O conto A Folha de Cisco, de Tolkien (publicado
mais recentemente pela Harper Collins Brasil em 2020), é uma obra com profundo
caráter autobiográfico. O protagonista, Cisco, personifica as inclinações do
autor, e a lição moral da obra como um todo é de algum modo uma defesa de sua
própria visão-de-mundo. Mas estes elementos não estão presentes apenas como uma
expressão subjetiva do autor, que visa expor “sua visão” sobre o mundo ao modo
romântico; eles estão organicamente construídos como obra universal e
intemporal, que não simplesmente impõe sua perspectiva sobre o leitor, mas o
convida a uma reflexão impessoal sobre o mundo e os acontecimentos, uma viagem
ao interior do mistério da vida.
A narrativa conta a história de Cisco, um pintor
desajeitado que constantemente adia a preparação para sua viagem. Às vezes ele
empacota alguma coisa aqui e ali, mas logo abandona e se volta para sua
pintura. No esforço de pintar uma árvore, com todos os detalhes possíveis em
sua imensa complexidade, ele gasta todo seu tempo disponível. Então surgem os
problemas: o vizinho, Pároco, constantemente bate a sua porta para interromper
seu trabalho, requisitando ajuda para questões cotidianas, desprezando a obra
em desenvolvimento; com isso concorre ainda o tempo, cada vez menor, para a viagem,
e a dificuldade cada vez mais consciente de conseguir pintar a árvore em todos
os seus detalhes conforme imaginada pelo pintor. Por fim, todos os males surgem
quase que instantaneamente juntos: Cisco, ao tentar ajudar Pároco com o telhado
de sua casa destruído, pega um resfriado e cai doente; assim que sua febre melhora
surge o Inspetor para exigir o uso da tela, da madeira e da tinta usada na
pintura para o conserto da casa de Pároco, e ao lado dele aparece o Carregador
para levar Cisco à estação de trem para sua viagem, para a qual ele não havia
se preparado. Chegando no destino ele passa por um período de trabalho manual
que serve como uma purgação de sua obsessão artística, e depois é tratado em um
hospital; neste hospital ele ouve duas vozes discutindo o julgamento a se fazer
a respeito de Cisco, até que a Segunda Voz, que detém da autoridade, o envia
para um jardim. Neste jardim o protagonista encontra sua árvore, mas desta com
todos os detalhes prontos, tanto aqueles que Cisco poderia ter pintado quanto
aqueles que ele jamais conseguiria pintar, afinal esta árvore tem algo que a
outra não tinha: vida, era uma árvore e não apenas uma pintura. Cisco,
sentindo-se satisfeito, pede então à Segunda Voz que traga Pároco para este
jardim, com quem ele poderia compartilhar desta experiência. Chegado no jardim,
Pároco diz a Cisco que ele também havia sido julgado e que só por causa do
pedido de Cisco que a Segunda Voz concedeu este destino. Cisco descobre que
todo o lugar onde ele caminha faria parte de sua pintura, quando ela estivesse
pronta, e aos poucos descobre um lugar mais ao longe, para o qual a pintura
ainda deveria ser descoberta: a montanha; e para lá ele se dirige. Pároco,
porém, decide retornar ao jardim e pedir a concessão de sua esposa, para que
ela também possa desfrutar dessa vida. Enquanto isso, Cisco se dirige à montanha,
orientado por um Guia.
Toda esta narrativa, independentemente da interpretação
que possamos fazer, apresenta claramente um movimento circular que começa na idealização
subjetiva da pintura, “desce” para a realidade cotidiana e contingente, e por
fim, depois de um processo de ruptura, retorna para o objeto dessa idealização,
mas agora como realidade. Esse movimento imita todo o sistema da obra
hegeliana, que começa na Ideia abstrata, “desce” para a natureza e para a
contingência, e por fim sobe retornando para esta mesma ideia, agora não mais
como abstração, mas como Espírito, como realidade concreta. Em Hegel também é
com a arte, a religião, a alta política, a filosofia especulativa (cujo método
ele identifica à tradição neoplatônica) que o homem percorre o caminho de
retorno ao Uno, ao mesmo tempo origem e destino da Ideia.
A tônica do conto de Tolkien, contudo, está neste trecho
de “ascensão”. Não apenas Cisco passa por este processo, mas toda a realidade, exemplificada
pelo Pároco e por sua esposa, o acompanham na jornada. Fica demonstrada a
inferioridade da realidade cotidiana, da qual Pároco compartilha muito mais que
Cisco, e a superioridade (inclusive ontológica!) da realidade ideal expressa
pela pintura. Embora o pintor seja um tanto desconhecido no mundo cotidiano
(ele é apenas um sujeitinho desprezado e até pouco conhecido por seus conterrâneos),
o que se descobre é que todo mundo, em dado momento, acaba tendo que fazer a desdita
viagem, e a culminância do destino, a “terra primeira” (o paradigma) em vista
da qual todos os destinos são julgados pelas duas vozes, é aquela que subjazia
na mente idealista do pintorzinho e que ele, com muita dificuldade e
imperfeição, tentava expressar, com tinta sobre tela. A viagem pode ser tomada
como o momento de dissolução, na linguagem alquímica, quando o neófito é
iniciado nos altos mistérios e “morre” para um mundo ao mesmo tempo em que “renasce”
para outro, este sim, o “verdadeiro mundo” a ser alcançado ao longo de um
processo de coagulação.
Na medida em que Cisco percorre seu caminho, sempre
iluminado por seu ideal, ele traz consigo, atrás de si, todo o resto da
realidade, arrastando o mundo de volta para o princípio. É por causa de Cisco
que Pároco pôde ascender ao jardim, e por causa de Pároco, depois de ter
finalmente sido iluminado pela vida da árvore, que a mulher do Pároco, ainda
mais maculada pela vida “profana”, também pôde receber uma passagem para o
jardim – todos formando uma “corrente de ouro” que se dirige para um destino único.
Da parte de Tolkien, está clara, como parte da “lição”
que o conto transmite, uma crítica ao desprezo que de modo geral a sociedade
costuma ter pelos seus artistas, quando são estes que fornecem a “substância”
da vida, a razão da realidade e, por conseguinte, o motivo pelo qual viver. O
que Hegel diria é que a imagem pensada pelo artista é a própria estrutura do
real ainda não efetivada. O artista (compreendido aqui em sentido amplo,
incluindo o filósofo especulativo e o político conforme idealizado por Hegel,
concretizado na figura de Napoleão), na medida em que ele, como um profeta, se
define como aquele que profere a Ideia, é, tanto em Tolkien quanto em Hegel, o
guia de um povo. E o destino é a divindade; para Hegel, o Espírito Absoluto que
transcende as formas contingentes, e, para Tolkien em seu conto, a montanha,
capaz de transcender até mesmo a árvore com sua multiplicidade de folhas e
detalhes.
É claro que devemos levar em consideração também as
diferenças. Tolkien era um católico, Hegel era luterano. Mas, embora os
símbolos usados no conto de Tolkien tenham de fato alguma proximidade maior com
o catolicismo (a árvore, o “guia”, a “redenção”, o “purgatório”), eles estão
muito longe de representar uma analogia com os dogmas do catolicismo. Estes
símbolos falam por si, e deles se pode encontrar talvez uma proximidade ainda
maior com o que Hegel chamou de “filosofia especulativa”: embora não possamos
de modo algum definir, por exemplo, o jardim do conto como a “substância
primeira” da realidade (afinal isso seria cair também em discurso alegórico), a
estrutura com que os elementos ontológicos do conto estão organizados mostra
claramente uma hierarquia entre “níveis de realidade”, as quais não se
diferenciam meramente por um ser superior ao outro, mas pelo fato de os
superiores “conterem” os níveis inferiores em si. É a árvore e seu jardim, seu
entorno, que detém a vida da qual as plantas no mundo contingente são feitas. E
essa árvore é superada por um manancial que, brotando no seio da floresta,
alimenta todo o jardim – inclusive é desta fonte que Cisco bebe no final dos
longos dias de trabalho para se manter vigoroso, possuindo esta fonte então um
caráter curativo e rejuvenescedor que na alquimia o ouro e a pedra filosofal
representam.
A estrutura de A Folha de Cisco é, assim, mística.
Ela não apenas exprime uma obediência, um respeito, uma veneração, ou um culto
a uma certa divindade, mas introduz a busca pela fusão espiritual com a “substância
divina” que a tudo dá vida. Este talvez seja o elemento culminante ou
nevrálgico do parentesco com a filosofia hegeliana: para o filósofo, não basta
a veneração do divino de modo distanciado e alienado, é preciso, em um
movimento duplo, “internalizar” a Ideia (a estrutura da realidade), e
efetivá-la no mundo através das estruturas históricas, de modo que as
instituições, como as artes, a família, a sociedade, a religião, o Estado,
tomados em conjunto, em um sistema orgânico, se tornem uma gigantesca escada
para o alcance final do divino por parte dos espíritos singulares, em um êxtase
universal, da substância universal. Por ser luterano, e não católico, Hegel
concebia um valor especial para a subjetividade nesse trabalho (também duro e
por vezes doloroso, como o foi para Cisco no conto diversas vezes), e neste
ponto de novo ele se aproxima de Tolkien, que, embora católico, também defendia
a literatura individual, o isolamento e o trabalho intelectual (subjetivo) como
partes fundamentais do processo espiritual do homem. Afinal, é o “sujeito” que
conhece, e a realidade deve ser conhecida. A Fantasia, para Tolkien, não é um
escape para o irracionalismo, mas uma forma superior de racionalidade, tal como
para Hegel a filosofia especulativa (atacada como “devaneio” por seus
opositores) é o modo par excellence de se alcançar o Espírito Absoluto –
por trás da Fantasia e da filosofia especulativa está uma “outra razão”,
intemporal, organizada em princípios objetivos, que dá sentido à vida e também
à própria razão instrumental (as duas razões não estão em desacordo). Essa “outra
razão” é aquela capaz de “ver” a realidade invisível, os princípios
transcendentes, que a razão instrumental é por definição incapaz de explicar e
compreender.
A ampla gama de correspondências que se pode encontrar
entre Hegel e Tolkien (não só no conto em questão) talvez seja fruto de uma grande
erudição de ambos, de onde certamente vão acabar bebendo de fontes próximas e
similares na história do pensamento e sendo influenciadas por elas, portanto
não exatamente de uma influência direta. Mas são muitas essas correspondências,
e a mais interessante de todas, aquela que destaca ambos os autores de seus
próprios contextos e os coloca em sintonia, é a tonalidade mística de busca e de
união intelectual e substancial com o divino, por sua vez a própria fonte da
vida – e, para ambos os autores, tudo o que existe é, no fundo, Vida.