular cristã talvez jamais viesse a ter a noção que ela passou a ter do inferno e do purgatório se não fosse a obra de Dante. E mais uma vez, essa mútua influência nunca foi imposta através de uma máquina monopolista de informação, e sim por intermédio da inspiração que o gênio do autor transmitia, pelo conhecimento profundo da alma humana que sua obra carrega, pelo significado que ele teve para seus leitores.

E estes leitores de Dante, por sua vez, jamais teriam vindo a ocupar seu tempo em uma obra gigantesca e rigidamente talhada em versos sem um certo esforço. Uma obra da magnitude de sua Comédia é muito difícil de absorver. Acadêmicos passam vidas inteiras se debruçando sobre os detalhes mais ínfimos e deles extraindo informações valiosas para uma compreensão ainda mais profunda. É natural que uma obra grande exija dedicação. Tudo que é grande exige. Lembremos que as catedrais góticas da Idade Média duravam séculos até ficarem prontas; gerações inteiras passavam trabalhando em sua arquitetura até que a construção adquirisse seu formato “perfeito”. Nada de grande se faz com mordomia, nada de grande se faz para ser usufruído na mesma hora. Tudo o que é grande requer elaboração, estudo, reflexão, experiências, e isso significa muitas vezes sacrifício, solidão, dor e sofrimento.

A cultura da televisão quer nos privar das profundezas, quer nos vender o fácil e barato que no fim acaba saindo bem caro. Essa cultura, ou antes subcultura, quer nos privar da nossa natureza humana, de nossa alma, do gozo do verdadeiro e eterno amor, que é sagrado e dura muito mais que uma vida. Precisamos combate-la, e um meio de fazer isso é revitalizarmos a leitura dos clássicos da literatura, da filosofia e da história. Tudo o que é grande requer sacrifício, e está na hora de optarmos pela grandeza e destruirmos a mediocridade; está na hora da águia pisar e bicar a serpente maligna.


*Álvaro Körbes Hauschild, nascido em 1992, é doutorando em Filosofia Antiga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também fez graduação (2016) e mestrado (2019); traduziu Geopolítica do Mundo Multipolar (2012) e Contra o Ocidente (2013), obras do filósofo e geopolitólogo russo Aleksandr Dugin. Atualmente se dedica a uma tradução comentada dos Oráculos Caldeus diretamente do grego antigo e lançará pela Kotter o livro “Anamnesine” (2021).

Publicado originalmente no blog da Kotter (01/02/2021) [https://kotter.com.br/o-sacrificio-do-classico-e-a-facilidade-da-subcultura-televisiva-alvaro-hauschild/]

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