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John Bauer, um exemplo de arte curativa |
A
loucura é um assunto clássico do pensamento ocidental. Platão, no Fedro,
distingue dois tipos de loucura (mania): uma má, contrária à razão, que
levaria aos excessos dos prazeres, por exemplo na atração homossexual (a
atração erótica pelo mesmo sexo é contrária à sua função natural, que é
procriar); e outra boa, “divina”, que se divide em quatro subtipos: a profética
(apolínea), a iniciática (dionisíaca), a poética (inspirada pelas musas) e a erótica
(inspirada por Eros). Mais recentemente Michel Foucault, em Folie et
Déraison (1961), analisa o conceito de loucura tomando por base o método
fenomenológico de “alteridade”; o que seria um trabalho psicológico se torna
mais um trabalho sociológico que visa captar a linguagem pela qual os homens
são arbitrariamente excluídos da sociedade.
Podemos,
ainda, considerar a arte como uma instância da loucura. Platão já incluíra, de
alguma maneira, a arte nessa loucura “boa”. Em sua época, todas as artes
tendiam a buscar em algum sentido o bom e o belo e, por isso, o harmônico ou
racional, e neste sentido se inserem na loucura boa ou divina, porque elevam,
curam, tranquilizam, reordenam a alma humana. Mas hoje não podemos mais ser tão
coniventes com a arte; as técnicas tomaram a sociedade moderna, hoje tudo é
essencialmente técnico, e sendo técnico tudo está dotado de intencionalidade
daquele que produz e daquele que utiliza. Vivemos em uma sociedade em permanente
construção, controle, manutenção, a própria ordem já não se assenta apenas na
natureza, mas depende de um bom uso da técnica. É por isso que hoje devemos discutir
a boa e a má loucura dentro da arte moderna.
Todas
as artes lidam com o fantástico e são já, nesse sentido e por definição, uma
loucura. Não é possível criar algo que não seja em algum sentido artificial,
que não se distinga do puramente natural. Toda arte visa montar sobre o
natural, transcendê-lo. Mas então surgem dois comportamentos distintos por
parte dos artistas e daqueles que empregam as artes: primeiro há aqueles que
usam o fantástico para destacar aspectos do mundo natural ou que criam artes
que se utilizam do mundo natural, não visando corromper seus princípios
básicos, racionais; em segundo lugar há aqueles que usam da arte para distorcer
a realidade propositalmente, criar novos princípios contrários à natureza e
reificá-los por meio da expressão estética[1]. Vou chamar o primeiro de arte
curativa e o segundo de arte degenerativa.
Arte
Curativa
A
arte curativa é aquela que, usando de engenharia estética, visa resolver
contradições do mundo humano com o mundo natural. Para dar um caso bem
paradigmático, falemos da divisão sexual. Há artes que enaltecem tanto os
aspectos masculinos no homem e tanto os aspectos femininos na mulher que, com
certeza, podem ser consideradas loucuras pela intensidade exagerada de seus
aspectos. Muitas das esculturas gregas e romanas seguem esta lógica; na
literatura gótica este motivo também está bastante presente, por exemplo no Drácula
de Bram Stoker, que exagera por um lado a imagética do poder, da força, do
intransponível, qualidades masculinas da personagem vampiresca, e por outro a
sensibilidade e fragilidade femininas em suas vítimas. Na literatura religiosa
nós costumamos ter o mesmo motivo quando se analisa a relação que Deus tem com
sua Criação, uma relação de interferência, autoridade, muitas vezes de ira,
controle e castigo; a Criação mantém com o Criador uma relação que se repete entre
mulher e homem. O símbolo, nestes casos, ajuda a elucidar, apontar para algo
essencial, concreto, com lastro na realidade imanente, e assim educa o leitor,
muitas vezes curando-o de medos, traumas e uma incapacidade de compreender “o
outro”.
Sobretudo
no mundo contemporâneo, a arte curativa é fundamental, de importância máxima.
Uma vez que tudo é técnica (tekhnê em grego serve tanto para a
engenharia quanto para a “arte” em sentido moderno), são necessárias obras que
o tempo todo lembrem o homem daquilo que ele é essencialmente. A técnica do
mundo contemporâneo é uma maré de esquecimento, de apagamento da visão das
essências, de esquecimento e distanciamento do próprio real; nada tão
necessário como as artes que levem ao homem de volta para aquilo que ele é, que
o coloquem no seu lugar, na sua função cósmica. O papel do masculino, ainda que
por meio da arte, deve permanecer masculino, e o papel feminino, da mesma
maneira, deve permanecer feminino. O grande desafio dos artistas contemporâneos
é criar técnicas que não corrompam essa relação, mas a atualizem sob novas
formas. Isso vai desde a literatura até a legislação e o urbanismo – todas estas
esferas são técnicas.
O
filósofo alemão G.W.F. Hegel já havia pensado em tudo isso. Para ele as formas
e os momentos mudam, mas a consciência permanece em seu processo dinâmico e
contínuo. As formas se reatualizam, mas não corrompem o real, o saber absoluto
não é um arbítrio do sujeito, mas um saber que diz respeito ao real concreto.
Assim, a complexidade com que, por exemplo, homem e mulher se relacionam no
mundo moderno será diferente da complexidade com que a mesma relação acontece
no mundo grego e depois no mundo romano. Mas o homem e a mulher, em si, não se
transformam, não deixam de ser homem e mulher, e dessa maneira não perdem a
relação essencial que há entre eles. Se no mundo antigo a mulher era submetida
pela força, no mundo moderno será pela lei e pela cultura, que por sua vez são
construídas por homens[2]. E nisso está a liberdade no idealismo hegeliano, o
fato de que cada consciência tem seu lugar natural garantido por uma lei
universal.
É
evidente que uma arte curativa exige esforço, antes de tudo um estudo, uma
reflexão sobre a realidade e, no caso em questão, sobre o que é o masculino e o
que é o feminino. Deve-se buscar na realidade, na observação empírica e na
tradição clássica os elementos simbólicos que podemos extrair e utilizar na
expressão destes dois polos do homem[3]. Quando há uma personagem masculina,
deve-se saber dotá-la de características masculinas[4], e o mesmo serve para as
personagens femininas. O artista que cura é um sábio, um alquimista, um
terapeuta[5], e não é possível sê-lo sem primeiro conhecer o real com a
profundidade necessária para poder representar os objetos que aparecem na arte.
Os bons escultores são também conhecedores do corpo e perscrutam cada músculo,
cada osso, cada movimento antes de imprimi-los em suas obras – do contrário, o
objeto tende a não ser o que visa representar. Notemos que estamos falando de
arte em sentido genérico, misturando o realismo e o fantástico: na verdade
estamos borrando a barreira entre os dois, porque o vampiro no Drácula,
pelo menos enquanto expressão enaltecida de traços reais do homem masculino,
não deixa de ser “realista” quanto a este objeto em particular, por mais que
suas qualidades ultrapassem as do homem comum do qual ele é imagem[6].
Em
geral, a arte curativa costuma se tornar um clássico. Se olharmos para a
história veremos que todas as artes que permaneceram, sejam fantásticas ou
realistas, foram em algum sentido um dispositivo de rememoração da realidade: os
deuses em Homero amplificam relações hipotéticas entre homem e mulher, entre
pai e filho, entre comandante e súditos etc., os templos greco-romanos satisfaziam
a intuição que o homem grego tinha do belo e do harmônico, as catedrais
góticas, ainda que bastante diferentes dos templos gregos, da mesma maneira se
punham como obras harmônicas para o espírito europeu, não irritando-o mas
inspirando-o e dando vazão às suas potencialidades psíquicas. E sobretudo na
literatura religiosa encontramos os símbolos mais bem condensados, mais bem
trabalhados, refletidos, aprofundados, ainda que também sejam mais abstratos e
que possuam uma linguagem mais “estranha” ao público vulgar. Deus, Criação, Adão
e Eva, o Éden, em algum sentido condensam em si os elementos de toda a
literatura mítica e fantástica posterior.
Arte
Degenerativa
Com
base no que já foi dito fica fácil compreender o que é a arte degenerativa. Ela
é em algum sentido o oposto: ao invés de fazer o homem rememorar quem ele é,
como ele é, qual seu papel no mundo, ela visa ofuscar, afastar essa lembrança.
E para tomarmos exemplos desse tipo de arte basta lançarmos os olhos para a
enxurrada de livros e de exposições artísticas que se fazem nos museus e nas
praças atualmente, ou então basta observarmos a arquitetura lúgubre, fria,
mórbida que se espalha como selva de pedra nas grandes cidades. Por via de
regra, tudo o que é feio ou que não possui preocupação com o belo já é em si
degenerativo, porque a experiência do belo é em si um processo curativo,
harmonizador, que leva em conta o ambiente onde se insere e o sujeito que presencia
a obra neste mesmo ambiente. Uma obra de arte pode ser abstrata, “estranha”, e
ainda ser curativa; para ser degenerativa não é necessário ser abstrato nem “estranho”,
pode também ser bem concreto e realista[7].
Sobretudo
hoje, um dos melhores exemplos para demonstrar a arte degenerativa é apontar
para a maneira como se representam os sexos nas artes. O mais comum é o
apagamento da divisão sexual entre masculino e feminino[8], mas também temos a
distorção da natureza dos sexos com a sobreposição de características
masculinas e femininas nas mesmas personagens e, o que não é menos grave, temos
a distorção das relações entre os sexos[9].
Ao
invés de elevar, purificar, transcender, tornar sutil, a arte degenerativa
rebaixa, faz apodrecer, torna tudo deveras imanente e concreto, duro, denso,
impenetrável e do qual é impossível fugir. E assim ela não traz uma experiência
de harmonia, de leveza, mas incute a angústia, a ansiedade, a sensação de se
estar perdido, isolado, sozinho, dividido e decomposto; ela cinde a psique ao
invés de unificar e recompor. Ela provoca o estranhamento, a náusea do
existencialismo sartreano. Sartre talvez seja o maior representante intelectual
dessa arte degenerativa; sua filosofia é a degeneração cristalizada, o ódio ao
homem, ao mundo, o ressentimento de ser o que ele é diante de um mundo que é
melhor do que ele. Sartre quis que todos se sentissem imundos e pútridos como
ele se sentia ao se olhar no espelho ou se comparar com outras pessoas com
belos rostos, por isso quis que todos experimentasse o absurdo que era ser um
Sartre. É precisamente daí que vem toda a parafernália intelectual que deu
suporte a uma ostensiva produção de arte degenerativa da segunda metade do
século XX para cá. O modelo neoliberal viu em Sartre um poderoso instrumento de
dissolução de povos, de psiques, de comunidades, de Estados, e não poupou
esforços na promoção de tudo o que degenera, enfraquece, apodrece, dissolve com
vistas a dominar e imperar pelo dinheiro e pelo poder policial. O absurdismo,
que deu suporte intelectual à arte degenerativa, é a ideologia do esquecimento permanente,
a luta pela perdição da alma contra tudo o que eleva e cura. Assim, uma maneira
de compreender a arte degenerativa é estudando Sartre e sua fenomenologia do
absurdo.
Conclusão
Analisamos
dois tipos de loucura, isto é, o fantástico na arte. Um nós definimos como arte
curativa e o outro como arte degenerativa. Os dois manipulam a realidade, em
algum sentido “distorcem” ela; mas enquanto o primeiro tipo o faz sem corromper
a realidade, o segundo o faz corrompendo-a. A experiência que o sujeito tem na
primeira arte é positiva, a arte o eleva, o unifica, o harmoniza, enquanto que
a experiência que ele tem na segunda arte é negativa, a arte o rebaixa, o
decompõe, introduz a desordem em sua psique. Se usarmos um conceito grego para defini-las,
diríamos que a primeira é racional e a segunda é irracional.
NOTAS
[1]
Karl Marx havia analisado esse fenômeno da reificação no processo capitalista:
o produto do capital é artificial, ele se torna uma necessidade fabricada,
falsa, ilusória, e seduz a sociedade a consumir. É o fetiche (um impulso
patológico) que impulsiona o capital.
[2]
Para Hegel, bem como para todos os idealistas e românticos, o masculino estava
essencialmente ligado à esfera pública e à lei, enquanto ao feminino se
reservava a esfera privada e a religião (os Lares). Isso define a sociedade
moderna ideal hegeliana, que não transforma essencialmente o mundo grego, mas o
reatualiza, resgata sob novas formas civilizacionais.
[3]
Aqui deve-se ler “Homem” em sentido genérico, e utilizo o termo por uma questão
de gosto e etimologia. “Ser humano” me parece uma aberração moderna, uma
gambiarra linguística, e por isso busco evitar ao máximo, ainda que talvez pareça
mais claro ao leitor vulgar.
[4]
Infelizmente as autoras raramente conseguem esta proeza. Por exemplo em Frankenstein,
de Mary Shelley, Robert Walton, não fosse o nome, poderia ser uma mulher pois tem
todos os traços psíquicos de uma mulher: sofre com solidão, paranoia, baixa
auto-estima, insegurança, busca o consolo, o conforto, e possui uma compaixão
bastante exagerada.
[5]
Com um propósito mais claro na terapia podemos citar o romance de formação e,
como seu maior exemplar, o Wilhelm Meister de J.W. Goethe.
[6]
Também temos que levar em conta que os objetos no Drácula possuem
múltiplos significados simultaneamente; o vampiro não é feito para ser a mera representação
de um homem; esta personagem induz a muitas interpretações simbólicas, sociais
e psicológicas que, contudo, não negam a natureza psíquica de seu fundamento,
que é em algum sentido um homem (e na própria história o vampiro foi, uma vez,
um homem, sua natureza se deu em cima da matéria masculina, a partir dela).
[7]
As obras de Marcel Duchamp são realistas e ainda sim horríveis, desarmônicas,
toscas, rasas, degenerativas.
[8]
Um exemplo são as pichações de “Os Gêmeos”, que deveriam estar presos por
depredarem o patrimônio público pelo mau-gosto que espalham nas grandes cidades
mundo afora.
[9]
Um caso de se citar aqui talvez seja o assim intitulado Cinquenta Tons de
Cinza; ele não distorce a natureza dos sexos em si, mas as relações entre
eles: ao invés de termos relações de proteção, unidade, cumplicidade, amor e frutificação,
temos relações externas de exploração entre os sexos; esse tipo de literatura
se torna ainda mais perigoso porque seu ardil é muito mais sutil e apela mais
facilmente aos jovens que vivem a explosão dos hormônios. No mais, podemos
citar quase tudo o que se produz hoje nas telenovelas, música pop etc.: é
sempre uma mulher que comanda e homens que obedecem e meramente acompanham; a
relação hierárquica foi totalmente invertida.