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Rob Gonsalves |
Em República 530c-d, Platão se apoia em Pitágoras
e sustenta que há duas formas de movimento cósmico e que há, portanto, duas
ciências diferentes para compreendê-lo: a astronomia, ciência que adquirimos
através dos olhos, e a harmônica (ou seja, a música no contexto moderno), adquirida
através dos ouvidos. Ambas estas ciências partem de um mesmo propósito, que é o
estudo do movimento, e assim são ciências irmãs.
Esta doutrina que une Platão e Pitágoras e sistematiza a
ciência dentro de um amplo conceito de ordem (harmonia) se tornou fundamental
para os sistemas filosóficos da antiguidade tardia e particularmente para os
neoplatônicos. Plotino, por exemplo, no tratado 2.9 das Enéadas, defende
os astros como as únicas entidades intermediárias entre o mundo corpóreo e o
mundo inteligível; os astros são nossa porta para o mundo superior, é através
deles que podemos compreender a lógica dos ciclos cósmicos. Mas Plotino não defende
especificamente a matematização do mundo astronômico; neste tratado, que se intitula
“Contra os Gnósticos”, ele visa apontar para a contemplação estética da ordem
astronômica, a possibilidade de se enxergar a beleza do mundo superior através
da simples observação do céu. Nós não podemos, através da matemática moderna,
compreender a lógica desse mundo inteligível; é através da intuição intelectual
durante a longa observação, que se “conhece” a natureza divina.
Jâmblico, que foi discípulo de Porfírio, que foi
discípulo de Plotino, nos legou quatro livros pitagóricos onde ele constroi um
amplo plano pedagógico capaz de fazer elevar as almas presas na matéria até o
mundo inteligível; a astronomia e a teologia compõem os níveis mais altos do
conhecimento humano; antes delas existem a aritmética e a harmônica, que
funcionam como a base teórica para o conhecimento mais alto. Todos os níveis partem
de um princípio de harmonia universal que rege o todo, desde a lógica mais
básica dos objetos do cotidiano até os grandes ciclos dos astros fixos. Ao
longo do trajeto científico, então, o homem ascende de sua condição material
até a condição do mundo da eternidade. E por trás das fórmulas matemáticas que
certamente se estuda existe o objetivo principal que é o da simples
contemplação do universo, a descoberta do divino.
Em torno de 1700 anos depois de Jâmblico, em um momento
não menos conturbado da história humana, surge um movimento também não menos preocupado
com as sutilezas cósmicas e não menos “ocultista” do que o platonismo era na
antiguidade tardia: o Black Metal, que gira em torno da música, mas que se expande
também nas artes plásticas e começa a influenciar a filosofia e a política
contemporâneas (os tradicionalismos do século XXI). Mas precisamente agora vale
a pena citar Lustre, um projeto sueco, como talvez o maior exemplo dessa
contemplação dos astros através da música.
Com rara maestria, Nachtzeit (o compositor) consegue
aliar o som dos instrumentos com o típico silêncio da contemplação neoplatônica.
Usando de sons cristalinos e lentas e repetitivas melodias de base ele transforma
em som a imagem celeste dos lentos ciclos dos astros pintalgados de estrelas e
planetas compondo massas luminosas e percorrendo órbitas precisas. Um som
fresco e noturno que se tornaria inimaginável em um contexto muito social e
conturbado pelas disputas políticas, onde a vida se encontra abafada e
disforme, desgovernada; pelo contrário, o som de Lustre é para o alto de uma
montanha solitária durante à noite sob um céu limpo, gélido e ampla e
profundamente estrelado. O nome do projeto, “Lustre”, exprime com genialidade
estética o sabor de sua sonoridade, um sabor leitoso, cheiroso, macio, sutil,
contínuo, mas luminoso e pintalgado de cristais, exatamente como o céu se
apresenta durante a noite limpa. Os elementos se apresentam todos em harmonia, em
ordem, como expressão viva e saborosa de natureza inteligível. Poderíamos
tentar compreender sua lógica através de cálculos matemáticos, mas jamais
alcançaríamos o esboço primordial; por isso nos resta contemplar.
Nachtzeit certamente usou de conhecimentos em teoria
musical para construir suas melodias (sem isso nada seria possível), mas o que
ele fez foi, através deste conhecimento, buscar exprimir os inexprimível,
trazer em matemática musical uma lógica que a ultrapassa e que só pode ser
apreendida através da percepção de sua beleza, do êxtase. O conhecimento
teórico levou o compositor mais próximo do divino, mas jamais o permitiu alcança-lo
por si mesmo; foi com um salto de coragem, uma intuição e a simples contemplação,
em sentido neoplatônico, que permitiu-o apreendê-lo e transmiti-lo com sua
obra. Neste sentido, Lustre é uma revelação divina, ou então uma salvaguarda ou
um receptáculo do divino, similar às Silmarils, feitas por Fëanor ao buscar
preservar a essência das Duas Árvores de Valinor antes que elas fossem
destruídas por Melkor.
Abaixo, Lustre -- Echoes of Transcendence