sexta-feira, 9 de junho de 2017

(POEMA) O Vale Remoto

Hans Dahl

No vale remoto, em meio a silentes
picos nevados cobertos por coníferas
que guardando verdejam secretos sonidos
ouvidos por todos e por flores e abelhas,
desce um riacho tilintando suave
percorrendo os campos de flores repletos,
e de musgos, e liquens, gramíneas completos,
e descendo do alto se perde e se vai...

Apolo do alto, iluminando secreto,
toca dourado no campo sozinha
fiel e farta macieira amorosa
dando frutos a mãe generosa
à bela Urânia, amor d'uma vida...

Urânia, Urânia, corpo celeste,
de estrelas longínquas é feita tua pele;
teus olhos brilhantes o riacho te deu
das águas frescas que o céu as bebeu;
longos, muito longos, finos e leves
são de ouro os fios tecidos,
no ar dançando e mostrando o caminho
a mim, que longe poderei me perder do paraíso,
da tua alma feitos, luminosa e cristalina...

Mas desce correndo também do castelo
para os campos, até nós, se misturando
e perdendo entre as flores mirantes,
e seus risinhos com o tilintar fresculento
do riacho se confundindo e fundindo,
desce ali graciosa nosso fruto
saído do ventre celestial, do tudo,
desce ali Ágata, a da beleza detentora
para quem mil olhos com mil lágrimas
suficientes não seriam na alegria redentora.

No alto do vale remoto, por Apolo desenhado
guincha sobrevoando um pássaro observado. [09/06/2017]

segunda-feira, 1 de maio de 2017

(POEMA) Florzinha sob o Caos

Arno Brecker

Ó doce florzinha,
tão pálida e pequenina,
tão frágil, ó menina,
qual é o segredo que germina
e existência te dá,
e resistência também,
neste mundo onde vão e vêm
a dor, a morte, a impermanência e o caos?

Ó minha anjinha,
tão sensível e tão levada,
quando os ventos mornos
te levarem para longe
e então te abandonarem,
o que farás em meia-estrada
sozinha, indefesa e machucada?

Ó livre andorinha,
princezinha dos céus,
por que te vais sempre mais longe
em busca do alaranjado,
no horizonte açucarado,
se o sol é o mesmo todo dia
e encontrarás apenas a noite?

Ó transparente cristal,
por que te maculas te afundando
na lama, te fazendo perder
em movediça areia decaindo,
para onde te encontrar ninguém
poderá, nem mesmo querendo?

Ó filha de Selene,
luz fria e tenebrosa,
ó minh'alma manifesta
em doçura amorosa,
assim tão longe não te percas,
assim tão grave não te machuques,
assim tão feio não de mudes,
assim tão dolorsamente
não me mates. [01/05/2017]

terça-feira, 14 de março de 2017

(POEMA) Drowned Together

John Martin

The skies will fall down
and we will be drowned
by the angels blood
in the greatest flood;
so thou wilt feel how
everything'll be love.

This liquid thou drinkst
that falls from the spring,
from the heart of angels,
oh... the fire of angels,
'll unite what our rings
'nly representated.

As will our two souls
our flesh will dissolve
in the red dark see
in order to be
rescued from the cold
'f living dual-being.

From the dispair of...
of living alone
each one by its side
thou, darl(ing), become(st) mine
and it'll be 'nough
'cause I, sure, am thine.

And I will be thee,
and thou wilt be me,
and we will be one
'cause we'll be the blood
that once had us killed
and now made us live
in the eternity. [14/03/2017]

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A Sabedoria dos Mitos e Contos de Fadas


Há um vício nas atuais doutrinas e nos atuais estudos sobre os mistérios, sobre o gnosticismo, religiões e seitas esotéricas que imita exatamente aquilo que julgam combater: o racionalismo. Perdemos o contato com a realidade, esquecemos o sentido simbólico da linguagem, e passamos assim, senão a interpretar as doutrinas literalmente, ao menos a concebê-las como sistemas abstratos e dogmáticos. Desse modo, a Idade de Ouro se torna um dogma como qualquer outro, tal como o céu abstrato do cristianismo, uma "realidade" inventada; perdeu-se a noção de que a Idade de Ouro, por exemplo, sendo um símbolo de significados múltiplos, pode querer dizer algo sobre o processo histórico concreto, sobre o desenvolvimento intelectual e moral do homem, sobre a constituição natural e originária de um mundo que não se distingue do nosso, cuja constituição apenas tenha sido esquecida enquanto conteúdo de cognição.

Muito se fala sobre símbolos, mitos, entidades, até fazem-se relações, mas nunca se aponta o sentido concreto, que é realmente o que importa, sem o qual tudo não passa de palavras vazias, típicas inclusive do nosso sistema acadêmico, que fala das coisas sem realizá-las. Em suma, é racionalismo puro, pura abstração vazia e sem conteúdo; sinais sem significado, sem a referência subjacente. Em face disso, queremos fazer uma ode aos contos de fadas, e mostrar que eles são as formas mais puras e imediatas de um "esoterismo" milenar; não lidam com abstrações exageradas, seus símbolos são facilmente compreensíveis, e sua sabedoria é inesgotável para filósofos e contempladores. Aliás, há quem diga que os contos, muitos dos quais foram reunidos pelos irmãos Grimm na Europa Central, são mais antigos que os mitos mediterrâneos dos gregos e que a Bíblia[1]; o que é muito crível, em vista de sua estrutura primitiva e seus símbolos, típicos de civilizações tão antigas quanto a hindu. Esses contos de fadas não são invenções abstratas, mas relatos recolhidos no seio do povo, muitas vezes habitantes de florestas e vales remotos, onde a sabedoria dos antepassados permanece repleta de vida e significa, quase intocada; os contos dos irmãos Grimm, por sua vez, refletem um frescor e uma naturalidade, uma clareza, muito familiares a um homem germânico, cujo espírito, o Geist, pertence a vales orvalhados, picos gelados e mulheres brancas, sorridentes, graciosas e luminosas, que colhem flores no campo como uma flor reunida com suas irmãs.

Prestemos atenção em um conto curto, porém riquíssimo de significado, sobre o qual nosso comentário, pobre, apenas terá o interesse de se demorar sobre a riqueza sábia dos antigos, que nunca deixará de ter algo de grande e profundo a nos ensinar:

A Abelha-rainha (Die Bienenkönigin)

Era uma vez, dois filhos de um rei foram para uma aventura e enfrentaram uma vida selvagem e bruta, de modo que não voltariam mais para casa. O mais novo, o qual chamavam de Bobo, aprontou-se e foi a procura dos seus dois irmãos; mas, assim que ele finalmente os encontrou, eles zombaram dele que ele, com sua simplicidade, queria dominar o mundo, enquanto eles dois não podiam se virar muito bem, mesmo sendo mais sábios. Mas eles então retomaram, os três, a viagem e encontraram um ninho de formiga. Os dois mais velhos queriam fuçar e ver como as pequenas formigas, angustiadas, rastejar-se-iam e carregariam seus ovos, mas o Bobo disse: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os incomodem". Então eles seguiram em frente e viram um lago, onde nadavam muitos, muitos patos. Os dois irmãos queriam pegar um punhado deles e assar, mas o Bobo não deixou e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os matem". Por fim, encontraram um ninho de abelha, onde tinha tanto mel que escorria pelo tronco. Os dois queriam pôr fogo de baixo da árvore e sufocar as abelhas, de modo que assim poderiam levar o mel embora. Mas o Bobo se manteve empacado e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os queimem". No fim, os três irmãos chegaram em um castelo, onde no estábulo estava cheio de cavalos de pedra, e não havia pessoas por perto, e eles foram entrando por todos os salões até que bem lá no final tinha uma porta com três fechaduras; pela fechadura da porta tinha uma criança que se podia ver no quarto. Eles viram ali um homenzinho cinzento que estava sentado na mesa. Eles o chamaram uma vez, duas vezes, mas ele não ouviu, então o chamaram pela terceira vez, e ele se levantou, destrancou a porta e veio para fora. Não falou uma palavra, mas os guiou a uma mesa farta, e conforme eles tinham comido e bebido, ele levava cada um para dormir. Na manhã seguinte veio o homenzinho cinzento para o mais velho, acenou e o guiou a uma mesa de pedra sobre a qual haviam três missões por escrito, através das quais o feitiço sobre o castelo poderia ser quebrado. A primeira era: na floresta, sob o musgo, estão jogadas as pérolas da filha do rei, que são mil em número, que devem ser recolhidas, e se quando o sol tiver caído ainda faltar uma única, aquele que foi procurá-las se transformará em pedra. O mais velho partiu e ficou o dia inteiro procurando, mas o dia chegou ao fim e ele só tinha recolhido uma centena; então aconteceu que, assim como ele estava de pé diante da mesa, se transformou em pedra. No dia seguinte entregou a aventura ao segundo irmão, que não foi muito melhor que seu irmão mais velho e, tendo encontrado duzentas pérolas, foi transformado em pedra. Por fim, chegou a vez do Bobo; ele procurou no musgo, mas estava muito difícil encontrar as pérolas e estava muito devagar. Então ele se sentou sobre uma pedra e chorou. Veio então o rei das formigas, de quem ele tinha salvo a vida, com cinco mil formiguinhas, e não durou muito para que os bichinhos encontrassem as pérolas. A segunda missão era encontrar a chave para o quarto da filha do rei, que estava perdida no lago. Quando o Bobo foi para o lago os patos, que tinham sido resgatados por ele, se aproximaram nadando, mergulharam e trouxeram as chaves lá do fundo. Mas a terceira missão era a mais difícil: das três filhas do rei, que dormiam, ele deveria apontar qual era a mais nova e mais amável. Elas eram perfeitamente parecidas e não se distinguiam em nada, a não ser pelo fato de que, antes de terem ido dormir, elas tinham comido doces diferentes; a mais velha, um pedaço de açúcar, a segunda, um pouquinho de xarope, e a mais nova, uma colher de mel. Veio, então, a rainha das abelhas, que o Bobo tinha protegido do fogo, lambe a boquinha de cada uma das três; no fim se senta sobre a boca daquela que tinha comido mel, de modo que o filho do rei pudesse saber quem era a certa. O feitiço foi quebrado, todos os que dormiam foram acordados, os que tinham se tornado pedras voltaram a suas formas humanas. E o Bobo se casou com a mais nova e mais amável e se tornou o rei depois da morte do pai dela; mas seus dois irmãos receberam as outras duas irmãs. (Tradução nossa da versão de Knaur, 2012)

Sem racionalismo, sem as inférteis análises do "sistema" simbólico, sem desejar explicar este maravilhoso conto e esvaziar, assim, seu significado, limitemo-nos a debater um pouco sobre o que ele nos diz e o que dele podemos apreender. Uma criança certamente perceberá coisas que um adulto pode muito bem passar por alto e não notar; mas há tanto a se absorver deste conto que pessoas diferentes vão provavelmente observar detalhes diferentes, não se contradizendo, mas se complementando em suas observações.

Podemos notar, por exemplo, que dos três irmãos, o único que foi capaz de levar a cabo as missões recebidas, embora tenha sido muito inexperiente na vida, foi o mais novo, chamado de "Bobo" pelos demais. Eis aqui um tema que nos lembra Dom Quixote, o mais tolo dos cavaleiros, mas também o mais valente e o mais sutil dos homens. A fim de suprir desejos superficiais, os irmãos mais velhos se ocupam da técnica e da brutalidade para derrubar os obstáculos à sua frente; o mais novo os impediu de tamanho pecado, o qual eles ouviram e respeitaram, e o qual terão motivos para agradecê-lo mais tarde por isso. Notemos aqui que é a inocência (a "tolice", aos olhos dos utilitários) quem foi capaz de cavar mais fundo nas leis da natureza, não com pá, mas com o coração. O conto nada nos diz sobre as percepções subjetivas de cada um (desnecessárias), trata-se de um conto antigo e de caráter objetivo, mas podemos imaginar que o mais novo teve seus motivos ocultos para salvar os bichos da malícia humana; sabemos o que ele sentiu porque também agimos assim quando amamos algo ou alguém, e também agimos como os outros quando somos estúpidos e, de tanto pensarmos em suprir desejos nossos, passamos por alto sem notar as sutilezas do mundo que não nos pertence enquanto mero objeto. A inocência, aqui, aparece em uma criança, não porque só a criança é inocente, mas porque a vida mecânica do mundo adulto nos ensina a corrupção do coração humano.

Não que não se deva matar; nós matamos para comer. Mas no caso deste conto (e é muitas vezes o nosso caso) não havia necessidade para tanto. Os irmãos queriam apenas fuçar e incomodar as formigas, não tinham necessidade de matar patos nem pôr fogo em uma colmeia; não estavam famintos, e o conto mostra ainda, depois, que foram todos levados a uma mesa farta. Aqui, os "obstáculos" a serem derrubados a fim de obter os objetos do desejo demonstram serem contornáveis, trazendo à luz a lei profunda da natureza, que a tudo contorne e supera sem destruir. Tivessem os dois mais velhos desrespeitado o menor e atacado os bichos, não teriam chegado ao castelo e às farturas. Essa ideia de recompensa é reforçada, no final, quando os irmãos recebem as outras filhas do rei; eles não eram tão sutis quanto o menor, mas foram sutis o bastante para perceber a malícia dos seus desejos e abortar as ideias toda vez que o mais novo aconselhava. A natureza oferece farturas a quem souber respeitá-la, mesmo que não saiba amá-la, como é o caso dos dois irmãos. E a quem souber amá-la terá para si o amável também: a mais amável filha do rei é uma oferenda sagrada que a natureza oferece às almas de ouro, que no amor se fundem com ela, a mãe-terra, como em uma mesma essência. Não há, notamos, subjetividade no mais novo, nem sua contraparte objetividade (há nos mais velhos: o uso da técnica para atacar os bichos concebe um sujeito, o agente, e o objeto, o mundo, de quem deve ser retirado um bem para suprir unicamente os primeiros), há um modo de vida imparcial e, nas nossas palavras modernas, místico, de unidade com a natureza, portanto familiaridade, proximidade, piedade e, por fim, o amor silencioso e profundo. O mais novo via na natureza um "pedaço" de si mesmo, era a ordem do todo que lhe importava, e o todo inclui em um mesmo o mundo e ele próprio, o Bobo.

Só o amor místico, a inocência quixotesca, é capaz de eliminar o feitiço que recaiu sobre o mundo e transformou os homens em pedras. Ainda dizemos quando alguém é demasiadamente frio: "ele é uma pedra", ou "tem um coração de pedra". Sabemos bem o que isso quer dizer, embora o termo atualmente seja usado para muitas situações diferentes, e nem sempre é referido a homens impiedosos. No caso do conto, aqueles que não se uniram à fluidez natural do mundo foram transformados em pedras, jogados para dentro de sua subjetividade, abandonados, expulsos da vida orgânica. O nosso mundo moderno, aqui, é representado pelos dois irmãos, com a exceção de que o mundo moderno, sejam os conselhos que recebe, jamais poupa a natureza, a vida e a inocência -- com a presença do moderno, não teria havido, no conto, o respeito à autoridade do irmão "tolo", os bichos teriam sido maltratados e o feitiço jamais teria sido quebrado. É o que acontece nesse nosso mundo há vários milênios. Em se tratando de "tolice" redentora, citamos mais um mito de Percival, um dos cavaleiros da Távola Redonda, narrado por Eliade:

Lembramos a misteriosa doença que paralisou o velho Rei, detentor do segredo do Graal. Aliás, ele não era o único que sofria; tudo em torno de si desabava, desmoronava: o palácio, as torres, os jardins; os animais não mais se reproduziam, as árvores não davam frutos, as fontes secavam. Inúmeros médicos tinham tentado tratar o Rei Pescador -- sem o menor resultado. Dia e noite chegavam os cavaleiros, e todos começavam por perguntar as novidades sobre a saúde do Rei. Um único cavaleiro -- pobre e desconhecido, até um pouco ridículo -- permitiu-se ignorar o cerimonial e a cortesia. Seu nome era Percival. Sem levar em conta o cerimonial da corte, ele se dirige diretamente ao Rei e, aproximando-se dele, sem nenhum preâmbulo, pergunta-lhe: "onde está o Graal?". No mesmo momento, tudo se transforma: o Rei levanta-se do seu leito de sofrimento, os rios e as fontes começam a jorrar, a vegetação renasce, o castelo se restaura milagrosamente. As poucas palavras de Percival tinham sido suficientes para regenerar toda a Natureza. Mas essas poucas palavras constituíam a questão central, o único problema que podia interessar não só ao Rei Pescador mas também ao Cosmos inteiro: onde se achava o real por excelência, o sagrado, o Centro da vida e a fonte da imortalidade? Onde se encontrava o Santo Graal? Ninguém havia pensado, antes de Percival, em formular esta pergunta central -- e o mundo morria por causa dessa indiferença metafísica e religiosa, por causa dessa falta de imaginação e ausência de desejo do real. (Imagens e Símbolos, Martins Fontes, julho de 2012, pp. 51-2)

Neste relato de Percival vemos elementos e dramas muito parecidos com os do conto que abriu este nosso texto: uma figura simples, "pobre", que não conheceu os caprichos da corte, repleto de virtude e fé na experiência e no mistério da vida, quebra o feitiço, ou melhor, cura a doença incurável do Rei, que é a mesma que se abate sobre a natureza. O misticismo neste mito está implícito na fé de Percival, uma fé primitiva e cheia de um frescor valente, jovem, luminoso. Neste aqui Percival não se torna um Rei, mas traz um Rei de volta, o que se equivale, visto que o Rei não é uma pessoa, mas um elemento místico que pertence à Natureza.

No caso do conto de fadas narrado aqui, o Bobo herda o trono, a coroa, se torna o rei. Quer dizer que o reinado, que pertence à natureza, é uma função da própria natureza, e só aquele que reiná-la, ao invés de corrompê-la, portanto guiá-la e protegê-la, deve se tornar, realmente, um rei, um protetor, um pai. A natureza oferece a cada um o que é devido, e aqui podemos lembrar a doutrina aristotélica dos lugares naturais, em que cada ser tem seu lugar natural; Aristóteles certamente absorveu em sua doutrina uma sabedoria antiga, mas a corrompeu, a racionalizou, e o "lugar" se tornou meramente um "espaço", um ponto em um mapa cartográfico. Voltando ao conto, o lugar devido de uma alma que protege é o reinado -- há atividade por parte da alma que voluntariamente protege a natureza, e passividade, mas também um movimento complementar que retribui imediatamente, não moralisticamente, mas eroticamente (a proteção é por amor, e amor é proximidade e união, portanto diálogo profundo), por parte da natureza. A mesma passividade encontrada na natureza está implícita na mulher, no caso das filhas do rei, que por ser identificada à natureza e oferecida ao Bobo como que algo de si mesma, a natureza lhe oferece um pedaço de si, um cristal da sua essência. E a mulher é um cristal, um mineral do cosmos, um tesouro. O cristal mais puro dos três que o rei tinha alcançou sua contraparte devida.

No mundo moderno estas leis naturais não funcionam, pois estão rompidas em sua continuidade por irmãos maus que corrompem a natureza. Os três irmãos só alcançaram o castelo e o feitiço só foi quebrado porque o mal não chegou a ser lançado; nós modernos, pelo contrário, não temos a chance de pôr a prova a natureza, de esperar dela o que nos é devido, porque ininterruptamente tentamos arrancar dela o que queremos. Antes mesmo de sairmos à floresta já estamos transformados em pedras brutas destruidoras, em velhos doentes. Na modernidade, a autoridade só é respeitada, seja boa ou ruim, ao ser tomada pela força e pela brutalidade, e só a força tem autoridade, o caráter já não conta mais, a sutileza, a profundidade, a sabedoria, nada disso é reconhecido, nem mesmo respeitado. E aqui o conto nos ensina algo mais, nos dando previsões dos tempos, de que só há a possibilidade de reconciliação com a natureza, e da obtenção do nosso lugar no mundo, caso nos atentemos aos princípios metafísicos disponíveis de imediato no mundo e na experiência humana, que nos apresentam os deuses e nos iluminam nosso união originária com a natureza; o desenvolvimento do caráter não é algo que acontece na abstração, no simples "dever" normativo e imposto, mas está intimamente ligado à ordem existencial do mundo apresentada nas relações naturais: na contemplação da beleza e harmonia do mundo, na hierarquia do kósmos, que também são a beleza e harmonia do homem e das relações humanas, a hierarquia que distingue o lugar de cada um na sociedade -- é na natureza que observamos a eterna e contínua colaboração e participação das partes complementares em um todo, um mesmo único, para todos. O mundo moderno só voltará a reconhecer a ordem humana quando se voltar para as sutilezas da natureza, pois nela estão as chaves para quebrar o feitiço, e só será possível encontrar estas chaves quando mudarmos nossa maneira de tratá-la, pararmos um pouco a fim de observá-la e descobrir nela os mistérios e as respostas pelas quais ansiamos no íntimo. É a própria natureza quem nos trará as chaves ao sentir que podemos recebê-las, porque já estamos de ouvidos abertos e podemos ouvi-la cantar -- e é sutil, miúdo, muito frágil o canto dela.

Como podemos perceber, um conto de fadas tem muito a nos ensinar, tanto sobre moralidade, sobre relações humanas básicas, sobre as emoções humanas, quanto sobre metafísica e ciências mais avançadas. Mesmo assim, estamos certos de não ter esgotado este conto, há muito mais a se falar e pensar sobre ele; mas mesmo que investíssemos em discursar a fim de esgotá-lo, não teríamos sucesso; o conto não apresenta uma divisão simbólica artificial, ele não é construído arbitrariamente com partes individuais, avulsas, passíveis de serem distinguidas. Pelo contrário, cada "parte" dele está a serviço do todo, da ideia do todo, e somos nós que fazemos o esforço de recortá-lo a fim de salientar certos valores que nos são transmitidos inseparavelmente com todos os outros por inteiro, intuitivamente. O conto fala uma linguagem intuitiva, de apreensão natural por parte do Geist -- os valores são introduzidos no conto pela sutileza e pelo Geist do povo no seio do qual o conto foi formado tradicionalmente; e é o mesmo indivíduo pertencente ao povo, em cujo seio também queima o Geist popular, capaz de apreender o conteúdo implícito na linguagem discursiva, mas claro, luminoso, quando atinge a imaginação humana. A imaginação trata de interpretar intuitivamente aquilo que está por trás das meras palavras e é engastado pelo Geist do qual ela mesma é feita. Só ela, no homem, tem as chaves necessárias para a compreensão da natureza e da realidade como um todo. Não são as barafundas dos cientistas, mas a imaginação e o Geist que carregam as chaves do conhecimento e dos mistérios da vida.

O conto é um fenômeno vivo e fala por si, por isso dispensa explicações. Se a arte moderna se obrigou a explicar suas "obras" é porque não é mais arte, mas pura técnica -- ela perdeu a linguagem do Geist, que, não obstante, permanece viva nos contos de fadas (não aqueles corrompidos pela Disney, que transformou as histórias, imprimindo novos e decadentes significados em questão de minutos e caneteadas arbitrárias em laboratórios, mas os antigos e originais formados durante milênios de experiência e observação humanas, que falam a linguagem do ser e transmitem o logos). E, por falar a linguagem do Geist, não há contra-indicações, e tanto as crianças quando os adultos, tanto o filósofo quanto o agricultor, são capazes de compreender. Aqui notamos uma citação de Hayao Miyazaki, diretor de animes muito interessado em contos japoneses e até ocidentais, que reproduz um pouco o que estamos a dizer: "uma vez uma mulher que trabalha na produção [dos animes] me contou que as crianças devem assistir coisas que elas não compreendem no momento, mas compreenderão mais tarde -- ora, eu nunca concordei com isto". Miyazaki também pensa que o que se pode saber da vida se pode saber a qualquer momento, independentemente da educação recebida, porque não é a mente racional que conhece, mas o coração humano ou a alma humana, que falam outra língua e compreendem outra língua, uma língua silenciosa e que nos atinge imediatamente na alma. Por isso, seus animes silenciam quando os modernos imprimiriam diálogos insossos, e falam através do exemplo, através da demonstração das sutilezas, sem se limitar a imprimir significações precisas e já orientadas por uma interpretação particular. Ao invés de ordenar a contemplação, mostra o que há para contemplar, e deixa nossa alma contemplar por si, ativamente, participando de sua obra. É como presenciar um ritual dionisíaco e místico, onde enxergamos os deuses e os ouvimos falar diretamente à nossa alma, não como telespectadores, mas como participantes do kósmos no qual eles habitam.

Para terminar, deixamos mais uma citação, desta vez diretamente dos "mistérios", do Corpus Hermeticum, que arrematará muito do que dissemos neste texto:

Se você não se fizer igual a Deus, não poderá apreender Deus, porque o semelhante é apreendido pelo semelhante. Ultrapasse todo corpo e se expanda para a grandeza imensurável; supere todo tempo e se torne eternidade: assim você deve apreender Deus... abrace em ti todas as sensações de todas as coisas criadas, do fogo e da água, do seco e do molhado; esteja simultaneamente em todos os lugares, no mar, na terra e no céu; seja de uma só vez um nascido e esteja ainda no útero, seja jovem e velho, esteja morto e além da morte; e se você conseguir segurar todas essas coisas juntas, os tempos e lugares e substâncias, qualidades e quantidades, então você pode apreender Deus. Mas se você subestimar sua alma e fechá-la no seu corpo, se disser "eu não sei nada, eu não consigo nada, eu tenho medo do mar, eu não consigo escalar o céu; eu não sei o que fui nem o que devo ser", nesse caso o que você tem que ver com Deus? (XI, 20, retirado de Dodds, Pagan and christian in an age of anxiety, p. 82).

[1] http://portal-legionario.blogspot.com.br/2016/07/contos-de-fadas-sao-mais-antigos-que.html
[10/02/2017]

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

(POEMA) Um Poema em Curvas

Alfred Guillou

Ó tu, o mais vivo dos poemas,
mais imenso que as tempestades,
que me flagela de saudades
em curvas de belas tormentas!

Ó tu, poema destilado em pétalas
adormecidas em campos elísios,
cujo aroma deveras indizível
não cabe num pedaço de papel!

Ó tu, que meus olhos não conseguem ver,
mas cujo brilho e alegria
embriagaram-se, terríveis,
e minh'alma só a ti consegue ver!

Ó tu, poema que abate e suicida
e transforma o mundo inteiro,
bastando um olhar sorrateiro,
(mas) que'm palavras é rebelde e fugidia!

Ó tu, que arde sem queimar,
que dói sem ferir,
presente sem vir,
que funde e inflama sem beijar...

não traz, então, conhecimento
e muito menos felicidade,
mas inunda c'essa tempestade
o vazio, e traz luz do firmamento! [28/01/2017]

sábado, 31 de dezembro de 2016

(POEMA) "Puro Nervo"

Edvard Munch
Quando da tua bela face,
pálida como a neve,
oprimida de leve
por lânguido tom rosado,

vibram calorosas pétalas,
já sei bem o que dizem
os brilhantes olhinhos
espremidos sob o véu

de lânguida doçura
que, macios e transbordantes
como nunca foram antes,
miram lugar nenhum;

sei muito bem o que dizem
esses passinhos ligeiros,
hesitantes por inteiro,
sem saber para onde ir;

sei o que dizem também
esses bracinhos tensos
sem encontrar talento
para a tranquilidade,
que no ardor da pouca idade
pra lá vão e pra cá vêm;

das mãozinhas suaves,
nervosas, passivas, úmidas,
tu mesmo diz(es): "ó, é puro
nervo!" então teus lábios

para além das palavras,
só com o movimento,
c'o hálito qu' m' alimenta,
clamam pelo inefável

toque do meu calor,
pelo psicodélico mergulho
'm rodopiantes águas, profundas,
do mais perdido amor. [31/12/2016]

sábado, 24 de dezembro de 2016

O Belo, a Experiência da Unicidade

Dragosh Kalazhich
Deus é invisível porque ele é imensuravelmente manifesto.
– São Dionísio, o Areopagita

Em um texto anterior sobre linguagem, tendo discutido acerca do ser e da natureza, a phýsis, pudemos mergulhar na harmonia fluida intrínseca à natureza que permeia todas as coisas, sendo ela o fundamento de todas elas juntas e fundidas num mesmo ser. Agora temos o interesse de discutir outros conceitos e aspectos da mesma natureza, sobretudo a beleza.

O mundo moderno é uma negação da beleza; ele nos apresenta o espetáculo, o show de luzes, um simulacro invertido do belo. E, captando as atenções do público, transforma para ele o que é belo em feio e o que é feio em belo. Vejamos mais de perto como isto acontece:

O espetáculo é uma arte, uma tekhnê, por isso sua essência consiste na separação, na abstração. A arte é um recorte e um isolamento de uma parte da natureza indivisível. O espetáculo é assim um mosaico de formas abstratas que, não cooperando com a fluidez natural, se opõe a ela, buscando permanecer íntegro e intocável no interior do ser como algo alheio a ele. Com isto, cria-se “o outro”, algo que no seio dos fenômenos se apresenta como diferente, mesmo não sendo (uma vez que o recorte é feito sobre a natureza ela mesma). Então surge uma divisão no interior da natureza, cisão que é abstrata porém partícipe da economia dos fenômenos, e por isso mesmo influente – pois, sendo um simulacro, é uma imagem que falseia o real para aqueles que estão dentro (como os homens, que estão dentro da natureza e enxergam tanto a phýsis quanto a tekhnê).

Fundamentalmente falando, tudo é phýsis. A tekhnê é só um simulacro feito a partir da própria phýsis, um simulacro que busca contorcer e destruir a natureza da qual ele provém; é algo que pretende fazer do produto da natureza algo que não está permitido em seu logos, tal como o diabo busca construir o mal dentro da criação divina, produto do bem supremo. Embora este seja um esforço originariamente fracassado, ele é capaz de captar as atenções de fenômenos partícipes e irmãos na economia do ser, fazendo-se passar como algo subsistente e de realidade própria (por ser “o outro”, por ter construído assim uma individualidade abstrata), e assim enganá-los, estabelecer-se como “o verdadeiro” em oposição à natureza, que, por calar-se, passa ela a ser “a outra” e o falso. Mas de que modo ocorre este movimento?

Primeiro vimos que a arte surge como “o outro” e neste movimento ela se individualiza; na medida em que surge, aparece como um indivíduo, um átomo (a-tomo: indivisível). Imitando a totalidade indivisível da natureza, a arte se faz uma parte indivisível, pelo menos na sua relação com os entes no interior do ser – uma vez que na totalidade ela não tem subsistência própria, mas desaparece no todo como qualquer ente. Mas ao aparecer assim aos ente ela torna a experiência deles, que antes era imediata como acontece em toda totalidade uma, agora mediada por um “outro” que toma o papel de representar algo que é a priori dado. O espetáculo se põe entre os fenômenos como a representação do ser fundamental e originário que acontece unicamente na experiência imediata, na presença do ser por parte dos fenômenos que se relacionam fluidamente. A arte, assim, corta esta relação fluida e imediata, rompe a naturalidade da natureza, criando no seio indissoluto um simulacro que consiste na cisão entre coisa e representação, entre sujeito e objeto, entre sujeito e predicado; e esta cisão é o germe da individualização ou atomização de todo o ser, uma atomização que jamais alcança um fim porque se desenrola na infinitude do ser.

Antes da arte, os fenômenos experimentavam a totalidade do ser em si mesmos e o si mesmo no mundo, sem distinção entre eu e mundo. Agora, o ser é experimentado a partir da sua representação, o que é o mesmo que não ser experimentado. Uma vez que o fenômeno é uma fantasia (uma aparição) do todo, ele não pode experimentar sua existência senão na imediatez com o todo, jamais através de representações. E uma vez surgida a representação e com ela a cisão, abre-se um movimento decadente e interminável de representar e dividir, a fim de apreender o ser já não mais apreendido – todavia, este movimento, baseado num impulso de espelhamento do real (especulação vem daí), ao invés de trazer o ser para mais próximo da experiência, limita e impede cada vez mais este encontro, constrói barreiras cada vez mais intransponíveis. E isto explica o movimento de constante complexificação na história ocidental desempenhado pela linguagem, pela filosofia e pelas ciências em geral, incluindo a teologia, complexificação acompanhada do esvaziamento de sentido do ser ele mesmo. Pois, após a cisão entre sujeito e objeto, como seria possível reuni-los novamente se todo instrumento para tal desempenha o papel da arte e nela está inserido? Como seria possível reunir ser e fenômeno através de um ato representativo do ser se é este mesmo ato que se põe entre os dois polos? Este ato é semelhante ao da mulher intelectual, destituída do erotismo ao longo da vida, “castrada”, que busca resgatar a experiência sexual mais íntima e intensa através de palavras elogiosas e falsamente festivas, teatrais. Ao invés de excitar, ela espanta; mas é tudo o que ela sabe fazer e pode fazer sob o domínio da arte, que tomou sua mente passiva.

A Feiura

Esta cisão, uma desidentificação (um desencontro) entre os fenômenos e a consequente sensação de estranheza, de “não pertencimento” à representação, é a feiura. A feiura é esta falta de harmonia na economia do ser, que todavia é relativa à experiência dos fenômenos, não da totalidade do ser consigo mesma, que é imutável. Quando o homem, por exemplo, sente a feiura do mundo, é porque está enclausurado em si mesmo (por motivos variados, nem sempre é culpa sua), incapaz de se projetar para fora de si e assim encontrar-se com os demais fenômenos. Esta incapacidade se deve a uma desorientação na experiência do homem com o mundo, ora porque o ambiente no qual está o homem é desordenado pela abstração, ora porque o homem foi confundido por conceitualizações, ora ambos. E isto traz angústia, a sensação íntima de que algo está errado e perdido, um vazio; é quando o homem se questiona “por que há ser e não o nada?”, tendo ele perdido a experiência do ser sem, contudo, ter encontrado o nada. E aqui nasce a filosofia, a busca pelo fundamento perdido.

A percepção da beleza é uma experiência mística. Ninguém pode dizer que percebeu a beleza de um objeto externo a si sem ter sentido uma identificação com ele. A beleza não é um traço particular acidental que enxergamos nos objetos; ela não é azul nem verde, nem suave nem dura, e ao mesmo tempo ela pode se manifestar com todas essas características ou simplesmente não se manifestar nelas. A beleza não tem objetividade. Mas tampouco tem subjetividade: a beleza não é algo aleatório cuja percepção varia conforme o sujeito; todos são capazes de percebê-la, assim como são capazes de perceber a feiura. Por exemplo, por mais que o conceito de beleza tenha se alterado consideravelmente com o advento da modernidade, ninguém está autorizado a dizer que o mundo moderno e a arte moderna são belos – seus defensores, eles mesmos, alegam que a modernidade traz conforto, direitos etc., mas ninguém se arrisca seriamente a defender que ela é bela; pelo contrário, os argumentos mais costumeiros tendem a questionar a beleza enquanto princípio civilizacional. Mas onde está então a beleza?

Disso extraímos, primeiramente, que a beleza não pode ser considerada um fenômeno meramente estético. Isto seria defini-la como objetiva e/ou subjetiva ao passo que ela não pode ser nenhum dos dois. A beleza envolve algo do sujeito que não se restringe à experiência empírica. Notar o belo em algo é conhecê-lo, e conhecer é o tipo de contato mais íntimo entre dois polos; como poderia, então, se tratar de uma mera reunião entre sujeito e objeto, quando ambos os polos estão eternamente separados? Como se poderia conhecer algo sem pertencer a um mesmo com ele, e como se poderia pertencer a este mesmo dentro do paradigma do sujeito-objeto, baseado na representatividade do ser e, portanto, na atomização dos entes? Se os entes forem átomos, não pode haver nada que os conecte, pois cada um seria um universo fechado. Como, então, é possível que experimentamos o belo nas coisas, sem que isto seja uma mera observação das qualidades acidentais do objeto?

A própria possibilidade de experimentarmos o belo é uma prova de que não somos átomos, mas estamos intrinsecamente conectados com algo de invisível, imprevisível e misterioso que permeia o mundo como um todo. É misterioso, contudo, a nós, modernos, que perdemos o sentido, a sabedoria antiga, sobre este todo. Para os antigos, não havia o espanto da existência, eles possuíam uma tranquila certeza do nascimento à morte; nós, modernos, é que somos cheios de dúvidas existenciais. Não obstante, o homem moderno que começa a duvidar é o que se encaminha rumo à certeza dos antigos – o resto, embriagado no cotidiano dos outdoors, festas etc., ainda sonha com uma certeza sobre o mundo que jamais possuiu, e esta certeza será posta à prova algum dia, geralmente com alguma grande tragédia que rompe a “ordem” normal da vida cotidiana. A experiência do belo é intrínseca à certeza sábia da fluidez e simultânea permanência da totalidade do ser. É o “estar em casa” daquele que se identifica com o ser, pois a morada dos fenômenos será sempre a totalidade indivisível do ser. Perceber isto, isto é, conhecer, é experimentar a presença do belo, que é a total harmonia de todas as coisas (o reflexo cognitivo das relações mútuas da totalidade).

Mas nas cidades modernas, baseadas na pura arte abstrata senão no próprio interesse de tornar as coisas propositalmente feias, não podemos experimentar esta naturalidade do ser. Tudo é objeto e sujeito. Vejo um livro, um prédio, uma placa, e vejo assim coisas diferentes de mim mesmo, vejo um “outro” fora de mim. Apesar de que estes objetos estão sujeitos às mesmas leis naturais que eu, se deterioram e se transformam e a cada momento “deixam de ser” eles mesmos como as coisas naturais, apesar disso eles se apresentam a mim representando um outro ser, alheio a mim. A placa é a placa, não tenho nada a ver com ela. E isto se intensifica pelo fato de que a placa tem um dono, que não sou eu, e propagandeia uma empresa que pertence a outra pessoa. Assim, tudo é analisável (paradigma analítico), tudo está objetificado, por mais que fundamentalmente a realidade seja distinta e tudo isso não passe de mera abstração e convenção. Fundamentalmente não houve alteração no ser; mas a arte (técnica), representando, engana, e mantém assim presa e escravizada toda uma civilização: escravizada por uma mera convenção, uma ilusão (a enganação pelo jogo de espelhos, orquestrada por uma figura diabólica nas mitologias). Desse modo, enquanto o mundo é objetificado, o homem é subjetificado, distanciado do mundo e abandonado às contingências da sua própria “interioridade”, de seu próprio nada. Nestas condições, fica difícil até mesmo para o homem experimentar a beleza em alguma coisa.

A feiura se caracteriza, então, por esta pobreza, este vazio, mas um vazio positivo que se opõe à natureza e por isso provoca angústia. As dores, os deveres e os prazeres do mundo moderno se dirigem sempre ao sujeito dentro do paradigma sujeito-objeto: o homem vai a uma festa para caçar um prazer que está solto no ambiente, ele tem compromisso profissionais que lhe oprimem enquanto uma individualidade que possui obrigações independentes e isoladas do resto do mundo. Desse modo, até os prazeres causam angústia, pois se não trazem o fenômeno à sua morada não servem de nada.

A Beleza

A beleza, pelo contrário, desvela uma identidade eterna entre o que vê e o visto. Em um nível sensível, ela instiga a imaginação e a criatividade a galgar e se elevar até entrar na coisa vista juntamente com aquele que o vê – neste estado, ela provoca a contemplação das ideias eternas e a meditação profunda. O homem finalmente se vê sentado em sua morada. Uma pintura é bela porque cada uma das partes que compõem o todo estão entrelaçadas e perfeitamente de acordo na economia do quadro, refletindo a sutileza das leis naturais – a percepção desta totalidade faz o contemplador sair de si para experimentar a essência do próprio ser, que é total e orgânico.

A beleza não é mera estética, já afirmamos que é uma experiência mística. A totalidade no visto é a que o sujeito carrega dentro de si e a que permeia o ser. Um quadro, todavia, ainda é uma arte, e representa, mais ou menos conforme a habilidade do pintor, uma ordem que está no mundo – sua representação é rude e bastante grosseira, a fim de explicitar mais claramente uma harmonia que na natureza vive de modo muito mais sutil e de difícil apreensão ao homem das cidades. Não obstante, a harmonia da natureza é muito mais rica; enquanto o quadro pode ainda ser cortado, repartido, suas pinceladas podem ser distinguidas, no mundo natural a harmonia é indivisível em absoluto, e a relação das “partes” dela entre si é imensurável. Por este mesmo motivo, a contemplação da natureza é interminável e inesgotável – a cada instante da contemplação se sabe tudo, se tem a certeza sábia, mas ao mesmo tempo é como se se apreendesse algo de novo, uma nuance nova, uma perspectiva nova.

A apreensão do belo não é, sendo uma experiência mística, oriunda de um impulso voluntário do homem de sair de si, como creem as fantásticas bobagens dos adeptos da Nova Era (New Age), que se sentam uma hora por semana para se conectar com o sol. Pelo contrário, é uma experiência espontânea, não forçada, livre do atento observador, portanto destituído de quaisquer interesses e preconceitos na sua observação. A experiência simplesmente acontece; a participação do homem é somente a de proporcionar as condições, vivendo em um ambiente belo, por um lado, e, por outro, mantendo-se limpo dos interesses. Só uma tal alma, que não espera abarcar a experiência em qualquer noção preconcebida, e dizemos dessa alma que é inocente, é capaz de observar a totalidade que o ser dispõe em seus ínfimos detalhes inesperados – caso a alma não se mantiver limpa dessa maneira, não apreenderá nada de inesperado, e o que é inesperado é justamente o que lhe falta e busca.

Até aqui falamos da apreensão do belo. Mas o que é o belo? É a própria economia do ser em seu estado natural, que é uma relação cognitiva da totalidade consigo mesma (o real é múltiplo de relações, não sendo ele uma coisa ou um conjunto de coisas que se relacionam, pois é as próprias relações). O princípio mais perfeito para a produção das formas acidentais é o ser e a alma do mundo – esta produção chama-se phýsis, natureza, uma vida eterna que está sempre produzindo a si mesma. Nada tem tal domínio sobre a harmonia das formas além dela mesma – portanto, nenhum ente, nenhum artista no mundo, para o qual o ser aparece parcial e não totalmente em seu princípio.

O belo é essa agradabilidade cognitiva que constitui a experiência imediata das partes entre si, para as quais a harmonia do todo é sua própria morada. As cidades modernas obstruem essa harmonia fluida, que é obrigada a contorná-las tal como uma planta contorna um muro, uma calçada e um asfalto. O contorno é sempre feito com sucesso, pois não há nada que possa impedir o ser de ser ele mesmo em sua atividade harmônica em sua totalidade, mas esse contorno, que é uma espécie de atraso, de obstrução da harmonia, gera a dor. A falta da imediatez, que a mediação pela arte consegue criar, é uma constante obstrução no fluxo da natureza, e essa obstrução joga os fenômeno uns contra os outros, como indivíduos isolados pela mediação, que faz lidar com o mundo como um “outro” – isso, por sua vez, desaloja a todos de sua morada que é a experiência da totalidade imediata com o fluxo total da phýsis.

Toda arte é uma mediação, e toda mediação é limitação. E toda limitação é como o impedimento de comer daquele que está faminto. Os fenômenos são todos famintos pela totalidade – na imediatez, eles são transmutados e se identificam ao ser, mas na mediação eles permanecem isolados e carentes de seu fundamento, motivo que os faz decair imparavelmente na busca desenfreada deste fundamento através de uma contínua complexificação da atividade representativa. Eles tentam provar o ser, ou então recriá-lo em imagens, sem contudo alcançar seu objetivo, aprofundando ainda mais sua carência e limitação.

Enquanto a phýsis é um universo de relações que se anulam no todo harmônico, a técnica cria neste universo um corte nas relações, dando nomes a estes entes delimitados pelo corte, dividindo o universo indivisível, assim, artificialmente em átomos, em elementos constituintes de um conjunto maior. O universo, assim, passa a ser considerado este conjunto de elementos, e a sagrada fórmula platônica do “todo ser maior do que a soma das partes” é substituída pela concepção de que o todo é o próprio conjunto das partes e, não só isso, mas o todo é em si definido qualitativamente pela natureza dos seus elementos, que se fundamenta na separação do indivisível. O todo, antes ele mesmo concebido como átomo (indivisível), é subjugado a um significado diametralmente oposto, que é o de ser constituído por átomos fundamentais, agora na qualidade de elementos. Dessa forma, a diferença entre a concepção holística e a técnica não é meramente uma mudança de perspectiva, mas de natureza, trata-se de uma alteração qualitativa na ontologia, e ambas, por este motivo, não podem conviver no mesmo mundo em respeito e tolerância mútua, pois uma nega a outra. De um lado, as relações puras, que negam em sua fluidez qualquer concepção de substância, de outro, as substâncias ou elementos, que resistem contra as relações e se definem pela negação delas, uma vez que a substância é algo completo, inteiro e independente (subsistente, por si).

Quanto à disputa pela verdade destas duas doutrinas a própria história humana é testemunha; e quanto à verdade de uma ou de outra, fica nítido por nossa própria reflexão que a visão-de-mundo da técnica é uma perversão da natureza, uma vez que ela se apropria desta última para existir, como um parasita do ser. Enquanto a phýsis demonstra ser o real inefável, a técnica busca dizê-lo e, ao fazê-lo, introduz um sentido particular e desviado, meramente abstrato e representativo de um real que já é, a priori.

A beleza é um evento só possível pela realidade das relações puras. No interior da fluidez, tudo está como que para o todo e tudo é como deve ser, e tudo deve ser como é; este “ajuste perfeito” do todo é sentido como um prazer absoluto para este todo ao qual nada lhe falta. E sendo deleitável é belo e bom; não há carência, portanto não há uma ausência de sentimento do bem, logo não há o sentimento do feio, que é uma carência e, por isso, causa angústia e sentimento de vazio. Pelo contrário, o que o todo precisa e quer, assim o tem, e isto só acontece porque as relações internas são absolutas, ao ponto de não se distinguir nele átomos, porque se houvessem átomos seriam eles impedimentos, barreiras que resistem contra as relações, como pedras no mar que se opõem ao fluxo perfeito e suave das águas. Mas não há esse atomismo na natureza, e até as pedras do mar a ele estão ligadas por um continuum, e se desgastam e se restituem interminavelmente e nunca são as mesmas pedras – o mar, assim, é o prolongamento das pedras, e estas são como que cristalizações do próprio mar. Não há pedras e não há mar, há um todo “pedrar” ou “maredra”, a despeito da ilusão que cria a nossa linguagem.

A Unicidade

Nosso raciocínio até aqui sugere que, ao falarmos de beleza, acabamos necessariamente por investigar a natureza, a essência, do real. A experiência do belo não é a percepção de algo objetivo e fechado em si mesmo, nem um sentimento subjetivo capaz de ser delimitado pelo pensamento, mas a própria natureza da existência e do real enquanto tais. O modo de ser do real é a beleza, e deste real nós participamos sem abarcá-lo, mas como que banhados e mergulhados na sua essência, uma vez que dele somos feitos e tudo com que nós nos relacionamos também é.

É impossível, portanto, buscar a beleza em si. Ela é o modo de ser de algo, não um algo específico. Ela é o evento, o ato deste algo que é o real – e o real, sendo existência, é um evento, não uma coisa em si delimitada substancialmente, como queria Aristóteles. Assim, torna-se obsoleta a busca pela beleza diretamente, quando dela depende toda a realidade e a vida – busca-se o belo como o indivíduo desconsolado corre atrás de uma pílula anti-depressiva, sem notar que o remédio está no todo, logo em si mesmo também enquanto partícipe do todo.

O belo é manifesto acidentalmente, ele é o fenômeno do real. Para obtê-lo, deve se garantir o real, com sua harmonia indivisível. A busca cristã por um belo em si distanciou o homem do real e, consequentemente, do próprio belo; essa busca mira uma beleza abstrata, “o paraíso”, longe da terra, quando não há paraíso que não seja, para os seres vivos, este mundo aqui, onde nossa essência se encontra. Não estamos negando agora um estágio transcendente do ser; estamos apontando para o fato de que de um estágio transcendente só pertencemos enquanto a totalidade deste mundo “aqui e agora”, sendo impossível que hajam essências individuais como os peripatéticos imaginam das almas humanas e das coisas (substâncias).

Pois não há indivíduos, há tão somente um todo que se desenrola e se manifesta indefinível. A serenidade do belo não é como a do doente depois de beber uma pílula – mas acontece porque a totalidade em harmonia não se abate descontroladamente, mas está em uma total conveniência e satisfação: a energia não é perdida nem deslocada da sua rota, mas se direciona para onde deve ser recebida e cabe com perfeição; não faltando nem sobrando, assim, nada em lugar algum. É a unicidade que explica essa harmonia, a interrelação máxima do todo consigo mesmo, um todo que parece complexo e múltiplo sendo, não obstante, uma só realidade, um só evento.

Para “obter” o belo, não basta que criemos o espetáculo. Esta sede do espetáculo levou o Ocidente à modernidade, que hoje, já perdida e desiludida, não mais crê na existência do belo, simplesmente porque não o encontra onde o busca. Ao invés de buscá-lo no real, busca no abstrato, como se o belo fosse uma coisa criada e não a experiência do ser ele mesmo, a sutileza da realidade e da vida misteriosa, a luz do sol que penetra as nuvens ao longe e se dissolve muito gradualmente no vapor do aro pouco acima do chão, o desenho multicolor e terrivelmente detalhado de asas de borboleta, o olhar iluminado, suavemente adocicado e muito sutil e cuidadosamente desenhado da mulher da nossa vida. O belo está na ordem perfeita dos fenômenos, impossível de ser ultrapassada e vencida pelo gênio humano – eis o mistério! Que tipo de genialidade é essa que a tudo produz com tal maestria e permanece oculto, apenas se mostrando através da própria beleza daquilo que produz? O meio de se ir o mais longe em qualquer tipo de busca é a observação dessa ordem misteriosa, que não nos torna o gênio produtor das coisas que são, mas nos faz compreender tudo o que a nós está para ser compreendido. Aí nos tornamos também deuses plenificados e eternos, superiores a toda contingência e a toda imagem como o são a vida e a morte.

A Religião

Falar do belo e não falar de religião, ou em alguma tonalidade religiosa, é simplesmente não falar o que deve ser dito. A experiência do real, tanto o do real por si quanto a nossa do real (a diferença das duas é ilusória: o real sem nós não pode ser, e nossa experiência do real só é através da união, de uma espécie de misticismo, em que não existe mais o eu, mas o todo), é uma que exige um comprometimento existencial – não é um passa-tempo, não é entretenimento, não pode ser experimentado agora por alguns minutos para espantar o tédio. Pelo contrário, trata-se de uma missão pessoal, de uma entrega de si mesmo, de uma suspensão de tudo que pode ser considerado “preocupação cotidiana”, porque o real antecede as abstrações que inventamos e com as quais lidamos, por exemplo, o contrato de emprego e a televisão no mundo moderno, que se propõem atividades laicas, desligadas de todo compromisso.

No mundo antigo, sobretudo oriental, todas as atividades pertenciam aos rituais, e todas elas, portanto, voltadas para as necessidades vitais da natureza das coisas, como a alimentação e o sono. São atividades dadas pelo ser, não são construções sociais – portanto, há que lembrar sua relação com o todo, sua participação no universo, sua importância. Ao comer e ao dormir, a oração aos deuses, ao arar a terra, plantar e colher também, que são atividades relacionadas umas com as outras tanto quanto à nossa de comer e de dormir; e se não é pelo favor dos deuses nada disso seria possível, e o universo como um todo ordenado jamais existiria. O conjunto de todos esses fenômenos, assim ordenados, em meio a um mundo de belezas sublimes, é um mistério; estamos dentro e somos partes indissociáveis desse espetáculo natural que a todo instante é concebido pelos deuses; e os deuses estão por todos os lados, e se não é uma deusa a araucária que se ergue imponente no inverno o que é então?

Para o mundo moderno, a alimentação é pura contingência, resultado aleatório de uma evolução biológica, e é por isso que somos obrigados a comer hoje correndo, enfiar goela abaixo uma porcaria qualquer vendida na rua para não perdermos a energia diária necessária para o trabalho escravo em uma empresa inútil que só fabrica coisas inúteis para as grandes e pútridas massas humanas consumirem como animais egoístas e ambiciosos. Permanece a questão de Heidegger: para quê? Para onde? O mundo moderno não está interessado na realidade, está tão interessado nas ambições que esquece que a única satisfação possível está na experiência do real, que é holística, o oposto da ambição individualista, parcial, especializada, que move o eternamente inquieto e insatisfeito mundo moderno. O mundo moderno instrumentaliza o real em benefício do sujeito, que os modernos, em sua leviandade, sequer suspeitam que não passa de ilusão abstrata e que nada em comum com a realidade possui. O sujeito é mera representação, delimitação parcial de uma experiência que não cabe em representações – e assim mesmo, nestas condições a visão-de-mundo atomista, que está na base do conceito de sujeito (e de objeto), serve de fundamento para a metafísica moderna.

Falamos da alimentação, mas ela é só um exemplo para se notar a distância entre o real e a concepção moderna, para se notar como a vida como um todo é um fenômeno constante e contínuo do misterioso real e como o mundo moderno trata de apagar e destruir essa harmonia, usá-la para fins abstratos e, desse modo, desequilibrá-la e desorientá-la e, tirando-a de sua natureza, desfazê-la em seu fundamento. Mesmo assim, o real permanece, enquanto o mundo moderno se exclui ele próprio do real, ao menos tenta assim fazer, dominando o real; mas o real é indomável, e é o mundo moderno que se joga para o abismo, tal como o primeiro, pairando no céu estável, apenas observa o segundo se debater na terra, insensato, permanentemente instável e insatisfeito, tanto quanto ignorante sobre o que é a verdade ela mesma.

Quando falamos de religião, não queremos dizer “o cristianismo”, “o budismo”, “o judaísmo” etc., estamos falando de uma experiência própria do real, da admiração das sutilezas, do desafio da morte, portanto da vivência demorada e introspectiva de cada atividade vital das nossas vidas, que participam do real e que são o modo como dele participamos. A religião é o conhecimento por contato que os filósofos buscam desde Platão, sem jamais atingir, pelo simples fato de que se trata de um acontecimento imediato, por fora de todo esforço para alcançar alguma razão ou resultado em uma mera calculação lógica e linguística. Esse conhecimento é a própria experiência profunda e imediata que o homem tem com o mundo, o próprio ato de viver os limites da existência, de encontrar o infinito inabarcável pela linguagem. É como o andar do filósofo, já citado em outro lugar, que refuta, andando silenciosamente, o paradoxo de Zenão.

A decadência humana e a consequente inquietude do “progresso” histórico das civilizações, que vive buscando na “tese, antítese e síntese” essa experiência inefável, cada vez mais desesperadamente, pois cada vez mais afastada dessa experiência, levou o imaginário a supor uma Elêusis, o paraíso onde se encontram aqueles que lograram alcançar esse conhecimento, já reservado a poucos em meio ao caos. Em Elêusis se encontram os heróis, os sábios e justos, ou seja, aqueles que compreenderam a amplitude e a necessidade da moral, que não se restringe ao moralismo das leis, mas ao compromisso daquele que assume sobre si a própria existência como uma missão em aberto – a moral independe das leis, e até mesmo se opõe a elas; a moral, como diriam Platão e os neoplatônicos, é o meio pelo qual o homem limpa de si e do seu caminho todo o supérfluo, a fim de contemplar a luz da verdade, isto é, conhecer o ser, unir-se a ele.

A moral surge, então, como um meio de resgatar a experiência perdida, ou seja, de re-ligar-se à harmonia, por isso não se pode falar de religião sem moralidade. Mas uma coisa é a moralidade das antigas religiões, tradicionais, cujos mitos trazem à luz sua amplitude, seus motivos, hoje preservados nos contos de fadas e em boa parte da literatura clássica, e bem outra é o moralismo das leis que outorga o que se deve ou não fazer, cuja preocupação não é mais o conhecimento, mas a mera organização ou imposição de um modelo social, sem raízes na existência humana. É por isso que, revoltado contra este moralismo, surge o romantismo, com Cervantes, Goethe, Schiller, que reabrem aos homens a possibilidade do rebentar-se nos limites da experiência, não sem uma intensa preocupação moral, que seus personagens, personificando tendências humanas, manifestam com muita profundidade psicológica.

E, tanto nas religiões quanto no romantismo, a preocupação com a moralidade acompanha a experimentação da beleza, porque é ela mesma a manifestação deste conhecimento por contato do ser, alcançado por um rebento e uma força místicos. Porque o reino dos céus é dos violentos, já dizia o Cristo. Conhecer, assim, é estar unido ao todo uno, a experiência da unicidade e harmonia perfeita e bem ordenada de tudo que é; mas o que nossos antepassados possuíam por natureza nós, hoje, mergulhados no logocentrismo[1], temos que conquistar de volta, rompendo o ciclo vicioso da lógica sem, no entanto, cair no irracionalismo.

Independentemente do que a beleza é “em si”, nós só a percebemos enquanto um acontecimento iluminado, absoluto, que toma todo o nosso ser e o mundo em um turbilhão de agradabilidade pura. A beleza só é experimentada como um mergulho na essência do ser, para muito longe da alternância entre vida e morte concebidas como reinos separados. O belo é o limite, e o belo é a vida suprema e por isso mesma a experiência da morte, o limite máximo da existência. E o que é o Logos senão essa harmonia do ser manifesta no continuum, onde todos os contrários permanecem unidos na experiência da totalidade, como que fundidos e suspensos na inefabilidade; e o que é essa experiência senão o ser ele mesmo, que experiencia a si mesmo?

O belo é uma experiência, e esta é a phýsis, que não é outra coisa que a própria produção harmônica e eterna de tudo o que é, ou seja, a Natureza em sua totalidade, atividade e presença. A linguagem, quando destituída de sua essência mística, é pura técnica, arte abstrata e representação – e deste modo ela distancia e separa regiões do ser pre-determinadas pela abstração, pondo-se entre o sujeito e o objeto, criando um medium que em verdade é a obstrução da imediatez essencial do conhecimento por contato. E é daí que vem novamente à mente a teoria da verdade por correspondência aristotélica, fundamentada na separação, cujo paradigma é o da representação abstrata. Verdade por correspondência, princípio de não-contradição e o conceito de substância estão intrinsecamente interligados, um implicando os outros – todos fundamentados na ideia de separação abstrata, em total dissonância com a realidade: o continuum e a unicidade.

[1] Logocentrismo: termo visto em textos duguinianos, cujo significado se aproxima muito do nosso paradigma aristotélico, sobre o qual discutimos em Do Paradigma Moderno e do Tradicional,e da Linguagem. O logocentrismo significa o modelo de pensamento ocidental imposto por Aristóteles e que reina imparável pós-modernidade adentro, cujo fundamento é a lógica. Vimos Dugin discutir em termos muito próximos dos nossos sobre a separação, caráter da lógica e do logocentrismo, em textos ainda não traduzidos ao português e, quiçá também, nem ao inglês. Surpreendentemente ou não, suas afirmações partem de um estudo atencioso sobre o neoplatonismo, como é o nosso caso.