sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

A Sabedoria dos Mitos e Contos de Fadas


Há um vício nas atuais doutrinas e nos atuais estudos sobre os mistérios, sobre o gnosticismo, religiões e seitas esotéricas que imita exatamente aquilo que julgam combater: o racionalismo. Perdemos o contato com a realidade, esquecemos o sentido simbólico da linguagem, e passamos assim, senão a interpretar as doutrinas literalmente, ao menos a concebê-las como sistemas abstratos e dogmáticos. Desse modo, a Idade de Ouro se torna um dogma como qualquer outro, tal como o céu abstrato do cristianismo, uma "realidade" inventada; perdeu-se a noção de que a Idade de Ouro, por exemplo, sendo um símbolo de significados múltiplos, pode querer dizer algo sobre o processo histórico concreto, sobre o desenvolvimento intelectual e moral do homem, sobre a constituição natural e originária de um mundo que não se distingue do nosso, cuja constituição apenas tenha sido esquecida enquanto conteúdo de cognição.

Muito se fala sobre símbolos, mitos, entidades, até fazem-se relações, mas nunca se aponta o sentido concreto, que é realmente o que importa, sem o qual tudo não passa de palavras vazias, típicas inclusive do nosso sistema acadêmico, que fala das coisas sem realizá-las. Em suma, é racionalismo puro, pura abstração vazia e sem conteúdo; sinais sem significado, sem a referência subjacente. Em face disso, queremos fazer uma ode aos contos de fadas, e mostrar que eles são as formas mais puras e imediatas de um "esoterismo" milenar; não lidam com abstrações exageradas, seus símbolos são facilmente compreensíveis, e sua sabedoria é inesgotável para filósofos e contempladores. Aliás, há quem diga que os contos, muitos dos quais foram reunidos pelos irmãos Grimm na Europa Central, são mais antigos que os mitos mediterrâneos dos gregos e que a Bíblia[1]; o que é muito crível, em vista de sua estrutura primitiva e seus símbolos, típicos de civilizações tão antigas quanto a hindu. Esses contos de fadas não são invenções abstratas, mas relatos recolhidos no seio do povo, muitas vezes habitantes de florestas e vales remotos, onde a sabedoria dos antepassados permanece repleta de vida e significa, quase intocada; os contos dos irmãos Grimm, por sua vez, refletem um frescor e uma naturalidade, uma clareza, muito familiares a um homem germânico, cujo espírito, o Geist, pertence a vales orvalhados, picos gelados e mulheres brancas, sorridentes, graciosas e luminosas, que colhem flores no campo como uma flor reunida com suas irmãs.

Prestemos atenção em um conto curto, porém riquíssimo de significado, sobre o qual nosso comentário, pobre, apenas terá o interesse de se demorar sobre a riqueza sábia dos antigos, que nunca deixará de ter algo de grande e profundo a nos ensinar:

A Abelha-rainha (Die Bienenkönigin)

Era uma vez, dois filhos de um rei foram para uma aventura e enfrentaram uma vida selvagem e bruta, de modo que não voltariam mais para casa. O mais novo, o qual chamavam de Bobo, aprontou-se e foi a procura dos seus dois irmãos; mas, assim que ele finalmente os encontrou, eles zombaram dele que ele, com sua simplicidade, queria dominar o mundo, enquanto eles dois não podiam se virar muito bem, mesmo sendo mais sábios. Mas eles então retomaram, os três, a viagem e encontraram um ninho de formiga. Os dois mais velhos queriam fuçar e ver como as pequenas formigas, angustiadas, rastejar-se-iam e carregariam seus ovos, mas o Bobo disse: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os incomodem". Então eles seguiram em frente e viram um lago, onde nadavam muitos, muitos patos. Os dois irmãos queriam pegar um punhado deles e assar, mas o Bobo não deixou e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os matem". Por fim, encontraram um ninho de abelha, onde tinha tanto mel que escorria pelo tronco. Os dois queriam pôr fogo de baixo da árvore e sufocar as abelhas, de modo que assim poderiam levar o mel embora. Mas o Bobo se manteve empacado e falou: "deixem os bichos em paz, eu não gosto que vocês os queimem". No fim, os três irmãos chegaram em um castelo, onde no estábulo estava cheio de cavalos de pedra, e não havia pessoas por perto, e eles foram entrando por todos os salões até que bem lá no final tinha uma porta com três fechaduras; pela fechadura da porta tinha uma criança que se podia ver no quarto. Eles viram ali um homenzinho cinzento que estava sentado na mesa. Eles o chamaram uma vez, duas vezes, mas ele não ouviu, então o chamaram pela terceira vez, e ele se levantou, destrancou a porta e veio para fora. Não falou uma palavra, mas os guiou a uma mesa farta, e conforme eles tinham comido e bebido, ele levava cada um para dormir. Na manhã seguinte veio o homenzinho cinzento para o mais velho, acenou e o guiou a uma mesa de pedra sobre a qual haviam três missões por escrito, através das quais o feitiço sobre o castelo poderia ser quebrado. A primeira era: na floresta, sob o musgo, estão jogadas as pérolas da filha do rei, que são mil em número, que devem ser recolhidas, e se quando o sol tiver caído ainda faltar uma única, aquele que foi procurá-las se transformará em pedra. O mais velho partiu e ficou o dia inteiro procurando, mas o dia chegou ao fim e ele só tinha recolhido uma centena; então aconteceu que, assim como ele estava de pé diante da mesa, se transformou em pedra. No dia seguinte entregou a aventura ao segundo irmão, que não foi muito melhor que seu irmão mais velho e, tendo encontrado duzentas pérolas, foi transformado em pedra. Por fim, chegou a vez do Bobo; ele procurou no musgo, mas estava muito difícil encontrar as pérolas e estava muito devagar. Então ele se sentou sobre uma pedra e chorou. Veio então o rei das formigas, de quem ele tinha salvo a vida, com cinco mil formiguinhas, e não durou muito para que os bichinhos encontrassem as pérolas. A segunda missão era encontrar a chave para o quarto da filha do rei, que estava perdida no lago. Quando o Bobo foi para o lago os patos, que tinham sido resgatados por ele, se aproximaram nadando, mergulharam e trouxeram as chaves lá do fundo. Mas a terceira missão era a mais difícil: das três filhas do rei, que dormiam, ele deveria apontar qual era a mais nova e mais amável. Elas eram perfeitamente parecidas e não se distinguiam em nada, a não ser pelo fato de que, antes de terem ido dormir, elas tinham comido doces diferentes; a mais velha, um pedaço de açúcar, a segunda, um pouquinho de xarope, e a mais nova, uma colher de mel. Veio, então, a rainha das abelhas, que o Bobo tinha protegido do fogo, lambe a boquinha de cada uma das três; no fim se senta sobre a boca daquela que tinha comido mel, de modo que o filho do rei pudesse saber quem era a certa. O feitiço foi quebrado, todos os que dormiam foram acordados, os que tinham se tornado pedras voltaram a suas formas humanas. E o Bobo se casou com a mais nova e mais amável e se tornou o rei depois da morte do pai dela; mas seus dois irmãos receberam as outras duas irmãs. (Tradução nossa da versão de Knaur, 2012)

Sem racionalismo, sem as inférteis análises do "sistema" simbólico, sem desejar explicar este maravilhoso conto e esvaziar, assim, seu significado, limitemo-nos a debater um pouco sobre o que ele nos diz e o que dele podemos apreender. Uma criança certamente perceberá coisas que um adulto pode muito bem passar por alto e não notar; mas há tanto a se absorver deste conto que pessoas diferentes vão provavelmente observar detalhes diferentes, não se contradizendo, mas se complementando em suas observações.

Podemos notar, por exemplo, que dos três irmãos, o único que foi capaz de levar a cabo as missões recebidas, embora tenha sido muito inexperiente na vida, foi o mais novo, chamado de "Bobo" pelos demais. Eis aqui um tema que nos lembra Dom Quixote, o mais tolo dos cavaleiros, mas também o mais valente e o mais sutil dos homens. A fim de suprir desejos superficiais, os irmãos mais velhos se ocupam da técnica e da brutalidade para derrubar os obstáculos à sua frente; o mais novo os impediu de tamanho pecado, o qual eles ouviram e respeitaram, e o qual terão motivos para agradecê-lo mais tarde por isso. Notemos aqui que é a inocência (a "tolice", aos olhos dos utilitários) quem foi capaz de cavar mais fundo nas leis da natureza, não com pá, mas com o coração. O conto nada nos diz sobre as percepções subjetivas de cada um (desnecessárias), trata-se de um conto antigo e de caráter objetivo, mas podemos imaginar que o mais novo teve seus motivos ocultos para salvar os bichos da malícia humana; sabemos o que ele sentiu porque também agimos assim quando amamos algo ou alguém, e também agimos como os outros quando somos estúpidos e, de tanto pensarmos em suprir desejos nossos, passamos por alto sem notar as sutilezas do mundo que não nos pertence enquanto mero objeto. A inocência, aqui, aparece em uma criança, não porque só a criança é inocente, mas porque a vida mecânica do mundo adulto nos ensina a corrupção do coração humano.

Não que não se deva matar; nós matamos para comer. Mas no caso deste conto (e é muitas vezes o nosso caso) não havia necessidade para tanto. Os irmãos queriam apenas fuçar e incomodar as formigas, não tinham necessidade de matar patos nem pôr fogo em uma colmeia; não estavam famintos, e o conto mostra ainda, depois, que foram todos levados a uma mesa farta. Aqui, os "obstáculos" a serem derrubados a fim de obter os objetos do desejo demonstram serem contornáveis, trazendo à luz a lei profunda da natureza, que a tudo contorne e supera sem destruir. Tivessem os dois mais velhos desrespeitado o menor e atacado os bichos, não teriam chegado ao castelo e às farturas. Essa ideia de recompensa é reforçada, no final, quando os irmãos recebem as outras filhas do rei; eles não eram tão sutis quanto o menor, mas foram sutis o bastante para perceber a malícia dos seus desejos e abortar as ideias toda vez que o mais novo aconselhava. A natureza oferece farturas a quem souber respeitá-la, mesmo que não saiba amá-la, como é o caso dos dois irmãos. E a quem souber amá-la terá para si o amável também: a mais amável filha do rei é uma oferenda sagrada que a natureza oferece às almas de ouro, que no amor se fundem com ela, a mãe-terra, como em uma mesma essência. Não há, notamos, subjetividade no mais novo, nem sua contraparte objetividade (há nos mais velhos: o uso da técnica para atacar os bichos concebe um sujeito, o agente, e o objeto, o mundo, de quem deve ser retirado um bem para suprir unicamente os primeiros), há um modo de vida imparcial e, nas nossas palavras modernas, místico, de unidade com a natureza, portanto familiaridade, proximidade, piedade e, por fim, o amor silencioso e profundo. O mais novo via na natureza um "pedaço" de si mesmo, era a ordem do todo que lhe importava, e o todo inclui em um mesmo o mundo e ele próprio, o Bobo.

Só o amor místico, a inocência quixotesca, é capaz de eliminar o feitiço que recaiu sobre o mundo e transformou os homens em pedras. Ainda dizemos quando alguém é demasiadamente frio: "ele é uma pedra", ou "tem um coração de pedra". Sabemos bem o que isso quer dizer, embora o termo atualmente seja usado para muitas situações diferentes, e nem sempre é referido a homens impiedosos. No caso do conto, aqueles que não se uniram à fluidez natural do mundo foram transformados em pedras, jogados para dentro de sua subjetividade, abandonados, expulsos da vida orgânica. O nosso mundo moderno, aqui, é representado pelos dois irmãos, com a exceção de que o mundo moderno, sejam os conselhos que recebe, jamais poupa a natureza, a vida e a inocência -- com a presença do moderno, não teria havido, no conto, o respeito à autoridade do irmão "tolo", os bichos teriam sido maltratados e o feitiço jamais teria sido quebrado. É o que acontece nesse nosso mundo há vários milênios. Em se tratando de "tolice" redentora, citamos mais um mito de Percival, um dos cavaleiros da Távola Redonda, narrado por Eliade:

Lembramos a misteriosa doença que paralisou o velho Rei, detentor do segredo do Graal. Aliás, ele não era o único que sofria; tudo em torno de si desabava, desmoronava: o palácio, as torres, os jardins; os animais não mais se reproduziam, as árvores não davam frutos, as fontes secavam. Inúmeros médicos tinham tentado tratar o Rei Pescador -- sem o menor resultado. Dia e noite chegavam os cavaleiros, e todos começavam por perguntar as novidades sobre a saúde do Rei. Um único cavaleiro -- pobre e desconhecido, até um pouco ridículo -- permitiu-se ignorar o cerimonial e a cortesia. Seu nome era Percival. Sem levar em conta o cerimonial da corte, ele se dirige diretamente ao Rei e, aproximando-se dele, sem nenhum preâmbulo, pergunta-lhe: "onde está o Graal?". No mesmo momento, tudo se transforma: o Rei levanta-se do seu leito de sofrimento, os rios e as fontes começam a jorrar, a vegetação renasce, o castelo se restaura milagrosamente. As poucas palavras de Percival tinham sido suficientes para regenerar toda a Natureza. Mas essas poucas palavras constituíam a questão central, o único problema que podia interessar não só ao Rei Pescador mas também ao Cosmos inteiro: onde se achava o real por excelência, o sagrado, o Centro da vida e a fonte da imortalidade? Onde se encontrava o Santo Graal? Ninguém havia pensado, antes de Percival, em formular esta pergunta central -- e o mundo morria por causa dessa indiferença metafísica e religiosa, por causa dessa falta de imaginação e ausência de desejo do real. (Imagens e Símbolos, Martins Fontes, julho de 2012, pp. 51-2)

Neste relato de Percival vemos elementos e dramas muito parecidos com os do conto que abriu este nosso texto: uma figura simples, "pobre", que não conheceu os caprichos da corte, repleto de virtude e fé na experiência e no mistério da vida, quebra o feitiço, ou melhor, cura a doença incurável do Rei, que é a mesma que se abate sobre a natureza. O misticismo neste mito está implícito na fé de Percival, uma fé primitiva e cheia de um frescor valente, jovem, luminoso. Neste aqui Percival não se torna um Rei, mas traz um Rei de volta, o que se equivale, visto que o Rei não é uma pessoa, mas um elemento místico que pertence à Natureza.

No caso do conto de fadas narrado aqui, o Bobo herda o trono, a coroa, se torna o rei. Quer dizer que o reinado, que pertence à natureza, é uma função da própria natureza, e só aquele que reiná-la, ao invés de corrompê-la, portanto guiá-la e protegê-la, deve se tornar, realmente, um rei, um protetor, um pai. A natureza oferece a cada um o que é devido, e aqui podemos lembrar a doutrina aristotélica dos lugares naturais, em que cada ser tem seu lugar natural; Aristóteles certamente absorveu em sua doutrina uma sabedoria antiga, mas a corrompeu, a racionalizou, e o "lugar" se tornou meramente um "espaço", um ponto em um mapa cartográfico. Voltando ao conto, o lugar devido de uma alma que protege é o reinado -- há atividade por parte da alma que voluntariamente protege a natureza, e passividade, mas também um movimento complementar que retribui imediatamente, não moralisticamente, mas eroticamente (a proteção é por amor, e amor é proximidade e união, portanto diálogo profundo), por parte da natureza. A mesma passividade encontrada na natureza está implícita na mulher, no caso das filhas do rei, que por ser identificada à natureza e oferecida ao Bobo como que algo de si mesma, a natureza lhe oferece um pedaço de si, um cristal da sua essência. E a mulher é um cristal, um mineral do cosmos, um tesouro. O cristal mais puro dos três que o rei tinha alcançou sua contraparte devida.

No mundo moderno estas leis naturais não funcionam, pois estão rompidas em sua continuidade por irmãos maus que corrompem a natureza. Os três irmãos só alcançaram o castelo e o feitiço só foi quebrado porque o mal não chegou a ser lançado; nós modernos, pelo contrário, não temos a chance de pôr a prova a natureza, de esperar dela o que nos é devido, porque ininterruptamente tentamos arrancar dela o que queremos. Antes mesmo de sairmos à floresta já estamos transformados em pedras brutas destruidoras, em velhos doentes. Na modernidade, a autoridade só é respeitada, seja boa ou ruim, ao ser tomada pela força e pela brutalidade, e só a força tem autoridade, o caráter já não conta mais, a sutileza, a profundidade, a sabedoria, nada disso é reconhecido, nem mesmo respeitado. E aqui o conto nos ensina algo mais, nos dando previsões dos tempos, de que só há a possibilidade de reconciliação com a natureza, e da obtenção do nosso lugar no mundo, caso nos atentemos aos princípios metafísicos disponíveis de imediato no mundo e na experiência humana, que nos apresentam os deuses e nos iluminam nosso união originária com a natureza; o desenvolvimento do caráter não é algo que acontece na abstração, no simples "dever" normativo e imposto, mas está intimamente ligado à ordem existencial do mundo apresentada nas relações naturais: na contemplação da beleza e harmonia do mundo, na hierarquia do kósmos, que também são a beleza e harmonia do homem e das relações humanas, a hierarquia que distingue o lugar de cada um na sociedade -- é na natureza que observamos a eterna e contínua colaboração e participação das partes complementares em um todo, um mesmo único, para todos. O mundo moderno só voltará a reconhecer a ordem humana quando se voltar para as sutilezas da natureza, pois nela estão as chaves para quebrar o feitiço, e só será possível encontrar estas chaves quando mudarmos nossa maneira de tratá-la, pararmos um pouco a fim de observá-la e descobrir nela os mistérios e as respostas pelas quais ansiamos no íntimo. É a própria natureza quem nos trará as chaves ao sentir que podemos recebê-las, porque já estamos de ouvidos abertos e podemos ouvi-la cantar -- e é sutil, miúdo, muito frágil o canto dela.

Como podemos perceber, um conto de fadas tem muito a nos ensinar, tanto sobre moralidade, sobre relações humanas básicas, sobre as emoções humanas, quanto sobre metafísica e ciências mais avançadas. Mesmo assim, estamos certos de não ter esgotado este conto, há muito mais a se falar e pensar sobre ele; mas mesmo que investíssemos em discursar a fim de esgotá-lo, não teríamos sucesso; o conto não apresenta uma divisão simbólica artificial, ele não é construído arbitrariamente com partes individuais, avulsas, passíveis de serem distinguidas. Pelo contrário, cada "parte" dele está a serviço do todo, da ideia do todo, e somos nós que fazemos o esforço de recortá-lo a fim de salientar certos valores que nos são transmitidos inseparavelmente com todos os outros por inteiro, intuitivamente. O conto fala uma linguagem intuitiva, de apreensão natural por parte do Geist -- os valores são introduzidos no conto pela sutileza e pelo Geist do povo no seio do qual o conto foi formado tradicionalmente; e é o mesmo indivíduo pertencente ao povo, em cujo seio também queima o Geist popular, capaz de apreender o conteúdo implícito na linguagem discursiva, mas claro, luminoso, quando atinge a imaginação humana. A imaginação trata de interpretar intuitivamente aquilo que está por trás das meras palavras e é engastado pelo Geist do qual ela mesma é feita. Só ela, no homem, tem as chaves necessárias para a compreensão da natureza e da realidade como um todo. Não são as barafundas dos cientistas, mas a imaginação e o Geist que carregam as chaves do conhecimento e dos mistérios da vida.

O conto é um fenômeno vivo e fala por si, por isso dispensa explicações. Se a arte moderna se obrigou a explicar suas "obras" é porque não é mais arte, mas pura técnica -- ela perdeu a linguagem do Geist, que, não obstante, permanece viva nos contos de fadas (não aqueles corrompidos pela Disney, que transformou as histórias, imprimindo novos e decadentes significados em questão de minutos e caneteadas arbitrárias em laboratórios, mas os antigos e originais formados durante milênios de experiência e observação humanas, que falam a linguagem do ser e transmitem o logos). E, por falar a linguagem do Geist, não há contra-indicações, e tanto as crianças quando os adultos, tanto o filósofo quanto o agricultor, são capazes de compreender. Aqui notamos uma citação de Hayao Miyazaki, diretor de animes muito interessado em contos japoneses e até ocidentais, que reproduz um pouco o que estamos a dizer: "uma vez uma mulher que trabalha na produção [dos animes] me contou que as crianças devem assistir coisas que elas não compreendem no momento, mas compreenderão mais tarde -- ora, eu nunca concordei com isto". Miyazaki também pensa que o que se pode saber da vida se pode saber a qualquer momento, independentemente da educação recebida, porque não é a mente racional que conhece, mas o coração humano ou a alma humana, que falam outra língua e compreendem outra língua, uma língua silenciosa e que nos atinge imediatamente na alma. Por isso, seus animes silenciam quando os modernos imprimiriam diálogos insossos, e falam através do exemplo, através da demonstração das sutilezas, sem se limitar a imprimir significações precisas e já orientadas por uma interpretação particular. Ao invés de ordenar a contemplação, mostra o que há para contemplar, e deixa nossa alma contemplar por si, ativamente, participando de sua obra. É como presenciar um ritual dionisíaco e místico, onde enxergamos os deuses e os ouvimos falar diretamente à nossa alma, não como telespectadores, mas como participantes do kósmos no qual eles habitam.

Para terminar, deixamos mais uma citação, desta vez diretamente dos "mistérios", do Corpus Hermeticum, que arrematará muito do que dissemos neste texto:

Se você não se fizer igual a Deus, não poderá apreender Deus, porque o semelhante é apreendido pelo semelhante. Ultrapasse todo corpo e se expanda para a grandeza imensurável; supere todo tempo e se torne eternidade: assim você deve apreender Deus... abrace em ti todas as sensações de todas as coisas criadas, do fogo e da água, do seco e do molhado; esteja simultaneamente em todos os lugares, no mar, na terra e no céu; seja de uma só vez um nascido e esteja ainda no útero, seja jovem e velho, esteja morto e além da morte; e se você conseguir segurar todas essas coisas juntas, os tempos e lugares e substâncias, qualidades e quantidades, então você pode apreender Deus. Mas se você subestimar sua alma e fechá-la no seu corpo, se disser "eu não sei nada, eu não consigo nada, eu tenho medo do mar, eu não consigo escalar o céu; eu não sei o que fui nem o que devo ser", nesse caso o que você tem que ver com Deus? (XI, 20, retirado de Dodds, Pagan and christian in an age of anxiety, p. 82).

[1] http://portal-legionario.blogspot.com.br/2016/07/contos-de-fadas-sao-mais-antigos-que.html
[10/02/2017]

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