sábado, 8 de maio de 2021

(VARIA) Michael Schultheiss ou Michael Praetorius


Dando sequência a um antigo post em que eu publico o vídeo da representação de uma tarantela napoletana de Athanasius Kircher, hoje apresento-vos um outro de obras de Michael Schultheiss/Schultz, ou em latim Michael Praetorius (1571-1621). Ele foi um compositor, organista e teórico da música alemão nascido na Turíngia, região luterana de intensa atividade religiosa, intelectual e cultural, que mais tarde inspirou o romantismo e o idealismo alemães de Schelling, Hölderlin e Hegel. Sua principal obra foi Terpsichore, um compêndio de mais de trezentas danças instrumentais.

Em sua obra há uma clara influência renascentista e suas composições são amplamente utilizadas, na época, em liturgias protestantes.



segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

(POEMA) Onde Estás?

John Bauer
Minha mimosa, onde foi que
te enfiaste tão dengosa?
com que sorte
te afastaste lacrimosa?
Onde foi que te perdeste?
Diz-me, querida minha,
pois daquele lado ou mesmo deste
não te acho, minha pombinha...
de onde gritas tão ardente,
tão chorosa e descontente,
desprotegida e sem consolo,
a tudo tão assim sujeita
a todo tipo de intempérie
que a ti tão rude fere?
De onde caem estas lágrimas
que encharcam todo o chão?
Quero com o calor de minha mão
no teu rostinho elas secar.
Baixinho e soluçando choras,
e se não me contares onde estás
como poder-te-ei encontrar
assim sem muita demora
e meu coração então curar? [22/02/2021]

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O sacrifício do clássico e a facilidade da subcultura televisiva

Rob Gonsalves

Um dos grandes males do pós-guerra foi a cultura da televisão. Ela retirou do indivíduo, das famílias, das comunidades regionais e do Estado a liberdade do pensamento, monopolizando os conceitos, os debates, afirmando o que existe e suprimindo o que, segundo as empresas que produzem o conteúdo transmitido, não deve mais existir.

Mas a televisão é apenas um dos elementos e veículos, talvez o maior elemento e o maior veículo, dentro de um grande movimento cultural de dissolução mental, psicológica, social, política, educacional. Se em meados do século XX alguém seria ridicularizado por nutrir esse tipo de opinião, hoje essa ideia se torna cada vez mais uma especulação geratriz de preocupação séria entre pensadores e cientistas sociais. Tornou-se óbvio para todas as classes letradas que o papel da televisão é cada vez mais o de ofuscar o conhecimento com oceanos de bobagens, imbecilizar o jovem, inocular no interior das famílias ideias estapafúrdias que passam a influenciar nas relações internas.

A televisão é sem dúvida um dos maiores motores da confusão e do caos que estamos vivendo hoje. A partir de 2010 a cultura começou a sair da televisão para entrar na internet, é verdade, mas os métodos continuaram os mesmos para a esmagadora maioria dos consumidores de internet e redes sociais: as empresas que antes transmitiam conteúdos pela televisão de tubo migraram para as redes; surgiram páginas na internet divulgando o material, mas também surgiram novos meios de informação com conteúdo pago e acessado pela internet. Quem transmite continua ditando o que existe e o que não existe no universo das ideias de toda uma população, e aquilo que existe sem dúvida é traduzido da forma que convém aos donos das mídias, que também hoje controlam a economia global e ameaçam as bases dos Estados nacionais.

Um livro, por outro lado, é livre de monopólio. O autor sempre incute no livro suas ideias, suas ideologias, disso ninguém escapa. Mas o autor não detém do monopólio sobre o mercado livreiro e, caso não for digno de ser lido, facilmente se pode colocá-lo de lado. Hoje existe, sim, uma tentativa de monopolizar o mercado livreiro, mas esse é só mais um processo dentre os tantos monopólios culturais que existem e que se concentram sempre nos mesmos conglomerados que controlam as grandes mídias de televisão e de rede. O livro, por sua vez, permanece revolucionário, e sua interpretação depende muito do próprio leitor, que participa da história da recepção e da reprodução das ideias que ele leu. É por isso que também os monopólios tentam fazer do mercado livreiro um mercado de bobagens, a fim de ofuscar as grandes obras, os clássicos, e assim distanciar cada vez mais o jovem das grandes ideias. Participam desse show os tais “influenciadores de rede” que não mais querem que os jovens aprendam com Machado de Assis e permaneçam para sempre pessoas imaturas, passíveis dos monopólios culturais que facilmente abocanham os povos quanto mais ignorantes, mesquinhos e irresponsáveis eles se tornam.

Os livros considerados clássicos, por sua vez, não o foram por mero oportunismo dos monopólios ao longo da história, até porque nenhum monopólio dura milhares de anos, se é que dura muitas décadas sem causar destruição em massa e autodestruição. Eles são clássicos porque têm algo de importante a dizer, a mostrar, a revelar para a psique humana aquilo que sozinha lhe custaria, em muitos casos, milhares de anos para se dar conta. Um livro clássico está carregado de conhecimento sobre a natureza humana, e assim sugere reflexões sobre nossos atos, nossos gostos, nossos anseios mais íntimos. Ao fazer estas reflexões e perseguir o mistério existencial o leitor imediatamente se emancipa das amarras culturais que muitas vezes o prende para seu próprio mal. E digo isso não para condenar os costumes populares e tradicionais, pelos quais muitas vezes o jovem se sente ameaçado, mas para condenar a televisão e a cultura que ela promove em detrimento desses mesmos costumes populares. Afinal, qual é a verdadeira prisão em Orwell e Huxley senão a prisão das Big Techs, da televisão e das grandes mídias? Por que uma comunidade luterana do interior de Santa Catarina, onde crianças aprendem a socializar e amar através da dança e do Kerp, ou uma mãe de santo no Rio de Janeiro, que benze os jovens para seu sucesso, seriam exemplos de opressão? Não nos parece então estapafúrdia a ideia de que a expressão do povo, isto é, a tradição e sabedoria popular, seja agente de sua própria opressão? Pois quem fez dos jovens uma revolução contra a cultura popular foram os oligopólios da informação, que passaram a monopolizar a mente deles contra eles mesmos.

O conteúdo de um livro clássico não é diferente daquele expresso pela sabedoria popular. Os elementos utilizados sempre derivam dos ricos símbolos da linguagem usual. As grandes obras não são diferentes dos grandes ensinamentos da sabedoria popular, sendo elas uma reflexão profunda que também passa de geração em geração, de século em século, milênio em milênio. Elas apenas são mais complexas, mais bem arquitetadas pelo gênio, muitas vezes mais profundas e inspiradoras. Mas elas não visam renegar ou rivalizar com a sabedoria popular; pelo contrário, a história mostra que sempre houve um diálogo e uma interdependência muito forte entre elas, mas que acontece livremente do lado de ambas pela atração estética e pelo valor que possuem uma para a outra.

Tomemos o exemplo de Dante Alighieri. A Divina Comédia jamais teria vindo a existir sem a própria experiência de vida do autor, do conhecimento que ele tinha dos mitos cristãos, tanto popular quanto erudito. E a sabedoria popular cristã talvez jamais viesse a ter a noção que ela passou a ter do inferno e do purgatório se não fosse a obra de Dante. E mais uma vez, essa mútua influência nunca foi imposta através de uma máquina monopolista de informação, e sim por intermédio da inspiração que o gênio do autor transmitia, pelo conhecimento profundo da alma humana que sua obra carrega, pelo significado que ele teve para seus leitores.

E estes leitores de Dante, por sua vez, jamais teriam vindo a ocupar seu tempo em uma obra gigantesca e rigidamente talhada em versos sem um certo esforço. Uma obra da magnitude de sua Comédia é muito difícil de absorver. Acadêmicos passam vidas inteiras se debruçando sobre os detalhes mais ínfimos e deles extraindo informações valiosas para uma compreensão ainda mais profunda. É natural que uma obra grande exija dedicação. Tudo que é grande exige. Lembremos que as catedrais góticas da Idade Média duravam séculos até ficarem prontas; gerações inteiras passavam trabalhando em sua arquitetura até que a construção adquirisse seu formato “perfeito”. Nada de grande se faz com mordomia, nada de grande se faz para ser usufruído na mesma hora. Tudo o que é grande requer elaboração, estudo, reflexão, experiências, e isso significa muitas vezes sacrifício, solidão, dor e sofrimento.

A cultura da televisão quer nos privar das profundezas, quer nos vender o fácil e barato que no fim acaba saindo bem caro. Essa cultura, ou antes subcultura, quer nos privar da nossa natureza humana, de nossa alma, do gozo do verdadeiro e eterno amor, que é sagrado e dura muito mais que uma vida. Precisamos combate-la, e um meio de fazer isso é revitalizarmos a leitura dos clássicos da literatura, da filosofia e da história. Tudo o que é grande requer sacrifício, e está na hora de optarmos pela grandeza e destruirmos a mediocridade; está na hora da águia pisar e bicar a serpente maligna.


*Álvaro Körbes Hauschild, nascido em 1992, é doutorando em Filosofia Antiga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também fez graduação (2016) e mestrado (2019); traduziu Geopolítica do Mundo Multipolar (2012) e Contra o Ocidente (2013), obras do filósofo e geopolitólogo russo Aleksandr Dugin. Atualmente se dedica a uma tradução comentada dos Oráculos Caldeus diretamente do grego antigo e lançará pela Kotter o livro “Anamnesine” (2021).

Publicado originalmente no blog da Kotter (01/02/2021) [https://kotter.com.br/o-sacrificio-do-classico-e-a-facilidade-da-subcultura-televisiva-alvaro-hauschild/]

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

[Sobre] Sturm und Drang em ANAMNESINE (2021)

Os Primeiros Acordes da Canção Fatal (2020), de autoria de A.R.R. de Sousa e G.C. Rodriguez

Resenha de Alfredo RR de Sousa e Gabriel C. Rodriguez para ANAMNESINE (2021), livro de estreia do mestre em filosofia Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e tradutor Álvaro Körbes Hauschild.

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Sturm und Drang em ANAMNESINE

Alfredo RR de Sousa & Gabriel C. Rodriguez

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Foi com imensa satisfação e grata surpresa que empreendemos a leitura de ANAMNESINE (2021), de lavra do mestre em filosofia (UFRGS) e tradutor Álvaro Körbes Hauschild. Obra de difícil de caracterização em termos de gênero, há que observar já à partida, muito embora se calhar a definição que melhor se lhe ajuste seja a novela alegórica à moda de Novalis, formato que permite ao autor, inclusive em consonância com essa hipotética matriz, lançar mão de seu vasto conhecimento de causa no âmbito da filosofia e literatura helênicas.

 Mas que o leitor não pense que o universo conceitual de Hauschild se restringe à excelsa Hélade: com efeito, ANAMNESINE se desdobra sob a égide de caleidoscópica e multifária progênie: da ominosa geometria espacial dos “Carceri d’invenzione” de Piranesi às abstrações paradoxais da geometria textual de J.L.Borges, passando por William Blake, Franz Kafka e Hugo von Hofmannsthal, são muitas as paragens na jornada iniciática que o autor nos propõe.

Jornada essa que se traduz, quer nos parecer, como um progressivo ‘perder-se de si mesmo’, à moda do itinerário espiritual dos peregrinos aéreos no “Colóquio dos Pássaros” do místico persa Farid ud-Din Attar, um ‘perder-se de si mesmo’ que não obstante emblematicamente se traduz como extática conquista extática da lucidez transfigurada; ou então como o processo triádico de iluminação na tradição ortodoxa cristã: catharsis (purificação) / theoria (esclarecimento) / theosis (união com Deus). Tal é a matéria da prosa poética de Hauschild, sob os auspícios d’uma paternidade outrossim tríplice: a tradição hermética, o idealismo alemão e a sabedoria hiperbórea.  A crítica literária norte-americana Helen Gardner afirma que a poesia de T.S. Eliot caminha do ‘niilismo’ (em “Prufrock and other Observations”, primeiro volume de versos do autor, publicado em 1917) à ‘glória’ (em “Ash-Wednesday”, de 1930 e, sobretudo, nos “Four Quartets”, de 1943), passando pelo ‘medo’ (“The Waste Land” - 1922) e pelo ‘horror’ ("The Hollow Men" - 1925). Algo análogo poderia ser dito a propósito de ANAMNESINE.

O estilo do autor, solene, evocativo e densamente poético, faz jus às suas pretensões, e emoldura admiravelmente a construção da narrativa: o protagonista, um homem sem nome, subitamente desperta num cárcere abandonado e então dá início a seu périplo, através d’uma miríade de experiências sensoriais, devaneios (talvez metade da obra se passe no reino dos sonhos, e nisso temos um vislumbre de quão fundamental é a dimensão onírica nesse texto) E quem é ANAMNESINE? O leitor terá que descobrir por si só, uma vez que entre nessa mandala de páramos e conhecimentos ignotos.

Há alguns elementos que nos pareceram particularmente refinados e fascinantes nessa obra de sabor tão peculiar; citamos aqui dois, porventura ao sabor do acaso: no capítulo VI, uma sutilíssima crítica, em compasso de alegoria poética ‘novaliana’, a certos aspectos de dogmatismo racionalista presentes na filosofia kantiana; e no capítulo V, um conto de antecipação apocalíptica digna do horror cósmico d’um Clark Ashton Smith ou das fantasmagorias expressionistas d’um Alfred Kubin.

De resto, gostaríamos de reiterar o facto de que estamos sobremaneira honrados com a oportunidade de resenhar essa obra de um confrade de muitos anos e que agora faz parte da mesma casa editorial que nos lançou. Aproveitamos o ensejo para felicitar a Kotter pela disposição e coragem em lançar uma obra tão arrojada, demonstrando uma vez mais que seu time editorial tem  “olhos para ver” coisas que amiúde ficam ocultas, e que por isso mesmo devem vir à luz...  A luz  que ilumina o Leste, destino final do périplo de ANAMNESINE e Álvaro Hauschild, que a essa altura, já se amalgamam numa única entidade não sendo mais possível para nós discernir criador e criação.

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Alfredo Rubinato Rodrigues de Sousa nasceu em Recife no dia 20 de novembro de 1971. Mudou-se para o Rio de Janeiro antes de completar seu primeiro aniversário, cidade em que reside desde então. É neto do célebre compositor popular paulista Adoniran Barbosa. Graduado em Comunicação Social e Filosofia, pós-graduado em Relações Internacionais, dedica-se atualmente à tradução. Mantém um blog desde 2001, espaço onde divulga sua produção ensaística (filosofia; estudos literários; análise política; crítica musical e cinematográfica, etc.) bem como alguns textos de prosa poética e um epistolário fictício. Em matéria de literatura, tem como referências basilares figuras como Paul Valéry, S.T. Coleridge, J.L. Borges, W.B. Yeats, Edmund Spenser, Novalis, entre outros. Sua primeira experiência no gênero ‘Romance’ é o livro Os Primeiros Acordes da Canção Fatal, escrito em coautoria com Gabriel Rodriguez.


Gabriel Rodriguez nasceu em Limeira, município situado na região leste do estado de São Paulo, no dia 22 de junho de 1991. Concluiu em 2019 um MBA em gestão de pessoas, mas suas grandes paixões são a literatura e a História, tendo já escrito alguns contos e, agora, em coautoria com Alfredo RR de Sousa, o romance Os Primeiros Acordes da Canção Fatal (com quem também coescreveu um relato de horror – O Monstro, entre outras obras ainda inéditas). Suas preferências literárias recaem, sobretudo, no campo da ficção fantástica, com destaque para autores como E.A. Poe, H.P. Lovecraft, Milorad Pavic, Dino Buzzati, etc. É também grande entusiasta da poesia de Baudelaire e T.S Eliot; do cinema expressionista alemão (bem como de outros filmes clássicos do cinema de horror); e de música de vanguarda em geral (popular e erudita). Recentemente criou um blog, onde pretende escrever sobre diversos temas.

O livro dos autores pode ser acessado aqui: (https://kotter.com.br/loja/o-primeiros-acordes-da-cancao-fatal-alfredo-rubinato-rodrigues-de-sousa-gabriel-rodriguez/)

Minha resenha sobre o livro deles: (https://alvarohauschild.blogspot.com/2019/10/breve-comentario-os-primeiros-acordes.html)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

(LIVRO) Anamnesine (2021)

Álvaro Körbes Hauschild, nascido em 1992, é doutorando em Filosofia Antiga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também fez graduação (2016) e mestrado (2019); traduziu Geopolítica do Mundo Multipolar (2012) e Contra o Ocidente (2013), obras do filósofo e geopolitólogo russo Aleksandr Dugin. Atualmente se dedica a uma tradução comentada dos Oráculos Caldeus diretamente do grego antigo.


"Tal como seus ancestrais intelectuais da Antiguidade clássica e tardia, Álvaro parece ter percebido que a melhor maneira de tentar apresentar postulados filosóficos e teológicos frequentemente é a da narrativa, do mito. Eis um ponto no qual tanto J.R.R. Tolkien (em seu seminal ensaio Sobre Estórias de Fadas, que tive o privilégio de traduzir) quanto a moderna biologia evolucionista concordam: somos essencialmente animais criadores de histórias. Não há maneira mais intuitiva e empolgante de tentar apresentar verdades essenciais do que por meio de histórias. Será que o trabalho de Álvaro ficou à altura de tão alta tarefa? Esse veredicto eu deixo, é claro, nas mãos do leitor. Mas a jornada e a leitura decerto serão recompensadoras."
-- Reinaldo José Lopes, jornalista de ciência e tradutor, autor de nove livros.


"Uma obra incomum e inclassificável. Uma obra que sugere, alude, simboliza, alegoriza – o quê? Não se pode responder; não pelo menos com uma resposta que não seja limitante, que não seja circunscritiva, que não tema deixar de fora o mais importante. Anamnesine é uma obra que dá a quem a lê tanto quanto se é capaz de colhê-la: aparentemente uma deleitável estória de clima oniricamente angustiante, a obra condensa em suas poucas páginas uma tradição perene, multifária, antiquíssima, de modo hermético. Ela oculta muito mais do que revela. Mas, sim, revela – e como! – a quem tem olhos para ler, a quem se entrega à jornada que Álvaro Körbes Hauschild propõe. Anamnesine convida nossas almas ao arrebatamento, à beleza e à luz. É uma peregrinação paradoxal do indivíduo que se busca e se dissolve. Anamnesine recusa nosso tempo e nosso espaço ao oferecer-nos um vislumbre do eterno, do sobre-humano. Cada um há de encontrar neste texto singular uma mensagem; universal, entretanto, será a sensação de ter-se à mão um livro valioso."

 -- José C. Baracat Jr., professor de língua e literatura gregas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dedica-se à tradução e à interpretação da filosofia antiga, especialmente de Plotino e do neoplatonismo.


Pré-venda: https://kotter.com.br/loja/anamnesine-alvaro-korbes-hauschild/

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

A Folha de Cisco: o encontro entre Tolkien e Hegel

 

O conto A Folha de Cisco, de Tolkien (publicado mais recentemente pela Harper Collins Brasil em 2020), é uma obra com profundo caráter autobiográfico. O protagonista, Cisco, personifica as inclinações do autor, e a lição moral da obra como um todo é de algum modo uma defesa de sua própria visão-de-mundo. Mas estes elementos não estão presentes apenas como uma expressão subjetiva do autor, que visa expor “sua visão” sobre o mundo ao modo romântico; eles estão organicamente construídos como obra universal e intemporal, que não simplesmente impõe sua perspectiva sobre o leitor, mas o convida a uma reflexão impessoal sobre o mundo e os acontecimentos, uma viagem ao interior do mistério da vida.

 A narrativa conta a história de Cisco, um pintor desajeitado que constantemente adia a preparação para sua viagem. Às vezes ele empacota alguma coisa aqui e ali, mas logo abandona e se volta para sua pintura. No esforço de pintar uma árvore, com todos os detalhes possíveis em sua imensa complexidade, ele gasta todo seu tempo disponível. Então surgem os problemas: o vizinho, Pároco, constantemente bate a sua porta para interromper seu trabalho, requisitando ajuda para questões cotidianas, desprezando a obra em desenvolvimento; com isso concorre ainda o tempo, cada vez menor, para a viagem, e a dificuldade cada vez mais consciente de conseguir pintar a árvore em todos os seus detalhes conforme imaginada pelo pintor. Por fim, todos os males surgem quase que instantaneamente juntos: Cisco, ao tentar ajudar Pároco com o telhado de sua casa destruído, pega um resfriado e cai doente; assim que sua febre melhora surge o Inspetor para exigir o uso da tela, da madeira e da tinta usada na pintura para o conserto da casa de Pároco, e ao lado dele aparece o Carregador para levar Cisco à estação de trem para sua viagem, para a qual ele não havia se preparado. Chegando no destino ele passa por um período de trabalho manual que serve como uma purgação de sua obsessão artística, e depois é tratado em um hospital; neste hospital ele ouve duas vozes discutindo o julgamento a se fazer a respeito de Cisco, até que a Segunda Voz, que detém da autoridade, o envia para um jardim. Neste jardim o protagonista encontra sua árvore, mas desta com todos os detalhes prontos, tanto aqueles que Cisco poderia ter pintado quanto aqueles que ele jamais conseguiria pintar, afinal esta árvore tem algo que a outra não tinha: vida, era uma árvore e não apenas uma pintura. Cisco, sentindo-se satisfeito, pede então à Segunda Voz que traga Pároco para este jardim, com quem ele poderia compartilhar desta experiência. Chegado no jardim, Pároco diz a Cisco que ele também havia sido julgado e que só por causa do pedido de Cisco que a Segunda Voz concedeu este destino. Cisco descobre que todo o lugar onde ele caminha faria parte de sua pintura, quando ela estivesse pronta, e aos poucos descobre um lugar mais ao longe, para o qual a pintura ainda deveria ser descoberta: a montanha; e para lá ele se dirige. Pároco, porém, decide retornar ao jardim e pedir a concessão de sua esposa, para que ela também possa desfrutar dessa vida. Enquanto isso, Cisco se dirige à montanha, orientado por um Guia.

 Toda esta narrativa, independentemente da interpretação que possamos fazer, apresenta claramente um movimento circular que começa na idealização subjetiva da pintura, “desce” para a realidade cotidiana e contingente, e por fim, depois de um processo de ruptura, retorna para o objeto dessa idealização, mas agora como realidade. Esse movimento imita todo o sistema da obra hegeliana, que começa na Ideia abstrata, “desce” para a natureza e para a contingência, e por fim sobe retornando para esta mesma ideia, agora não mais como abstração, mas como Espírito, como realidade concreta. Em Hegel também é com a arte, a religião, a alta política, a filosofia especulativa (cujo método ele identifica à tradição neoplatônica) que o homem percorre o caminho de retorno ao Uno, ao mesmo tempo origem e destino da Ideia.

 A tônica do conto de Tolkien, contudo, está neste trecho de “ascensão”. Não apenas Cisco passa por este processo, mas toda a realidade, exemplificada pelo Pároco e por sua esposa, o acompanham na jornada. Fica demonstrada a inferioridade da realidade cotidiana, da qual Pároco compartilha muito mais que Cisco, e a superioridade (inclusive ontológica!) da realidade ideal expressa pela pintura. Embora o pintor seja um tanto desconhecido no mundo cotidiano (ele é apenas um sujeitinho desprezado e até pouco conhecido por seus conterrâneos), o que se descobre é que todo mundo, em dado momento, acaba tendo que fazer a desdita viagem, e a culminância do destino, a “terra primeira” (o paradigma) em vista da qual todos os destinos são julgados pelas duas vozes, é aquela que subjazia na mente idealista do pintorzinho e que ele, com muita dificuldade e imperfeição, tentava expressar, com tinta sobre tela. A viagem pode ser tomada como o momento de dissolução, na linguagem alquímica, quando o neófito é iniciado nos altos mistérios e “morre” para um mundo ao mesmo tempo em que “renasce” para outro, este sim, o “verdadeiro mundo” a ser alcançado ao longo de um processo de coagulação.

 Na medida em que Cisco percorre seu caminho, sempre iluminado por seu ideal, ele traz consigo, atrás de si, todo o resto da realidade, arrastando o mundo de volta para o princípio. É por causa de Cisco que Pároco pôde ascender ao jardim, e por causa de Pároco, depois de ter finalmente sido iluminado pela vida da árvore, que a mulher do Pároco, ainda mais maculada pela vida “profana”, também pôde receber uma passagem para o jardim – todos formando uma “corrente de ouro” que se dirige para um destino único.

 Da parte de Tolkien, está clara, como parte da “lição” que o conto transmite, uma crítica ao desprezo que de modo geral a sociedade costuma ter pelos seus artistas, quando são estes que fornecem a “substância” da vida, a razão da realidade e, por conseguinte, o motivo pelo qual viver. O que Hegel diria é que a imagem pensada pelo artista é a própria estrutura do real ainda não efetivada. O artista (compreendido aqui em sentido amplo, incluindo o filósofo especulativo e o político conforme idealizado por Hegel, concretizado na figura de Napoleão), na medida em que ele, como um profeta, se define como aquele que profere a Ideia, é, tanto em Tolkien quanto em Hegel, o guia de um povo. E o destino é a divindade; para Hegel, o Espírito Absoluto que transcende as formas contingentes, e, para Tolkien em seu conto, a montanha, capaz de transcender até mesmo a árvore com sua multiplicidade de folhas e detalhes.

 É claro que devemos levar em consideração também as diferenças. Tolkien era um católico, Hegel era luterano. Mas, embora os símbolos usados no conto de Tolkien tenham de fato alguma proximidade maior com o catolicismo (a árvore, o “guia”, a “redenção”, o “purgatório”), eles estão muito longe de representar uma analogia com os dogmas do catolicismo. Estes símbolos falam por si, e deles se pode encontrar talvez uma proximidade ainda maior com o que Hegel chamou de “filosofia especulativa”: embora não possamos de modo algum definir, por exemplo, o jardim do conto como a “substância primeira” da realidade (afinal isso seria cair também em discurso alegórico), a estrutura com que os elementos ontológicos do conto estão organizados mostra claramente uma hierarquia entre “níveis de realidade”, as quais não se diferenciam meramente por um ser superior ao outro, mas pelo fato de os superiores “conterem” os níveis inferiores em si. É a árvore e seu jardim, seu entorno, que detém a vida da qual as plantas no mundo contingente são feitas. E essa árvore é superada por um manancial que, brotando no seio da floresta, alimenta todo o jardim – inclusive é desta fonte que Cisco bebe no final dos longos dias de trabalho para se manter vigoroso, possuindo esta fonte então um caráter curativo e rejuvenescedor que na alquimia o ouro e a pedra filosofal representam.

 A estrutura de A Folha de Cisco é, assim, mística. Ela não apenas exprime uma obediência, um respeito, uma veneração, ou um culto a uma certa divindade, mas introduz a busca pela fusão espiritual com a “substância divina” que a tudo dá vida. Este talvez seja o elemento culminante ou nevrálgico do parentesco com a filosofia hegeliana: para o filósofo, não basta a veneração do divino de modo distanciado e alienado, é preciso, em um movimento duplo, “internalizar” a Ideia (a estrutura da realidade), e efetivá-la no mundo através das estruturas históricas, de modo que as instituições, como as artes, a família, a sociedade, a religião, o Estado, tomados em conjunto, em um sistema orgânico, se tornem uma gigantesca escada para o alcance final do divino por parte dos espíritos singulares, em um êxtase universal, da substância universal. Por ser luterano, e não católico, Hegel concebia um valor especial para a subjetividade nesse trabalho (também duro e por vezes doloroso, como o foi para Cisco no conto diversas vezes), e neste ponto de novo ele se aproxima de Tolkien, que, embora católico, também defendia a literatura individual, o isolamento e o trabalho intelectual (subjetivo) como partes fundamentais do processo espiritual do homem. Afinal, é o “sujeito” que conhece, e a realidade deve ser conhecida. A Fantasia, para Tolkien, não é um escape para o irracionalismo, mas uma forma superior de racionalidade, tal como para Hegel a filosofia especulativa (atacada como “devaneio” por seus opositores) é o modo par excellence de se alcançar o Espírito Absoluto – por trás da Fantasia e da filosofia especulativa está uma “outra razão”, intemporal, organizada em princípios objetivos, que dá sentido à vida e também à própria razão instrumental (as duas razões não estão em desacordo). Essa “outra razão” é aquela capaz de “ver” a realidade invisível, os princípios transcendentes, que a razão instrumental é por definição incapaz de explicar e compreender.

 A ampla gama de correspondências que se pode encontrar entre Hegel e Tolkien (não só no conto em questão) talvez seja fruto de uma grande erudição de ambos, de onde certamente vão acabar bebendo de fontes próximas e similares na história do pensamento e sendo influenciadas por elas, portanto não exatamente de uma influência direta. Mas são muitas essas correspondências, e a mais interessante de todas, aquela que destaca ambos os autores de seus próprios contextos e os coloca em sintonia, é a tonalidade mística de busca e de união intelectual e substancial com o divino, por sua vez a própria fonte da vida – e, para ambos os autores, tudo o que existe é, no fundo, Vida.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Lustre, Platão e Pitágoras

Rob Gonsalves

Em República 530c-d, Platão se apoia em Pitágoras e sustenta que há duas formas de movimento cósmico e que há, portanto, duas ciências diferentes para compreendê-lo: a astronomia, ciência que adquirimos através dos olhos, e a harmônica (ou seja, a música no contexto moderno), adquirida através dos ouvidos. Ambas estas ciências partem de um mesmo propósito, que é o estudo do movimento, e assim são ciências irmãs.

Esta doutrina que une Platão e Pitágoras e sistematiza a ciência dentro de um amplo conceito de ordem (harmonia) se tornou fundamental para os sistemas filosóficos da antiguidade tardia e particularmente para os neoplatônicos. Plotino, por exemplo, no tratado 2.9 das Enéadas, defende os astros como as únicas entidades intermediárias entre o mundo corpóreo e o mundo inteligível; os astros são nossa porta para o mundo superior, é através deles que podemos compreender a lógica dos ciclos cósmicos. Mas Plotino não defende especificamente a matematização do mundo astronômico; neste tratado, que se intitula “Contra os Gnósticos”, ele visa apontar para a contemplação estética da ordem astronômica, a possibilidade de se enxergar a beleza do mundo superior através da simples observação do céu. Nós não podemos, através da matemática moderna, compreender a lógica desse mundo inteligível; é através da intuição intelectual durante a longa observação, que se “conhece” a natureza divina.

Jâmblico, que foi discípulo de Porfírio, que foi discípulo de Plotino, nos legou quatro livros pitagóricos onde ele constroi um amplo plano pedagógico capaz de fazer elevar as almas presas na matéria até o mundo inteligível; a astronomia e a teologia compõem os níveis mais altos do conhecimento humano; antes delas existem a aritmética e a harmônica, que funcionam como a base teórica para o conhecimento mais alto. Todos os níveis partem de um princípio de harmonia universal que rege o todo, desde a lógica mais básica dos objetos do cotidiano até os grandes ciclos dos astros fixos. Ao longo do trajeto científico, então, o homem ascende de sua condição material até a condição do mundo da eternidade. E por trás das fórmulas matemáticas que certamente se estuda existe o objetivo principal que é o da simples contemplação do universo, a descoberta do divino.

Em torno de 1700 anos depois de Jâmblico, em um momento não menos conturbado da história humana, surge um movimento também não menos preocupado com as sutilezas cósmicas e não menos “ocultista” do que o platonismo era na antiguidade tardia: o Black Metal, que gira em torno da música, mas que se expande também nas artes plásticas e começa a influenciar a filosofia e a política contemporâneas (os tradicionalismos do século XXI). Mas precisamente agora vale a pena citar Lustre, um projeto sueco, como talvez o maior exemplo dessa contemplação dos astros através da música.

Com rara maestria, Nachtzeit (o compositor) consegue aliar o som dos instrumentos com o típico silêncio da contemplação neoplatônica. Usando de sons cristalinos e lentas e repetitivas melodias de base ele transforma em som a imagem celeste dos lentos ciclos dos astros pintalgados de estrelas e planetas compondo massas luminosas e percorrendo órbitas precisas. Um som fresco e noturno que se tornaria inimaginável em um contexto muito social e conturbado pelas disputas políticas, onde a vida se encontra abafada e disforme, desgovernada; pelo contrário, o som de Lustre é para o alto de uma montanha solitária durante à noite sob um céu limpo, gélido e ampla e profundamente estrelado. O nome do projeto, “Lustre”, exprime com genialidade estética o sabor de sua sonoridade, um sabor leitoso, cheiroso, macio, sutil, contínuo, mas luminoso e pintalgado de cristais, exatamente como o céu se apresenta durante a noite limpa. Os elementos se apresentam todos em harmonia, em ordem, como expressão viva e saborosa de natureza inteligível. Poderíamos tentar compreender sua lógica através de cálculos matemáticos, mas jamais alcançaríamos o esboço primordial; por isso nos resta contemplar.

Nachtzeit certamente usou de conhecimentos em teoria musical para construir suas melodias (sem isso nada seria possível), mas o que ele fez foi, através deste conhecimento, buscar exprimir os inexprimível, trazer em matemática musical uma lógica que a ultrapassa e que só pode ser apreendida através da percepção de sua beleza, do êxtase. O conhecimento teórico levou o compositor mais próximo do divino, mas jamais o permitiu alcança-lo por si mesmo; foi com um salto de coragem, uma intuição e a simples contemplação, em sentido neoplatônico, que permitiu-o apreendê-lo e transmiti-lo com sua obra. Neste sentido, Lustre é uma revelação divina, ou então uma salvaguarda ou um receptáculo do divino, similar às Silmarils, feitas por Fëanor ao buscar preservar a essência das Duas Árvores de Valinor antes que elas fossem destruídas por Melkor.

Abaixo, Lustre -- Echoes of Transcendence